15 de Abril, 2008.
Além do horizonte¹, interpretada por Tim Maia, tocava no rádio automotivo, alimentado por um pendrive. A música que saia pelas caixas laterais e traseiras da brasília branca, cuidadosamente reformada, digladiava com o barulho que transpassava pelos vidros deixados a meia altura. O vento cortava com violência a melodia, enquanto duas pessoas olhavam os poucos metros que os faróis iluminavam na BR-153, no coração do Goiás.
— Ei, por que você não liga os faróis de milha? – Indagou o carona, ajeitando os óculos no narizinho em formato de pêra.
— Para mim está bom assim. – A motorista respondeu, num tom seco. Os cabelos curtos, desfiados, contrastavam com a singeleza de sua face, a meia luz no interior do veículo.
O de óculos, por sua vez, revelava poucos e encaracolados cabelos. A barba farta e desleixada compunha uma visão semelhante a um lobisomem, a não ser pela gordura em excesso. A barriga saltava por baixo do cinto de segurança e os peitos eram maiores que o da mulher que dirigia o carro. Usava uma camisa branca, apertadíssima, e uma sacola de papel com alguns amendoins.
— Você que sabe, Laura, você que sabe... – Respondeu, entre um amendoim e outro.
— Qualé, Ícaro, estamos andando no meio do nada. Que porra poderia acontecer ness... – Nesse momento um vulto atravessou na pista. Rápido. Inesperado. Em puro reflexo, a mulher jogou o carro para o outro lado, mas foi inevitável o choque. O baque foi seco e jogou os dois para frente. Ícaro por pouco não bateu a testa no painel, mas seus amendoins se espalharam pelo carro inteiro.
Laura, assim que deu o primeiro solavanco, levou uma das mãos no freio de mão e puxou com toda força, retornando com as duas mãos ao volante, girando-o completamente para a direita. A brasília rodopiou duas vezes, cantando os pneus, e foi parar no acostamento da contramão. Assustados e em meio à adrenalina, os dois se entreolharam.
— O que poderia acontecer, tsc. – Ícaro já retirava o cinto, abrindo a porta. A mulher segurou-o pelo braço.
— Aonde você pensa que vai?
— Ver o que atingimos, ora! – Replicou sem muita paciência. — Vamos, já vimos coisas piores. Ah, pegue a arma.
— Droga... – Consentiu, tirando do porta-luvas um revólver 38 cromado em seu coldre, colocando-o no cinto.
Ícaro pegou uma lanterna. Já passava das dez da noite e a lua minguante não iluminava tanto quanto deveria, mesmo com a ajuda das estrelas. Os dois seguiram por cerca de cinquenta metros, vendo no asfalto as marcas da trajetória desesperada do automóvel. À frente, encontraram algo ainda se mexendo. A mulher empunhou a arma, cruzando os braços, enquanto o homem mirava a lanterna. Eis que, do nada, um relincho invade a quietude da estrada.
À medida que se aproximaram perceberam do que se tratava: um cavalo. Estava com o peito e as patas dianteiras esfaceladas, enquanto os cascos traseiros tentavam inutilmente erguer o corpo, em desespero. Mexia-se com dificuldade, enquanto o sangue escorria como um verdadeiro rio até os pés dos dois ali próximos.
— Mas que merda... – Comentou Laura, virando o rosto para o animal. Não gostava de vê-los sofrendo aquele jeito, talvez por isso tenha se tornado vegetariana.
— Não fale desse jeito, a culpa foi nossa.
— Como nossa?! Ele atravessou a pista! – Respondeu imediatamente, cerrando o cenho em desaprovação. — E agora, o que faremos?
— Não há nada a ser feito, acabe com o sofrimento dele. – Disse Ícaro, retirando a luz do animal. Laura arqueou uma sobrancelha, como se questionasse o que aquilo significava, mas sabia exatamente.
— Não é nada pessoal, amiguinho. – Apontou o revolver, engatilhou a bala e disparou. O tiro foi certeiro, perfurou a cabeça do animal que bateu secamente no chão. As pernas traseiras cessaram, estava em paz. Ícaro já voltava para o carro, enquanto a outra falou em voz algo: — Ei, não deveríamos tirá-lo daqui?
— Quem liga? É só um animal morto na pista, isso tem em todo lugar. Vamos, temos mais o que fazer... – Nesse momento, Ícaro sentiu uma vibração em seu bolso. Enfiou a mão na calça de moletom, retirando um celular. Quem seria àquela hora?
_______
¹Além do Horizonte: Música está em anexo aqui no wattpad, mas pode ser acessada por aqui: http://www.youtube.com/watch?v=_JJ6udQ1744&feature=kp
VOCÊ ESTÁ LENDO
Raízes das Lendas
FantasyO que é realidade? O que são lendas? Quando pequenos, nossas tias costumam nos contar histórias antigas, lendas do folclore sobre criaturas inimagináveis que escondem-se nas matas, rios, lagos, mares e até mesmo nas cidades. O que aconteceria se voc...