Durante toda a minha infância, o apartamento que dá de frente para o meu quarto se manteve fechado. Não vago ou vazio. Fechado. Minha mãe sempre me contava que a dona era uma velha que por motivos desconhecidos, um dia trancou tudo e nunca mais voltou. Pagava o aluguel e as contas necessárias, mas nunca de fato voltou. O apartamento, mobiliado, era para mim como uma casa fantasma; através das janelas que a cada dia ficavam mais sujas, podia ver os sofás marrons na sala ao fundo, os ladrilhos da cozinha e os potes de semente esverdeados perto da janela. Aos poucos fui me acostumando com aquela visão monótona, sempre a mesma janela e sempre o mesmo pó, cada vez mais denso.Já na minha adolescência, de um dia para o outro, me deparei com uma das janelas abertas. Foi um choque, um choque estranho, já que aquilo pouco significava na minha vida. Foi minha mãe quem novamente me esclareceu algo sobre aquele lugar: a tal senhora havia morrido e a filha resolvido alugar o lugar. Desde então, uma série de pessoas veio a viver ali, e de certa forma, a viver comigo. Primeiro um jovem casal que vi muito pouco. Meses depois, uma família evangélica. Mais meses se passaram e o apartamento ficou em silêncio novamente.Em um verão qualquer, comigo quase entrando na vida adulta, acordei com vozes altas, pessoas conversando. Abri a janela e percebi uma movimentação por todo aquele apartamento. Mais uma mudança. Mas depois de tantas mudanças e tantas pessoas, aquilo já não era mais tão interessante assim para mim, minha curiosidade infantil já havia morrido com o tempo.Acho que demorou 1 mês até que algo me chamasse a atenção para o assunto novamente. Em mais uma manhã, acordei com um som estranho, gritante. Alguém estava afinando um violão. Sei como é o som porque anos antes tentara, com amigos, montar uma banda e para tal comprei um violão, então o som me era familiar. Me arrastei pela cama e através das frestras da janela, tive uma visão parcial da janela de um dos quartos, que fica exatamente em frente à janela do meu. Lá, observei um rapaz sentado na cama, com as pernas cruzadas e olhos atentos nas cordas do instrumento. Tinha os cabelos curtíssimos e de um loiro escuro que refletia a luz do sol que atravessava o vão entre nossas janelas. Fazia muito calor e ele, sem camiseta, passava frequentemente a mão pelo pescoço; com isso pude perceber uma tatuagem na parte interna do braço. Pelos traços e atitudes, não passava dos 21 anos. Torcia os dedos dos pés conforme tocava algumas notas soltas. A cabeça acompanhava o som enquanto os olhos se mantinham fechados e a boca estalava sons ritmados. Mas de repente esse novo estranho amigo se levantou e saiu do meu campo de visão, me deixando sozinho com minha curiosidade. Através das semanas notei que os novos moradores se tratavam de estudantes de uma faculdade qualquer, duas meninas e um menino. Elas ,morenas, pareciam irmãs de tão parecidas. Sempre com roupas curtas, "shortinhos", "blusinhas". Sempre carregando cadeiras de praia, sempre falando alto. O rapaz não parecia ser daqui. Louro e pálido, parecia ter caído de pára-quedas nesse inferno que é essa cidade no verão. Estava sempre avermelhado, parecendo castigado pelo sol caiçara, mesmo quando o mesmo não dava as caras pelos céus. Aos poucos, fui me acostumando à eles. As meninas gostavam de músicas detestáveis mas pareciam boazinhas. Viviam no telefone e usavam a janela da cozinha para fofocar. As vezes podia ouvir conversas inteiras. Elas não pareciam se importar que os vizinhos soubessem de suas bebedeiras e desamores. Do rapaz, pequenos detalhes foram surgindo aos poucos: suas costas sardentas que um dia pude ver (não com tanto orgulho assim) enquanto ele dormia de bruços, esquecido da janela aberta. Seu gosto por suco natural,que batia no liquidificador todas as tardes. E os objetos em seu quarto me davam pistas sobre sua personalidade: um skate encostado na parede. Um computador que estava sempre ligado, no lado oposto do quarto. E um tênis, igual ao meu, quase escondido embaixo da cama. E todas as manhãs, sem falta, ele acordava e tocava algumas músicas em seu violão velho e cheio de colantes grudados. E todas as manhãs eu acordava com aquele som e, aos poucos, ele, o rapaz sem nome, passou a fazer parte da minha vida. Um dia, depois de uma centena de manhãs, finalmente reconheci algo em seu repertório. Conhecia a música que ele tocava. E sabia tocar. Meio que num impulso, pulei da cama e iniciei uma busca desesperada pelo meu próprio violão. Arranquei-o do armário e me coloquei sentado na cama, do lado da janela. Sonolento, fiquei