A verdade nunca dita

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"You know that I can't

Show you me

Give you me

초라한 모습 보여줄 순 없어

또 가면을 쓰고 널 만나러 가

But I still want you."

(The truth untold - BTS)



     O homem agitou a lata de spray e pressionou a válvula com o dedo indicador até o jato de tinta verde sair. Ainda precisava terminar de colorir as folhas do jardim que estava desenhando no muro leste do prédio e aquela era a última lata de tinta verde que ele tinha, o que significava que precisaria sair e assustar alguns moleques grafiteiros novamente para conseguir mais. Era algo que ele vinha fazendo há tanto tempo que perdera as contas de quantas vezes já fizera.

     Vivia num prédio condenado e abandonado - como ele próprio -, mas não recordava desde quando estava ali. Aquela estrutura cinza de sete andares, afastada da agitação da cidade e das pessoas que nela viviam, era como seu próprio castelo. O homem não precisava usar a máscara e nem se esconder quando estava lá dentro. Ali não havia ninguém incomodando-o ou apontando a deformidade de seu rosto ou sua incapacidade de socializar como uma pessoa normal. O homem estava inteiramente só. 

     Quando descobriu que era possível pintar as paredes com tintas spray de variadas cores, encontrou um propósito para sua solidão - faria os mais belos desenhos que ninguém jamais vira ou veria, e se deleitaria sozinho admirando seu próprio trabalho. Algumas idas aos bairros de periferia onde os moleques pixavam ruas e paredes sempre lhe rendiam algumas tintas, desde que ele os assustasse o suficiente para botá-los a correr. Ao longo dos anos, ganhou um apelido - o Feioso - e ficou conhecido por alguns bairros como uma espécie de homem-monstro que espantava adolescentes, cujo rosto ninguém conhecia, mas que todos sabiam ser horrendo. E era. O homem já vira o próprio reflexo e ele mesmo se assustara. Não havia nada em sua face que pudesse ser descrito como belo, atraente ou mesmo normal e por isso ele a escondia sob uma máscara preta de pano, como um assaltante noturno.

     Em seu prédio, porém, não havia necessidade de máscaras. À noite o homem saía para desenhar nos muros do lado de fora e durante o dia pintava lá dentro. A arte tomava todo o seu tempo e ele sentia que era uma forma preciosa de gastá-lo. Tinha íntimas esperanças de que um dia, depois que ele se fosse, alguém encontrasse tudo aquilo e compartilhasse com o mundo o que o homem vinha guardando apenas para si durante todos aqueles anos.

     Era madrugada quando o homem vestiu seu capuz e deixou o prédio. Era fim de julho e estava frio, por isso ele vestiu luvas grossas e um casaco de lã da cor do asfalto. Caminhou durante um longo, longo tempo numa quietude sem fim que o fazia sentir ainda mais solitário no meio da cidade cheia de gente adormecida. Cabeça baixa, ombros encolhidos e costas arqueadas, como sempre. A periferia estava a apenas uma dúzia de quarteirões de distância e as pernas longas do homem agradeciam por serem exercitadas. O único som que ele escutava era o pisar de seus sapatos e sua própria respiração quente que ia de encontro à temperatura gelada da rua. Ao seu redor, as lojas estavam fechadas e as luzes das casas e prédios apagadas. Apenas os postes e semáforos iluminavam seu caminho. O homem escondeu-se atrás de uma larga caçamba de lixo quando um guarda noturno passou por ele de moto e esperou até o som do motor desaparecer no fim do quarteirão. Não demorou muito para que ele encontrasse um beco recém abandonado. Mergulhando na penumbra, fuçou nas sacolas e tralhas que viu jogadas num cantos, mas não havia ali nada do que ele precisava. Partiu para o próximo beco e o beco seguinte e assim sucessivamente até cansar-se. Nada de tinta verde para seus desenhos. Às vezes situações como essa aconteciam e ele acabava sem sorte alguma: a polícia chegava primeiro, colocava mais medo nos moleques do que o próprio Feioso e de quebra destruía qualquer material que era utilizado para pintar. Era proibido colorir os muros da cidade e todos sabiam disso.

     Um tanto derrotado, o homem retornou sem pressa para seu castelo abandonado e solitário. Escalou um andaime decadente até o projeto de janela do quinto andar e tirou a máscara preta para assistir ao nascer glorioso do sol. Queria desenhar aquela bela visão e eternizá-la nos muros do prédio. O homem acreditava que algum dia, num futuro não muito distante, as pessoas não seriam mais capazes de ver o sol nascer daquela maneira. Elas não prestavam atenção ao que era verdadeiramente belo. Era só uma questão de tempo até que não pudessem mais enxergar beleza em lugar algum.

     Decidiu desenhar flores azuis. Azul era a cor que mais o agradava e ele estava determinado a desenhar flores que ninguém nunca havia visto antes, flores que ele mesmo imaginara. Escolheu as tintas adequadas e os pincéis que não estavam totalmente gastos e começou sua obra na parede mais escondida do prédio, bem ao fundo da construção. O homem estava determinado a fazer daquele desenho seu tesouro. Traçou linhas retas, curvas, acentuadas, evidenciando as pétalas das flores, uma vez que não tinha tinta verde para as folhas e caule.

     Foi quando estava prestes a terminar de colorir a última pétala que ele escutou um ruído.

     Flash.

     Todo o seu corpo ficou rígido e ele não foi capaz de mover um músculo. Não tinha coragem suficiente para olhar para trás e descobrir que tipo de coisa faria um som como aquele. Nunca, em todos aqueles anos, escutara sons que não fossem feitos por ele mesmo ou por pássaros e pequenos animais que apareciam vez ou outra para atormentá-lo. Nunca.

     Flash.

     Outra vez. Por puro instinto, o homem deixou uma lata de tinta spray cair e correu para trás de uma das colunas do estacionamento inacabado do prédio. Pegou a máscara de dentro do bolso do moletom surrado e vestiu-a apressadamente. Então decidiu espiar.

     A visão que teve definitivamente não era o que ele esperava. Havia alguém ali, perambulando de um lado para o outro com uma câmera fotográfica em mãos e fazendo barulho com os sapatos. Uma pessoa de verdade. Uma mulher. O homem ficou tão transtornado que sentiu vontade de fugir. O que uma mulher fazia em seu território particular, em seu esconderijo seguro, em seu castelo protegido? E tirava fotos! O que aconteceria se ela o visse? O que ela pensaria se pusesse os olhos nele e se deparasse com tamanha feiura? E se o fotografasse? Seria o fim de toda paz e sossego que o homem conhecia. Mais pessoas viriam e veriam quão horroroso ele era. Elas ficariam assombradas e o feririam com suas palavras cruéis. O homem entrou em pânico.

     E, nesse instante, a mulher o encontrou.




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