Pietra e a garota com o sorriso mais lindo que as estrelas

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 "pessoas deviam poder evaporar

quando quisessem

não deixar por aí

lembranças pedaços carcaças

gotas de sangue caveiras esqueletos

e esses apertos no coração

que não me deixam dormir."

— Olinda Wischral, Paulo Leminski

BIP

Início da gravação.

Faz muito tempo que não faço isso.

Que estranho.

Ok, de certa forma é bom, porque eu costumava fazer só quando estava muito desesperada ou confusa sobre algo. Me ajudava a clarear mente, me lembro bem. Acho que faz anos que não fico dessa forma, pelo menos não de maneira não intensa.

Não é que seja algo ruim. É apenas algo que preciso pensar.

Na verdade, não é só uma coisa. São várias. É que, bem... Gosto do som das palavras. Me guio muito por elas. Então, gosto de estar aqui, trabalhando com minhas cordas vocais.

silêncio — cinco segundos.

Não sei muito bem como começar.

É um pouco estranho falar sozinha com o gravador, mas é bom ao mesmo tempo. Parece que alguém finalmente me ouve. Alguém finalmente absorve tudo o que eu tenho para dizer.

Bem, é noite. Está escuro, mas isso não é novidade. Ao menos não para mim, que vivo no completo escuro há muito tempo.

Meus pais estão dormindo, assim como meu irmão mais novo. Eu gosto desses momentos, onde tudo é silêncio, onde todos estão dormindo. Onde não há ninguém para fazer as coisas por mim.

Quero dizer, a menos que eu não faça algum barulho que acorde meus pais, porque aí minha mãe vai levantar e perguntar o que eu quero, com aquela voz de sono e uma mistura de preocupação.

Eu consigo ouvir um "estou morrendo de sono, mas se você pedir pra correr uma maratona, eu vou correr, porque você é cega e eu preciso fazer tudo por você" praticamente toda vez que mamãe fala.

Tenho quase certeza que ela quer se mudar de casa, só não faz porque sabe como seria meio complicado para mim, já que me movo com facilidade nessa casa porque moro nela desde que nasci e conheço cada canto. Um lugar novo significa que eu teria que usar a bengala por um tempo e tropeçar em vários móveis. Acho muito legal que ela se preocupe com isso, mas queria que não se preocupasse tanto assim.

Não quero ser um incômodo na vida de ninguém. Não quero ser transformada nisso.

silêncio — quatro segundos.

Eu só queria que minha mãe não se preocupasse tanto assim. Já tenho quase dezoito anos, posso me virar, mas sou tratada como uma criança. Ela não trata meu irmão dessa forma e ele tem oito anos. Queria conseguir gritar com ela, ou ser grosseira, pra ver se funciona, mas não consigo. Já pedi um milhão de vezes que ela me trate como eu deveria ser tratada conforme minha idade, mas é impossível. Sinto como se minha cegueira fosse tudo o que importasse na vida de minha mãe.

Com meu pai é meio diferente, ele fala comigo como fala com meu irmão, mesmo que eu sinta que ele tem vergonha de mim.

Pois é, pai, eu percebo como você arrasta meu nome toda vez que vai me apresentar pra algum conhecido seu.

As oito almas perdidas e como se encontraram (ou se perderam mais ainda)Onde histórias criam vida. Descubra agora