momentos tentando lembrar o nome da música. "Pais e Filhos", Legião Urbana. Meu coração estava disparado e eu sentia como se estivesse vivendo um momento decisivo em minha vida. Achei graça de mim mesmo e comecei a rir. Mas ainda estava tenso. Pode ter sido o sono interrompido bruscamente mas algum tipo de coragem repentina surgiu e eu, o mais alto que pude, comecei a tocar os mesmos acordes que ele tocava. Houve um momento de silêncio. Tive então um momento de pânico, esperando ele gritar raivosamente ou algo assim. Pareceu-me uma eternidade. Mas segundos depois, ele recomeçou a música. E o segui, dessa vez tocando mais baixo... E mais tranquilo, com o contato agora estabelecido. Eu tocava extremamente mal, cheio de erros e fora do compasso. Não estava com a cabeça em mim, e sim do lado de fora. Percebi então que ele estava cantando também, bem baixo. Tive a impressão (ou fantasia) de que tentava me ajudar. Não cantava bem, a voz era grossa e meio embargada. Mas pude perceber que gostava da música, e isso basta, me bastava. Logo, a música acabou. Ouvi vozes vindo do quarto dele. Alguém tinha interrompido nosso show. Isso veio a acontecer cerca de outras nove vezes. Em três delas, ele tocava uma música, depois eu outra. Eram espetáculos de menos de 10 minutos onde a graça era estarmos fazendo a mesma coisa, no mesmo lugar, do mesmo modo. Nunca tive coragem o suficiente para erguer o corpo e olhar para ele. Nunca tive coragem de me expressar de outra forma. Sempre tinha a impressão de que aquilo, aquela conexão, duraria para sempre, mesmo que isso não fizesse sentido algum. Mas cerca de duas semanas depois da nossa última manhã, dei falta de algumas coisas dentro do quarto dele. O computador e o skate. Só a cama restara. E suas bermudas de praia, que sempre estavam secando na janela, haviam desaparecido para sempre do varal. Só via as duas meninas, e o fato de sempre vê-las e ele não me deixava com uma certeza óbvia. Logo, coincidindo com o frio que se aproximava, de uma hora pra outra, de um dia para outro, a casa toda se fechou novamente. E novamente, só o que se via eram os móveis através das janelas, que eram novas, mas que me passavam o mesmo sentimento de solidão que as antigas me passavam.Até hoje, anos depois(Cinco, mais especificamente), me arrependo de não ter saído deste quarto,descido as escadas, atravessado o estacionamento, subido os três degraus que dão para o prédio dele, tocado no apartamento 203, subido as escadas, ter batido na porta e assim que ele abrisse, ter me apresentado. Eu não sei como ele me receberia. Não sei se era um cara legal, não sei se nos dariamos bem. Por que estou contando isso hoje? Cerca de uma semana atrás, estava sentado no banco de um ônibus. Chovia muito e estava perdidamente olhando através da janela. O ônibus parou em determinado ponto e meus olhos bateram em alguém que estava do lado de fora, conversando com alguém, embaixo de um guarda-chuva. Era ele. O cabelo estava maior, assim como os braços e as pernas. Ele não era mais aquele menino que morava ao lado. Mas eu sei que era ele. Coincidência ou não, tive essa certeza quando ele passou a mão pela nuca ; gesto que me levou de volta para aqueles dias de verão. Logo o ônibus partiu e eu tive a impressão que por um lapso de segundo, ele olhou para mim ,através daquele vidro embaçado. E logo, ele havia desaparecido de novo... Tão rápido quanto tinha aparecido e sumido da última vez.Fiquei dias com isso na cabeça. Pendurado na janela, passei a semana fumando,ouvindo nossa primeira música e olhando para a casa, agora ocupada por uma família cheia de crianças. O quarto que era dele agora é um quarto rosa cheio de bonecas. Não aguentando mais, desabafei com uma amiga sobre tudo isso, sobre meu olhar infantil através das janelas, sobre a família evangélica, sobre os shortinhos e blusinhas, sobre as sardas, sobre Legião Urbana, sobre minha falta de coragem e sobre os olhos apertados e coloridos que eu tive a impressão de terem me notado naquele dia chuvoso. Depois de me ouvir, ela me disse uma coisa que eu nunca, nunca tinha cogitado antes. " - Ele viveu ao seu lado por meses, onde você o observou o tempo todo. Sabia de tudo o que ele fazia e sobre todos esses detalhes... Como você sabe que ele não sabia de tudo isso ou melhor - que não te observava também? "
Não pude deixar de sorrir.
R.M.
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- UMA ÚLTIMA CANÇÃO -
Historia CortaUm breve conto sobre uma paixão de verão de um jovem por um rapaz que nunca chegou à conhecer, mas que através de alguns acordes tocou seu coração.