Capítulo 1 - Solidão

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Ah, que saudade da minha vida normal. Quando eu pensava que era mais inteligente do que a média. Que tudo que existia era aquilo que estava ao alcance das minhas mãos – muito embora eu acredite na Angelina Jolie, mesmo ela não estando ao meu alcance – e achava que a ciência podia explicar tudo. Bom, não que não possa. Pode, mas não quer. Não nesse caso específico. Daqui a pouco você vai entender do que eu estou falando. Eu estou só começando essa história. Ou estória? Isso é você quem vai decidir. Eu, particularmente, não acreditaria, tal como nunca acreditei em qualquer religião, espírito, ou essas outras coisas que a ciência não pode explicar.

Eu lembro, quando eu era criança, acho que na primeira ou segunda série, eu ficava sentado no muro que dividia as salas de aula do pátio do Colégio Bom Conselho – Não, não era uma filial daquele colégio chique de Porto Alegre. Era uma escola pública, e muito humilde, diga-se de passagem. Eu ficava ali, sentado sobre as mãos, quieto, observando as outras crianças brincarem, e as nuances do relacionamento humano, ainda que quase sempre nós não tenhamos a mínima ideia de sua existência. Eu conseguia, já naquela época, ter uma percepção sobre tudo o que estava acontecendo ao meu redor, prevendo situações. Mas não aquela previsão de paranormais. Eu conseguia prever as situações baseado em observação e conhecimento prévio.

Podia, por exemplo, imaginar que a Bianca não ia gostar nada quando soubesse que não tinha mais o seu sanduíche de frango na cantina. Mas ela não tinha chegado até a cantina. Não ainda.

Eu tinha conhecimento de que todas as quartas feiras ela trazia lanche de casa, mas nesse dia ela carregava a lancheira com menos esforço do que o normal, o que indicava que algum compartimento encontrava-se vazio. Embora houvessem gotículas de umidade na parte de fora da garrafinha que acompanhava a lancheira da Minnie. Ela havia levado somente o suco de uva que sua mãe costumava mandar, porém não o sanduíche de frango, ou sua fruta favorita – Era maçã, a quem interessar, mas isso é irrelevante nesse momento. Na terça feira anterior eu vi a dona Elisa no mercadinho, reclamando com o açougueiro por não ter frango. A dona Elisa era a dona da cantina da escola. Uma senhora grande e gorda, e com uma incrível cara de mal humorada. Todos nós tínhamos medo da Dona Elisa. Fiquei com pena do pobre açougueiro. Não devia ser muito bom levar uma bronca desta senhora tão robusta, tanto física quanto socialmente. Mas, enfim, Isso não é nada que uma pessoa comum não possa imaginar com um pouco de dedução e observação - diria Sherlock Holmes ao seu parceiro. Nada incrível, mesmo pra uma criança.

Eu adorava sair para brincar no pátio do colégio. Não vá pensar que eu era um menino quieto. Muito pelo contrário. Adorava correr por todos os lados. Mas não naquele dia. Naquele dia eu precisava ver minhas imaginações se concretizando. Precisava ficar ali, sentado sobre as mãos, no muro em frente à sala onze, pra ver aquela menina baixinha e loirinha, com um profundo olho azul e um dente faltando, bem na frente, tendo um ataque porque as coisas não haviam saído como ela queria, na hora que ela queria. E, de fato, minhas imaginações tomavam forma, bem ali, na minha frente. Tudo que eu havia fantasiado juntando os cacos, finalmente se realizava. Como se eu visse um copo caindo e estilhaçando no chão, só que em câmera reversa. Eu via todos os caquinhos se juntando pra formar novamente o copo que fora outrora.

Mas isso foi só um exemplo. Acho que nem foi um exemplo tão bom assim. Mas assim foi toda a minha vida. Eu sempre vi os cacos estilhaçados jogados pelo chão, e, invariavelmente, eles viravam um copo. Até aí tudo bem. Talvez eu fosse ser um bom detetive, ou quem sabe um médico tipo Dr. House quando crescesse. Ah, que boa teria sido a minha vida.

Pois bem, vamos ao princípio de tudo. Eu morava em uma cidadezinha bem ao sul do Rio Grande do Sul, chamada Solidão. Nunca ouviu falar? Nem eu, desde que fui embora. Era uma cidade litorânea, com algo em torno de mil habitantes. A cidade toda havia sido uma fazenda, que fora loteada, transformando-se em uma cidade. Uma pequena cidade. Mais especificamente de 3km por 2km. A entrada da cidade se dava por uma estrada vinda de outras cidades litorâneas, cuja mais próxima ficava a trinta quilômetros distantes. Na outra ponta da cidade, exatamente três quilômetros adiante, era o final da cidade, limitada pela ponta da península que forma o litoral do Rio Grande do Sul. Entre o mar e a Lagoa dos Patos, distantes por pouco mais de dois mil metros, estendia-se Solidão. Acho que, pelo nome da cidade, pode-se imaginar como eu me sentia lá. Entre os pouco habitantes, morávamos minha mãe e eu. Meu pai? Não conheço, e nem tenho vontade.

The Golden Book - Volume I: Os Contos do Livro DouradoOnde histórias criam vida. Descubra agora