Parte 1 - Apenas uma rosa

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 Jogar meu corpo contra a poltrona foi o mais inteligente a se fazer, se não o tivesse feito meu corpo desmoronaria no chão, encarei o vazio enquanto o ar escapava de meus pulmões, ele queimava em seu trajeto e a cada suspiro meu peito doía como se meu coração tivesse sido alvejado, a culpa era minha era tudo que eu sabia naquele momento, petrificado e sendo consumido por meu abismo particular.
 Aceitar que a alma dela tinha deixado esse mundo era impossível, tinha a sensação de que iria encontrá-la se fosse a sua casa, o homem ao meu lado, tão abalado quanto eu deixou a rosa cair ao meu lado no braço da poltrona, dando as costas para mim em seguida e encarando as chamas crepitantes da lareira.
 Não existiam palavras de consolo, não havia forma de aliviar o vazio que se formava no lugar em que ela ocupava, aquele lindo rosto, delicado e gentil, insubstituível, era ela e somente ela que se encaixaria ali.
 - Preciso vê-la...
 Com as palavras senti o sabor salgado de minhas lágrimas, estava anestesiado e com a face quente que nem as sentira escorrer de meus olhos.
 - Sinto muito, isso não é possível.
 - Tenho o direito de vê-la... Antes que...
 A breve e apagada imagem dela em um caixão me assombrou profundamente fazendo meu corpo se arrepiar.
 - Você é um bom rapaz, mas vim apenas lhe informar por respeito ao tempo que a cortejou, mas ao que eu saiba vocês tinham brigado.
 Ele se virou para mim pronto para partir, mas eu não tinha forças para acompanhá-lo até a porta, nem para brigar pelo minha vontade de se despedir dela.
 - Ela será enterrada ao alvorecer... Eu sei o caminho da saída. 
 Com um breve gesto o velho homem se foi.
 Então foi ali que permaneci, não poderia nem pensar em comer que sentia náuseas, não poderia ousar lembrar daquele rosto belo que a dor aumentava, sentia que seus pais me culpassem a dor seria menor, pois de alguma forma estaria sendo punido.
 As horas se passara, perdi a noção do tempo em que fiquei ali parado, recusei todas as vezes que ofereceram-me algo para comer, de tanto chorar as lágrimas pareceram deixar um rastro escuro e melancólico em minha face, a tristeza deixa marcas características fáceis de notar, minha aura tornou-se nebulosa.
 Me levantei quando me avisaram que me atrasaria para o enterro, mas meus pés, meu corpo se moviam lentamente, sem vida, era um fantasma que andava arrastado por um último propósito que lhe prendia a terra.
 Vesti meu traje negro, mas não era nada especial, a maioria de minhas roupas eram pretas e para mim não tinha nada de sombrio ou triste, mas quando me olhei no espelho após me vestir, aquela roupa pareceu-me extremamente soturna, como de costume coloquei um lenço branco abaixo do pescoço entrando nas vestes e enfim estava pronto.
 No caminho havia várias damas e cavalheiros com guarda chuva, o clima naquela região montanhosa costumava ser imprevisível, mas o aroma trazido pelo vento denunciava a chuva.
 Senti todos os olhares de pena ora ou outra pairarem sobre mim quando entrei no cemitério, até mesmo identifiquei olhares cobiçosos de damas sem bom senso, mesmo assim não me importei, quando cheguei o padre já falava, eu não queria aceitar que ela estava ali. 
 O caixão fechado ainda içado acima da cova enquanto o céu tempestuoso estava acima da cabeça de todos, me dava arrepios, as palavras sem sentido do padre passava despercebida em meus ouvidos e tudo que podia escutar era um contínuo apito agudo que tomou conta de minha mente, imaginá-la lá dentro no escuro, se decompondo, sua beleza se desfazendo com o tempo, não podia ser real.
