Wendy: Tradições

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Um nódulo luminoso pairava sobre as pontas dos dedos finos e esbranquiçados de uma das garotas, cortando a densa escuridão da gruta com uma luz fria, cor-de-safira

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Um nódulo luminoso pairava sobre as pontas dos dedos finos e esbranquiçados de uma das garotas, cortando a densa escuridão da gruta com uma luz fria, cor-de-safira. Ela, diferentemente das outras, estava submersa até a cintura nas águas foscas do rio que tornavam impossível saber o que se escondia um pouco abaixo da superfície. O espaço dentro do ambiente fechado não era grande, os pontos mais afastados tinham vinte metros de distância entre si e o teto projetava-se há seis metros do chão. A luz rosa-alaranjada que entrava foragida pelo pequeno arco de pedra que servia como portal misturava-se ao azul e lambia as estalactites presas no alto, formando espectros coloridos.

A mais jovem das mulheres, Wendy, estava sentada em uma das pedras fora da água, seu corpo semi-nú esbanjava curvas marcantes, era dona de um quadril largo e uma cintura mediana. Seu físico não era delicado, pelo contrário, inspirava um ar de imponência e seriedade. Sua cauda, com um metro e meio de extensão, enrolava-se na rocha. Os cabelos volumosos e cacheados caíam pelos ombros, ornamentando seu rosto. Os olhos, tão escuros quanto as sombras da caverna, tornavam-na peculiar para uma sereia, a cor forte se destacava entre as demais, que variavam de um verde-claro até um branco opaco e acinzentado. Ela trincou os dentes e balançou descontentemente a cabeça para os lados em um último sinal de revolta, afinal, qual era a necessidade de participar daquele ritual? Louvar uma besta irracional e tão fácil de controlar? Se havia algo mais decadente, ela desconhecia.

-Não faça esse olhar de peixe morto, Wendy! Quando Celestina te ver assim vai acabar fugindo...

Alice, a mais velha das três, equilibrava-se atrás de Wendy, se apoiando nos ombros da filha e no acúmulo de pedregulhos e água. Ela separou os cachos da garota e trançou-os com sutileza e agilidade, para segurar o penteado colocou uma tiara com safiras encrustadas em suas veias de prata.

-Não seria desagradável se isso acontecesse, ela é só um dragão, mãe. - Proferiu com rancor.

Do lado de fora da caverna, um estrondo ecoou, um som seco e áspero. Alice apurou os ouvidos e olhou ao redor, não encontrou nada anormal.

- Fiquem quietas, volto já.

A garota submersa deu uma risada quando Alice, em um poderoso salto, mergulhou nas águas e desapareceu, deixando apenas um rastro de ondulações desordenadas para trás. Ela ajeitou os cabelos tão negros como os das duas outras sereias e colocou-os atrás das orelhas, seus olhos verdes pousaram sobre Wendy que buscava hesitante soltar seus cachos da prisão que era a tiara de sua mãe.

-Quem dera eu tivesse sido escolhida para ser uma sacerdotiza. Você tirou a sorte grande, sabia?

Antes de responder, seu corpo travou, o mundo pareceu travar junto corrompendo-se lentamente em sombras. A única coisa que continuou visível e estável foi o sorriso daquela sereia, um sorriso que quanto mais Wendy observava, mais insano e obsessivo tornava-se. Tudo ficou completamente negro, deixando apenas o sorriso.

"Acorde, criança."

***

Quando recobrou a consciência, sua cabeça latejava, uma dor aguda que ia e vinha, sentia fortes náuseas, tudo parecia rodar. Apoiou-se em algo que era áspero e seco, tentou mover-se mas seu corpo estava pesado demais. Olhou para baixo e sentiu as náuses voltarem, onde estava sua cauda? Aquilo eram PERNAS? Não, não podia ser. Olhou ao redor e prendeu a respiração com o susto, a situação, apesar de parecer impossível, tinha piorado:

ÁRVORES? AQUELA COISA SECA ERA UMA ÁRVORE?

Aquilo não era bom, se as árvores estavam à sua direita e não havia nada à sua esquerda além de um campo aberto, Wendy não estava apenas fora do santuário, estava longe dele, atrás da barreira natural que os colossais troncos de árvores formarvam.

Ela não se lembrava de nada, como poderia simplesmente ter acordado lá e daquele jeito? O que sua mãe diria?

-Mas que porr...

Respirou fundo, ficar estressada não iria ajudar, nada iria.

Apesar de assustador, ela estava do lado de fora, essa era a chance de realizar seu sonho: Conhecer os segredos do mundo que seus tutores jamais lhe contaram. Algo dentro dela lhe dizia para continuar.

-Eu preciso voltar agora.

Estava respirando tranquilamente.

-Eles vão me matar!

Tinha um par de pernas perfeito.

-O que aconteceu?

Ninguém poderia impedi-la, n i n g u é m.

***

Tentou dar alguns passos sozinha, quase caiu. Tentou novamente, dessa vez deu um pouco mais certo, andar não era tão simples quanto ela pensava.

Wendy, apesar das dificuldades, pegou o jeito rapidamente, com meia hora de treino ela já estava conseguindo correr. Ah, correr... Uma sensação de liberdade, um frio na barriga por estar fazendo algo proibido, o medo do desconhecido, tudo isso borbulhava em seu estômago, junto e misturado.

Por falar em estômago, o seu logo começou a emitir sons estranhos, algo que nunca havia acontecido antes. Uma dorzinha chata e incessante também apareceu na sua barriga e não dava nenhum sinal de que iria embora tão cedo.

A sirena parou de correr, exausta e com aquelas sensações esquisitas atrapalhando-a. Andou por mais algumas horas até avistar algo estranho, de longe era difícil enxergar, a única coisa nítida era a silhueta lupina levemente escondida atrás de alguns arbustos. Ela apertou os olhos, pouco a pouco a fera começou a ficar maior e mais visível, estava correndo em sua direção.

-Não, não, não...

Respirou fundo, era uma sereia e deveria conseguir se defender sozinha. Semicerrou os punhos, seus ouvidos apuraram-se, a fera pareceu ficar mais lenta por alguns instantes, achou engraçado o fato de conseguir ouvir as batidas em seu peito. Tomou fôlego mais uma vez

E então cantou.

A voz doce se alastrava pela floresta acalmando até o vento furioso que passava. O lobo relutava para conseguir manter seu ritmo, a cada salto que dava para pular um obstáculo seu corpo ficava mais cansado, quando chegou aos pés da garota já quase não possuía energia, apenas uma fraca reserva que, em um movimento ágil, foi gasta para efetuar um arranhão no ombro direito da sereia. Uma dor excruciante alastrou-se pelo seu braço, o sangue jorrava quente. Ela deu alguns passos desordenados e caiu, suas mãos e pernas tremiam, sua boca salivava, sua visão começou a vacilar.

A jovem escutou passos cada vez mais altos até não conseguir mais se manter consciente, caindo em um sono profundo sem a certeza de que acordaria novamente.

Wendy e A Besta Dos Nove MaresOnde histórias criam vida. Descubra agora