Capítulo 1

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Ela nunca pede perdão. Não é do seu feitio se arrepender. Os dados giram de acordo com seus gostos, as cartas se esparramam na mesa única e exclusivamente se ela permitir. Ninguém nunca se perguntou como é crescer sabendo que todo um reino dependerá de suas ações? Ninguém nunca se perguntou como é para uma menina ter o mundo aos seus pés e seus desejos ao alcance das suas mãos?

Catarina não acredita em destino.
Ela faz seu próprio caminho.
Não há nada entre o céu e a terra que ela não possa controlar.

Ou talvez haja.

A noite cai sob o reino de Montemor. Nas ruas sem pavimento da cidade ao redor do castelo, a energia vibrante de celebração atinge cada morador, rico ou pobre, homem ou mulher. O casamento será no dia seguinte; quando o relógio da torre oeste marcar meio dia, o Rei Afonso Monferrato e a Rainha Catarina de Lurton unirão muito mais que seus reinos, unirão seus corações. Ali, entre o povo, propaga a história de amor dos jovens herdeiros: "uma paixão descontrolada e arrasadora", conta o ferreiro Alexander para a esposa, na mesa da cozinha. "Nunca se viu casal mais apaixonado! Dizem no castelo que os pombinhos não conseguem se separar um minuto", divaga a bela Arthania, filha do padeiro, numa voz alegre e juvenil.
Desde os tempos mais longínquos, as histórias de amor encantaram os seres humanos. As pessoas morrem por amor. Guerras são travadas, acordos de paz são assinados; trovadores nele encontram inspiração, autores sobre ele escrevem.
O amor é aterrorizantemente fascinante.
O povo de Montemor não poderia estar mais feliz em ser testemunha de tamanha história de amor, digna dos contos de fadas que costumam contar a suas crianças.

A verdade, porém, não poderia ser mais diferente.

A luz das velas tremula pelo quarto. A bela rainha, sentada ereta na velha cadeira em frente a penteadeira, desembaraça os nós inexistentes do seu cabelo longo. Seu pensamento, entretanto, esta longe dos ritos de beleza desta noite.
Catarina de Lurton nasceu no reino de Artena. Seu pai, o bondoso Rei Augusto, nunca lhe poupou mimos e agrados. Durante a infância, a menina cresceu como uma bonequinha de luxo, cercada pelos cuidados dos criados. Porém, quando Catarina completou quatorze anos, entendeu, enfim, que existia um mundo além dos tecidos caros e dos penteados bem feitos do seu quarto no castelo. Existia um reino que necessitava ser governado. Seu pai era um rei justo e leal, mas não duraria para sempre, ainda não existia em parte alguma da velha Calia um exilir capaz que dar a vida eterna a um homem. Em poucos anos, o futuro de Artena estaria nas mãos da pequena princesa. Catarina percebeu que ser apenas uma menina indefesa não a levaria a lugar algum. Era preciso mais.
Era preciso ser mais.
Havia uma revolta na mina mais ao sul de Artena. Catarina sempre foi muito inteligente, capaz de vencer o pai no xadrez em apenas um número par de jogadas. Ela não poupou esforços para encontrar uma maneira mais vantajosa de acabar com os rebeldes.
Foram noites em claro na biblioteca do Castelo, pensando, arquitetando. Se ela queria ocupar o trono, precisava deixar a garotinha de olhos assustados guardada dentro de si. Precisava saber sobre estratégias de guerra, acordos políticos, ideais de liberdade. Precisava saber mais sobre o mundo do que sobre si mesma.
Numa tarde, Catarina adentrou o salão do trono com mapas e pergaminhos em mãos.  Exibia um sorriso vitorioso, de quem sabia ter encontrado a solução para um problema complicado. O rei conversava com seus conselheiros, incluindo o jovem chefe de guarda, Darthés. O menino, vindo de uma família numerosa e pobre, alcançara rapidamente o alto posto. Vez ou outra, Catarina o pegava lançando olhares fugitivos em sua direção, o que a deixava envergonhada e lisonjeada, em doses iguais.
-Papai...- A princesa tentava chamar a atenção do rei, que discutia de forma branda com os homens daquela sala - Papai...
Augusto finalmente olhou em direção a filha. Naquela época, ainda apresentava traços joviais, da época que era apenas um príncipe disciplinado, porém, seus olhos brilhantes estavam apáticos, circulados por profundas marcas arroxeadas. Há dias o velho homem não dormia direito, a guerra civil iminente roubava-lhe o sono, o tempo e toda a paz que restava. Ao ver a princesa, contudo, sorriu:
-Minha pequena Catarina, venha cá.
A menina se aproximou, entusiasmada. Prepara o discurso na noite anterior, certa de que encontrara a resposta para os problemas do pai.
E do reino.
-O que são estas coisas em suas maos? - o rei a olhou, curioso
-É sobre a revolta, papai -
Todos voltaram o olhar em sua direção- Acho que tenho a solução.
Risadas explodiram em todo o salão. Catarina se encolheu, irritada. O que era assim tão engraçado?
-O que uma criança pode saber sobre guerras? -Darthés sorria, com as mãos pousadas sobre a espada. Ironicamente, ele não era assim tão mais velho que a princesa - Se me permite, majestade, acho que a princesinha deveria voltar a seus aposentos para as aulas de bordados e deixar que homens adultos continuem a conversa.
O sangue de Catarina fervia em suas veias. Como aquele garoto ousava ofende-la assim? Ela era a herdeira do trono, quem governaria a vida dele dali alguns anos, a quem ele juraria obediência e lealdade, porque não era digna de ser ouvida? Porque era nova demais? Ora, vejam só, o cérebro mais novo é muito mais apto para tomar decisões do que um velho e gasto. Porque ela era mulher? Faça me um favor, onde estariam todos eles se não houvessem mulher para gera-los e cuida-los?
Mas seu pai a ouviria, Catarina tinha certeza. Porém, os olhos cansados do pai a fitaram e contrariando tudo o que ela imaginara, disse:
-Minha filha, por favor, isto aqui não é brincadeira. Você precisa de alguma coisa? Um vestido novo para suas bonecas? Peça a Ana, minha princesa.

