por Luis Oliveira
Acordo com o som fraco da chuva sobre as telhas. O ambiente ao redor entra em foco aos poucos, ainda assim embaçado, como se coberto por uma capa de óleo rançoso. Meus olhos já não são o que eram antigamente. Ergo meu corpo do colchão de palha e sinto a dor percorrer cada osso da espinha, abraçando minha carne como uma velha e saudosa amiga. O quarto está frio e sinto a umidade entrando pelas frestas na madeira. A chuva deve ter durado toda a noite.
Quando enfim arrasto meus ossos pra fora da cama e consigo me erguer sofridamente, noto que as brasas na lareira estão apagadas, o cheiro de carvão úmido preenchendo o interior do cômodo. Pietro deve estar dormindo, o pestinha esqueceu de acordar cedo para avivar as chamas, mas quem pode culpá-lo? Qualquer momento a mais de sono é um momento a mais fora da agonia e desolação da existência humana. Mais tempo fora desse inferno terreno que se tornou Belregard. Nesses momentos fecho os olhos e lembro das torres brancas de Virka, das ruas cobertas de rosas quando os Vlakin desfilavam em suas bigas douradas no dia de São Leoric e os melhores músicos do Império tocavam ante sua presença. Tempos dourados que agora são nada mais que cinzas e pó, restos de lembranças na mente de um velho.
Mas não devo maldizer minha sorte. Poucos são aqueles que atingem minha idade e ainda possuem um teto sobre suas cabeças e uma cama onde dormir. Ouço passos no corredor e sou retirado de meus devaneios pelo som da porta rangendo. Uma cabeça ruiva espia pela porta, os olhos ainda inchados de sono. Ele não me enxerga na penumbra do quarto e entra pé ante pé, indo na direção da lareira.
- Bom dia, Pietro.
Minha voz ecoa no quarto silencioso, fazendo o menino quase cair pra trás. Ele vira na minha direção e começa a se curvar.
- Bom dia, irmão Lazarus, senhor! Perdão, eu esqueci... não! Eu me atrasei, eu...
- Está bem, Pietro. Não vou castigar-te por deixar um velho moribundo passar um momento no frio... Afinal, o conforto em demasia pode afastar-nos de Deus, como bem sabes...
Porque ainda uso a Fala Imperial com um moleque camponês? Sou mesmo um velho que se apega ao passado. Nem tenho certeza se ele consegue me entender, o rosto simplório é um enigma, mesmo para mim.
- Deixa a lareira apagada e vai pegar o leite. Se a chuva foi tão forte é certo que os pequeninos tenham pego um resfriado e terei um dia longo pela frente.
O menino corre para fora como se aliviado por deixar minha presença. Não o culpo, eu na idade dele também teria medo de um homem do clero, especialmente um velho rabugento como eu.
O desjejum é uma coisa rápida e minguada, leite, queijo de cabra já meio endurecido pelo tempo e um pão preto encharcado pela umidade da chuva. Mastigo com facilidade, sendo um agraciado por ainda ter quase todos os dentes, mas o gosto de trigo velho misturado com mofo me faz enjoar antes do segundo pedaço. O conforto nos afasta de Deus... maldito seja quem inventou essa frase.
A fila de mendicantes é pequena esta manhã, talvez pela garoa fina que ainda cai sobre o adro da igreja, mas eles estão lá. Sempre ao menos um aparece. As ovelhas não conseguem sobreviver sem a orientação do pastor. Seus olhos vazios e expressões beócias possuem um espectro tão vasto quanto o caminho entre as duas pontas de um grão de trigo e as explicações, confissões e súplicas são sempre tão interessantes que me pergunto se não estaria aproveitando melhor o meu tempo se ficasse no jardim vendo a grama crescer. Mas recebi os sacramentos e moro sob o teto da Igreja, então, goste ou não devo cumprir com as obrigações que acompanham o manto preto do prelado.
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A TROCA
HorrorNos ermos sombrios de Belregard, onde a decadência e ruína imperam sobre a vida dos homens, um velho sacerdote relembra o passado enquanto protege e guia seu rebanho. Mas nesse mundo derrotado, tudo tem seu preço...