Ciência e religião do barro

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Não gosto do gosto. Não que o barro tenha significado religioso pra mim, porém, se eu for construir uma relação de metáforas, meu gosto pela água cheia de porcarias que desce pela torneira da pia me torna nada menos que uma herege. Minha aversão ao barro me leva à infância. Lá, onde aquelas crianças sujas comiam quantidades exorbitantes de barro (este nada limpo, como a vela do filtro de barro diz ser) apenas por diversão. Nunca gostei da ideia, sempre fui a criança chata. Por que hoje bebo um lixo líquido sem nenhuma preocupação?

Sei dos malefícios que existem em consumir a água direto da torneira, que mesmo considerada própria para o consumo, possui substâncias suscetíveis a causar sérios danos à saúde. De toda forma, cá entre nós, não são essas substâncias cancerígenas que caracterizam a água da pia como sendo MUITO mais saborosa que aquela merda barrenta excretada pela torneirinha do filtro?

Por muito tempo, abria a torneira da pia sem muita preocupação, metia um copo lá em baixo, e entornava a água poluída boca a dentro. Morando sozinha, nunca liguei pros possíveis transtornos que isso pudesse me causar. Até ingerir, em meio às diversas porcarias que existem na água da pia, uma maldita bactéria. 

Eu comprei um filtro de barro. O intuito não foi ser uma pessoa mais saudável, já que meus hábitos diários me tornam uma pessoa detestável pelos então chamados críticos fitness de plantão. Quanto mais me aproximo da vida adulta, mais ignorante fico. Afinal, a criança nojenta que habitava em mim, me abandonou há muito. Não, o motivo pelo qual me rendi ao desgosto pelo gosto do barro, foi para evitar o desgosto de novamente ter de passar mais tempo no banheiro que o normal. 

Da odisseia de ter adquirido um filtro de barro, destaco que ele exige cuidados quase infantis. Preciso lavá-lo no mínimo duas vezes por semana, para que não apareçam eflorescências. Essas, apesar de inofensivas, dão um aspecto nada agradável ao filtro. Além disso, preciso coletar a deliciosa água da pia em um jarro e despejá-la no recipiente superior do filtro duas vezes por dia, pra que tenha água barrenta sempre disponível. Nos dias em que não o lavo, preciso limpá-lo com um pano, pra remover os pontinhos brancos que surgem graças à umidade. Isso me mantém ocupada, e seria até um processo interessante, não fosse o fato de que eu detesto a água que sai pela bendita torneirinha. 

Nos primeiros dias, sentir o gosto do barro era insuportável. A vela nova, que filtra a água suja, estava destinada a me foder por completo. Percebi que quase não estava bebendo água desde que comprei o filtro. No lugar disso, dava toda a água de barro para minhas plantas, quase como se fosse um presente. Elas deviam gostar muito mais de terra que eu. Quanto mais água o filtro filtrava, menos o gosto do barro se destacava em meu paladar. Com o tempo fui me acostumando, e hoje é quase insuportável beber a água, felizmente quase não é totalmente, e não morro de sede (somente) graças a isso. 

Ontem lavei o filtro com carinho. Percebi que minha relação com ele tem se estreitado. Fico feliz em pensar que mesmo odiando o barro, foi dele que vim, é para ele que retornarei, e é dele que consumirei cegamente até o fim dos meus dias.

Eu comprei um filtro de barro.Where stories live. Discover now