Catarina queimou as bonecas bem cuidadas que decoravam seu quarto na mesma noite.

A rebelião foi contida  milagrosamente dias depois, após Darthés surgir com uma brilhante ideia, muito parecida com a de Catarina, por sinal. A princesa encontrou o agora Capitão das tropas no ponto mais alto do castelo, bebendo vinho de um cálice dourado, enquanto observava lá em baixo a multidão festejar.
-Eram belos planos, princesa...- Ele se virou em sua direção. O sorriso cínico em seu rosto denunciava o que a garota já desconfiava: Darthés havia roubado suas ideias.
- Eu sabia, seu...- o homem segurou seu pulso, no mesmo instante q ela tentara atingi-lo com uma bofetada. O corpo dele grudou ao seu, que se contorceu, enojado.
-O que a princesinha queria fazer? Me bater?- Os olhos verdes musgo dele encaravam os seus. Suas bocas, tão próximas, quase roubavam o ar uma da outra. Ele tinha um cheiro podre.
Cheiro de guerra. De morte.
-Escute aqui, majestade. Vossa senhoria quer o trono? Quer governar todo esse reino? - a voz dele era baixa, mas firme - Então não seja uma menininha fraca, esperando ser ouvida. Faça sua voz ser mais alta que o som de mil sinos badalando ao mesmo tempo. Conquiste seu espaço, nem sempre a força te será util. Conheça seus inimigos - Darthés a segurou pela cintura - e conheça ainda melhor seus amigos...
Catarina, aterrorizada, se soltou dos braços daquele homem. Ele se virou para frente, bebericando o vinho.
-Vossa senhoria é fraca demais para governar, princesa. Melhor voltar para as bonecas.

As palavras do menino ecoaram pela mente de Catarina durante dias a fio. Foi assim que ela entendeu que não poderia ficar a margens, afinal era a herdeira, governaria todo reino, sua palavra seria lei. Ela não mediu esforços, a partir de então sempre conseguiu o que queria.  Um pena que Darthés não sobrevivera a uma queda no lago e partira antes de ve-la triunfar.
Catarina se encara no espelho. Ela é linda. Tem uma beleza clássica, com a pela clara contrastando com a cascata negra que adorna seu rosto, ombros e costas. Os olhos escuros, felinos, são como duas facas capazes de ferir com rapidez.
A princesa se levanta, suspirando. Ela percorreu um longo caminho até aqui. Inventou guerras, se aliou a inimigos, mentiu e enganou com facilidade. Chegou até a matar. Em nenhum momento havia se arrependido, afinal, alcançara seu objetivo: o trono é, agora, seu.
Mas aí, então, nesse momento sua mente é tomada pela imagem dele.
Afonso.
O príncipe era, a princípio, apenas mais uma peça no seu jogo, alguém que ela usaria até que não tivesse mais serventia, como fizera com muitos antes dele. Porém, havia algo diferente.
Afonso despertava nela um lado adormecido, um pedacinho de Catarina que ela achava ter sido queimado naquela noite, junto das bonecas. Um lado terno e apaixonado, que sentia o coração pular quando ele se aproximava. Um lado estranhamente bondoso e emotivo, que ansiava por cada simples toque da pele dele na sua. Um lado que a tirava do eixo, que mostrava o mundo de uma forma diferente. Um lado que desejava a todo custo um pouco de atenção.
E ela conseguiu. Eles se casariam daqui algumas horas...
"Mas a que preço?"
Catarina apóia a mãos na cabeça, como se pudesse fazer essa voz sumir. Essa voz que a atormenta desde que se deu conta de que o que sentia por Afonso era mais que atração ou obsessão, é um sentimento mais nobre, um sentimento que ela não é digna de ter.
A rainha caminha pelo quarto, nervosa. Tenta se concentrar. Tudo está perfeito, o trono é dela, Afonso será seu esposo dentro de pouco tempo, o que mais ela pode desejar? A verdade a atinge de forma tão abrupta que precisa se segurar na cômoda antiquada do quarto. Pode até se casar com o rei, mas ela nunca terá o amor de Afonso.
Seus olhos se enchem de lágrimas e por um minuto a Rainha permite que a menina dentro dela chore. Porém,  quando seu olhar recai sob o vestido de noiva esticado na poltrona aveludada do aposento, Catarina se levanta.
A vestimenta, toda em vermelho e dourado, esta impecavelmente disposta sobre o móvel.  A mulher alisa cada parte da roupa, tomando cuidado para que nenhum anel se prenda as linhas bordadas. Olhando de perto, seu vestido de noiva parece feito de fogo e ouro.
Devagar, limpa suas lágrimas, assumindo novamente o controle de suas emoções.
"Afonso pode ainda não me amar, mas um dia, seu coração será meu", sussurra.

Porque ela é a rainha Catarina de Lurton e não há nada que ela não consiga.

Fire and GoldOnde histórias criam vida. Descubra agora