Eu tinha que aceitar. Ver a neve caindo à noite mais uma vez me fazia lembrar disso, mas qual a diferença? A noite já havia se instalado em mim há muito tempo.
Eu me lembro da última vez em que vi o seu rosto. Estávamos discutindo sobre alguma coisa qualquer, mas você parecia com tanta raiva... Eu ficava com raiva com frequência, mas você era muito mais controlada que eu. E naquele dia você estava brava demais... Ah, sim. Eu havia esquecido do nosso aniversário. Eu tinha ficado até tarde no trabalho, e você estava me esperando. Quando cheguei em casa, o jantar estava frio, e você ressonava com a cabeça encostada na mesa. Quando eu te acordei, você ficou furiosa.
Não dá para voltar atrás. O fato de eu adorar a neve não me faz mais feliz no momento. Você também adorava a neve. E olha onde está agora.
A noite escura me deprime mais ainda. Ela combina com a minha noite interior.
Eu tenho que aceitar. Tenho que colocar isso para fora de mim.
Três anos, Alice. Três anos que aquela noite aconteceu.
Pego as chaves do carro, ciente de onde isso tudo vai me levar. As lágrimas ameaçam cair, mas de novo eu as seguro, como há três anos atrás. Como foi em todo o processo. Até hoje.
A noite já está escura, mas mesmo assim, algumas luzes ainda iluminam a rua pelo qual passo.
Você estava furiosa e disse que queria terminar comigo. Que eu não ligava mais para você. E eu disse "quer saber? Se você quer, pode ir embora". E você foi.
Quando eu percebi a minha idiotice, era tarde demais.
O carro já havia batido em você. Eu te vi no chão, frio, os olhos vidrados. Eu te vi morrer, na minha frente, sem eu poder fazer nada, sem eu nem poder me despedir... Dizer o quanto eu...
Nada mais fazia sentido aquele momento. A caixa com a aliança que eu tinha comprado para você - o motivo pelo qual eu andava trabalhando demais - ainda estava no bolso do meu casaco, naquele dia. Eu te vi daquela forma e não consegui chorar. Nem naquele momento, nem no enterro. Fui acusado de insensível por toda a sua família. Mas a dor... Ela era tão grande e tão petrificada... Eu apenas não podia aceitar que você tinha ido embora. E pior: achando que era o que eu queria.
Até hoje.
No cemitério fazia frio. Um clima que você acharia perfeito. Subi até o local no qual você estava enterrada. Li sua lápide e pensei que era um pecado você estar enterrada enquanto o idiota era eu. Eu me sentia culpado e nada poderia afastar esse sentimento. Ajoelhei-me e fiquei encarando a lápide, como se você pudesse sair de trás dela a qualquer momento, rindo e falando algo como "você achou que eu estava morta? Que besteira, Flávio". E depois iria sorrir, perguntando se poderíamos tomar sorvete, mesmo com o frio congelante que estava fazendo.
De repente, a represa explodiu. Lágrimas, muitas delas, começaram a escorrer pelo meu rosto, molhando meu cachecol e meu casaco. Três anos, e finalmente, por algum motivo, eu conseguia chorar por você. A dor veio novamente, mas desta vez não parecia mais uma pedra. Era mais como se uma represa tivesse se rompido em mim, fazendo-me sentir um inútil. Eu não podia te salvar, não podia te trazer de volta... O que diabos eu tinha feito então? A neve caía mais forte, e a escuridão contrastava com o tapete branco que começava a se formar. Abracei sua lápide como queria te abraçar naquele dia, mas não sentia o gelado da lápide, nem a dor nos meus joelhos, nem frio - nada além da dor excruciante, que tomava conta de mim cada vez mais.
Com a ajuda de uma pedra, eu consegui cavar o seu túmulo, apenas o suficiente para que eu pudesse colocar a caixinha com a aliança que eu te daria aquele dia. Ainda chorando, tapei o buraco com a terra que havia tirado antes. Comecei a balançar-me feito criança, desejando que você aparecesse para me abraçar, para me salvar do frio e da noite eterna em que eu vivia desde aquele dia.
Quando as lágrimas cessaram, depois de muito tempo, vi que a neve havia cessado também. Ainda estava escuro, mas senti o cheiro do seu perfume. Penso que era só coisa da minha imaginação, mas parecia que você estava ali, ou estava perto. Me apoiando e me dizendo para seguir em frente e dizendo que...
Ah, minha Alice, eu também te amarei para o resto da minha vida. Eu sorri.
A noite finalmente havia acabado.
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The Last Night
AléatoireO fato de eu adorar a neve não me faz mais feliz no momento. Você também adorava a neve. E olha onde está agora.