 As lágrimas voltaram facilmente, senti algumas mãos estranhas e outras até conhecidas pousarem em meu ombro balbuciando coisas que não mudavam nada, como "Seja forte", "Estou aqui se precisar conversar", "Meus sentimentos", "Ela está em um lugar melhor".
 Mas eles não imaginavam como era sentir aquilo, não poderiam. Quando chegou o momento em que cada um devia jogar um pouco de terra  eu não contribui, apenas deixei cair a rosa solitária que havia sido devolvida, meio murcha e escurecida, mas era a última que eu havia dado então deveria ficar com ela fosse aonde estivesse.
 No entanto quando as pétalas tocaram a madeira me perguntei para que? Por que estava fazendo aquilo? Para quem? Ela não faria aquilo, ela não estava ali eu sentia isso, o vazio em meio peito devia ser sobre outra coisa, talvez algo tivesse acontecido, todos os sonhos que eu tivera nos últimos tempos, tinham de significar alguma coisa.
 Enfim veio a chuva e muitos foram embora, escureceu e o caixão foi totalmente coberto e então não havia mais ninguém, mas eu estava lá, encharcado pela chuva enquanto a noite avançava.
 Tomado por uma onda de desespero, sem saber de onde aquilo vinha fui tomado pela dor e pela negação, nada daquilo fazia sentido para mim, eu só acreditaria se visse com meus próprios olhos. Corri até um casebre de ferramentas, não havia uma viva alma para me impedir e com facilidade encontrei uma pá e voltei para o túmulo dela.
 Tudo estava muito escuro e som da chuva me ocultaria a qualquer um, meus braços arderam após enterrar a pá algumas vezes, mas nada me impediria, forcei os olhos para ver o que estava fazendo, eu precisava saber, provar a mim mesmo, tudo foi tão repentino não era possível, a água da chuva pingava de meus cabelos, as mechas grudavam em meu rosto, eu não hesitei.
 Então senti o baque seco da pá contra a madeira, meu coração acelerado pareceu parar, eu não ouvia mais a chuva e o tempo tinha parado, era algo doentio, eu poderia estar ficando louco, joguei o cabelo molhado para traz e agachei para abrir o caixão, a madeira rangeu e de alguma forma pude ouvir apesar das pesadas gotas da chuva.
 Com um pouco de esforço a tampa do caixão subiu, estava escuro demais para ver o interior que começava a se encher de água, com as mãos trêmulas coloquei as palmas acima de onde deveria estar o rosto dela, as lágrimas rolaram e o medo de sentir sua pele fria me atormentou, aos poucos aproximei gradativamente, para então tocar o fundo úmido e vazio do caixão.
 Soltei um gemido, metade de alivio e a outra de sofrimento, sorri por um instante como se finalmente acordasse de um terrível pesadelo, meu corpo inteiro doía, principalmente os músculos do rosto e o maxilar, aquela dor me lembrava do quanto tinha chorado, mas naquele momento era um pouco de felicidade.
 Minha amada não estava ali.
 Repentinamente uma luz branca me iluminou vindo de cima, poderia ser um sinal divino? Não para mim, eu não sou o tipo religioso, escalei o buraco para ver que a fonte de luz era uma misteriosa mulher, não era sua amada, estava de gostas num vestido branco pulsante e rasgado, vi parcialmente seu rosto quando ela se virou levemente e deixou cair a rosa, em seguida caminhou para longe desaparecendo gradativamente, eu não tive coragem de chamá-la de volta, caminhei até o ponto onde ela estava minutos depois e apanhei a flor, era a mesma que havia deixado sobre o caixão.
 Guardando a rosa no bolso tive de cobrir o túmulo outra vez, deixei tudo onde estava, a ansiedade tomou conta de mim, eu tinha de ser rápido e descobrir o que havia acontecido com a mulher que eu amava, sabia que pessoas estavam mentindo para mim e eu iria descobrir a verdade.
  

A última rosaOnde histórias criam vida. Descubra agora