Capitulo 2

165 19 16
                                    

OITENTA ANOS DEPOIS

— POR QUÊ? — ela perguntou com o rosto inchado do afogamento.

Estendi as mãos num alerta para que ela não se aproximasse mais, numa tentativa de dizer sem palavras que eu era fatal. Mas estava claro que ela não tinha medo de mim. Ela buscava vingança. E ia conseguir de qualquer maneira.

— Por quê? — ela quis saber de novo. As algas-marinhas enroscadas na perna dela faziam um som monótono e molhado ao serem arrastadas pelo chão.

As palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse segurar:

— Precisei.

Ela nem se abalou com a minha voz, apenas continuou avançando.

Era isso. Eu finalmente pagaria pelo que fizera.

— Eu tinha três filhos.

Me afastei, à procura de uma escapatória.

— Eu não sabia! Juro que não sabia de nada!

Por fim, ela parou, a apenas alguns centímetros de mim.

Fiquei à espera de que me batesse ou enforcasse, que encontrasse um jeito de vingar a vida que lhe tinha sido tirada tão cedo. Mas ela só ficou ali, com a cabeça inclinada para o lado enquanto me contemplava, os olhos esbugalhados e a pele azulada.

Então ela atacou.

Acordei sem fôlego, agitando o braço contra o vazio diante de mim até entender.

Um sonho. Não passava de um sonho. Levei a mão ao peito, na esperança de acalmar meu coração. Em vez de pele, meus dedos tocaram a capa da minha caderneta. Peguei-a e examinei as páginas montadas com cuidado, repletas de recortes de notícias. Ninguém mandou trabalhar nela antes de dormir.

Eu tinha acabado de terminar a página sobre Kerry Straus quando caí no sono. Ela era uma das últimas pessoas do nosso naufrágio mais recente que eu havia encontrado. Faltavam mais duas, e então eu teria informações sobre cada uma daquelas almas perdidas. O Arcatia talvez fosse meu primeiro navio completo.

Ao observar a página de Kerry, reparei bem nos olhos brilhantes da foto que estava no site em sua memória. O site era feio, sem dúvida criado pelo viúvo entre a rotina sem fim do trabalho e as tentativas de servir algo mais criativo do que macarrão aos seus três filhos órfãos de mãe. Kerry tinha um olhar promissor, um ar de expectativa brilhando ao redor dela.

Eu tirei isso dela.

Roubei e dei para a Água se alimentar.

— Pelo menos você teve alguém — eu disse à foto dela. — Pelo menos havia alguém para chorar por você quando você se foi.

Eu queria ser capaz de explicar como a interrupção de uma vida plena era melhor do que o prolongamento de uma vida vazia. Fechei a caderneta e a botei no baú junto com as outras, uma para cada naufrágio. Havia apenas algumas pessoas capazes de entender o que eu sentia, e mesmo assim eu não tinha certeza se entendiam.

Com um suspiro pesado, me dirigi para a sala de estar, onde as vozes de Elizabeth e Miaka soavam mais altas do que me deixava confortável.

— Lauren! — Elizabeth cumprimentou. Tentei manter a discrição enquanto conferia se todas as janelas estavam fechadas. Elas sabiam como era importante que ninguém nos ouvisse, mas nunca eram tão cautelosas quanto eu desejava.
— Miaka acabou de ter outra ideia para o futuro dela.

Mudei o foco para Miaka. Pequena, de pele escura e sempre de bom humor, ela me ganhou nos primeiros minutos em que a conheci.

— Conte, por favor — pedi ao sentar na cadeira do canto.

A Sereia (Camren)Onde histórias criam vida. Descubra agora