PRÓLOGO

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Era um típico dia de outono em Gramado, as cores da cidade já começavam a mudar, as árvores despiam-se do verde e encarnavam aos poucos o vermelho e o dourado. E eu sempre achei irônico cores tão vivas anunciarem a chegada do tempo frio.

A mudança era perceptível também nas ruas da cidade que tornam-se úmidas com a chegada do nevoeiro aos fins de tarde. É como se Deus com apenas um único toque conseguisse alterar todo um cenário, mas eu nunca entendi muito Deus.

Sempre gostei dessa época do ano, para mim sempre foi uma época de introspecção, de pensar nos meus acertos e tentar reverter os meus erros e assim me renovar a cada dia, como as folhas velhas que caem dando início a um novo ciclo.

E foi naquele dia que tudo aconteceu. Era um sábado de manhã e meus pais fizeram questão da minha companhia a um casamento de um amigo da família, a contragosto confirmei a minha presença porque fazê-los felizes tinha se tornado o meu objetivo, afinal eles já eram idosos e eu não sabia quanto tempo ainda me restava com eles.

A cerimônia seria a noite em Canela, não muito longe daqui e seguiríamos de carro até lá. Durante o resto do dia me diverti na casa de um de meus muitos amigos da época, hoje me restam apenas um ou outro, posso contar com os dedos de apenas uma mão.

Regado a uísque caro e a petiscos finos conversávamos sobre negócios e nossas últimas conquistas no mundo feminino, que eram muitas, ao menos para mim. Sempre escolhi as mais belas mulheres, mas naquela época em especial estava interessado em algo mais sério com uma mulher que hoje afirma não poder andar ao lado de um homem como eu.

É válido salientar que em certas situações dinheiro e poder não fazem de ninguém especial e é esse o meu caso. Naquele fatídico dia era chegada a hora de sair com meus pais para o tal casamento e eu que já havia bebido um pouco achei que estava bem para ir dirigindo, mesmo sob protestos dos meus pais.

Eu pensava que dirigir alcoolizado nunca fosse me trazer problemas, eu sempre mantive o controle da direção após uns drinques e não eram umas doses de uísque pela tarde que iriam me derrubar durante a noite. Mas naquele dia o destino resolveu brincar comigo e desde então eu nunca mais fui o mesmo.

Cansado de tentar meu pai sentou-se no banco do carona e minha mãe no banco de trás, a noite estava agradável apesar da chuva fina e do nevoeiro prejudicar um pouco a visão e por este motivo eu dirigia com atenção enquanto conversava com meus pais.

Durante o percurso eles foram relaxando e o clima entre nós mudou completamente, minha mãe dava gargalhadas lembrando de coisas da minha infância e meu pai estava feliz e relaxado com o rumo da conversa.

Me lembro que em uma certa curva já próximo a Canela me distraí por um momento enquanto interagia com a minha mãe e só o que tive tempo de ouvir foram as últimas palavras de meu pai, cuidado Antônio, o caminhão.

Naquele momento eu pude ver a van que invadia o nosso lado na pista e se aproximava rapidamente do meu carro, mas naquele dia eu não tive reflexo e a minha última visão foi da van batendo violentamente e embocando o carro, me lembro também do cheiro de fumaça e do meu pavor e preocupação com meus pais, eu só pensava neles. Depois disso uma escuridão me invadiu e eu não me recordo de nada que aconteceu posteriormente.

O inconsciente predominou e mesmo que eu quisesse ou tentasse reagir não tinha forças, eu ouvia ruídos e vozes quase a todo instante mas por mais que eu forçasse, meus olhos não abriam e minha voz não saia. Era o inferno disfarçado de coma induzido e eu merecia pagar tudo o que me fosse cobrado.

Uma eternidade parecia ter passado até que meu corpo desse os primeiros sinais de reação, já conseguia ouvir comandos de quem na época imaginei ser o médico, e a muito custo obedecê-los. Em minha mente se passavam flashes do acidente que sofri e eu me perguntava o tempo todo como estavam os meus pais.

Dias depois fui liberado do que pensei ser o meu calvário, mas mal eu sabia que meu juízo final ainda não havia chegado. Quando finalmente abri os olhos, muito confuso percebi estar em um hospital e a medida que meus batimentos cardíacos aceleravam pela emoção o Monitor de Sinais Vitais fazia seu trabalho em perpetrar um barulho agudo que quase me fez gritar devido a sensibilidade de meus ouvidos naquele momento.

Fui informado pela equipe médica que meu coma se deu devido ao traumatismo craniano e as queimaduras pelo corpo que sofri e que meu estado de inconsciência foi provocado pela equipe médica através de drogas sedativas. Naquele momento eu nem me importei com queimaduras, na verdade eu nem me atentei ao fato, eu só queria saber dos meus pais e quando o médico me explicou tudo o que aconteceu meu mundo parou de ter sentido.

Meus pais haviam falecido a um mês atrás naquele acidente, acidente que eu causei pela minha teimosia e egoísmo e eu nem pude dar um último adeus. Esmagado pela culpa eu me fechei para o mundo no mesmo instante e já não me importava se sairia dali com vida ou não, eu não iria mas lutar.

Depois de um tempo e uma nova sedação tive a segunda terrível notícia, esta que faria me lembrar para sempre do meu erro. A notícia boa era que meu cérebro havia desinchado completamente e a má era que o motivo de meu rosto está enfaixado era que eu havia sofrido queimaduras de 2º e 3º grau no rosto e minha pálpebra esquerda havia atrofiado limitando assim a minha visão e durante os dias que fiquei desacordado fiz reposição de líquidos e enxertos de pele.

Apesar de todas as péssimas notícias e as dores insuportáveis que as acompanhavam nada me preparou para o que veio depois, me olhar pela primeira vez no espelho e enxergar o novo eu, cheio de defeitos e culpas. Eu já não reconhecia mas o meu reflexo, o homem bonito de antes deu lugar ao homem cheio de cicatrizes.

Durante todo o tempo que permaneci no hospital poucas pessoas foram me visitar e desde então pude perceber que o meu destino era seguir sozinho e eu nem queria a companhia de alguém, tudo o que eu queria era me fechar em meu mundo e sentir a minha dor sozinho, me culpar.

Eu tinha perdido tudo e achava injusto seguir a minha vida normalmente enquanto meus pais tinham perdido a deles. O medo do julgamento e a vergonha das minhas cicatrizes tão aparentes fizeram eu me fechar para o mundo, me tornando o que sou hoje, um homem frio, amargurado e sem coração vivendo meu luto de forma tão intensa e substancial. Esse sou eu e essa é a minha história.

O Mascarado - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora