Tão súbito que nem se percebeu, a tarde já se ia, trazendo o pôr do sol. Os pássaros cantavam suas últimas melodias, pois tão logo a noite chegasse cessariam o canto e obedeceriam a seu relógio biológico, que determinava que dormissem assim que escurecesse.
No entanto, avô e neto estavam sentados na pequena sala assistindo a um programa chato de TV que só passa aos domingos ― porque só tem programa chato no domingo, claro ―; o avô com seu cachimbo absorto no programa e o neto desenhando uma história ― ele adorava fazer isso nas tardes de domingo na casa dos avós. Enquanto isso, a avó estava na cozinha preparando o café.
Depois de certo tempo ter passado e o neto ter avançado consideravelmente em sua historinha em quadrinhos, o avô deu uma última baforada no cachimbo, apagou as pequenas brasas e perguntou:
― Ô Marquinhos... ocê quer ouvir um causo?
O menino levantou os olhos no mesmo instante; adorava os causos do avô, mas não se atrevia a ficar amolando para ele contar pois, afinal de contas, o avô era bem severo.
― Quero sim, vô.
Guardou a caneta no estojo, o caderno e o estojo na mochila e parou para ouvir.
― Isso faz muito tempo, bem antes de ocê nascer e do seu pai nascer... escutei isso quando tinha a sua idade, mais ou menos...
"Tinha uma pequena fazenda em Carvalhos, uma cidadezinha pra lá de Aiuruoca e Araxá, onde vivia uma família pequena, de quatro pessoas: um casal e dois fios. Esses dois moleques eram uns pestes, aprontavam que só eles. Amarravam latinhas no rabo do gato, trançavam o rabo do cavalo, assustavam as galinhas a ponto delas não botarem por dias... eram uns diabos!"
― Puxa, que maldade!
― Eram moleques, fio, e moleques são assim memo, num tem jeito.
― Eu não sou assim, vô.
― Ocê é um em um milhão. Mas esses... esses eram pestes demais da conta.
"Um belo dia, os dois saíro pra pescar num ribeirão ali pertinho, e ficaram lá por horas e horas e horas, até chegar o finalzinho de tarde, que nem esse aqui. Quando a cestinha deles já tinha a quantidade de peixes que eles queria, saíro dali pra ir pra casa, sem antes passar perto da vendinha de um amigo do pai deles, o Seu Amaro, pra filar algum doce, como era de costume."
"Chegaro na vendinha quase à noitinha, e tava abarrotado de gente. Muitos compadres do pai deles tavam lá, bebendo feito uns gambás. Seu Amaro já avistou os dois e logo de cara foi preguntando:
― O que que oceis tão fazendo aqui a essa hora?
― Uai, Seu Amaro ― disse o mais véio ― Nóis tava lá no ribeirão pescando, e na vorta pensamos em passar aqui e pedir pro sinhô um docinho, né?
― Pensaro, né? Tá bom, seus peste, vou pegar uns doces de abóbra, pode ser?
― Pode, sim, sinhô.
― Tá, isperem aí, intão.
Os dois moleques isperaro ali, quietinhos, meio intimidados com aquele alvoroço de homens bebendo, cantando e jogando. Foi quando o mais véio escutou uma conversa entre dois homens numa mesinha do lado: um era bem barbudo e usava um chapéu de aba caída de couro, e o outro era magricela e usava um boné surrado e um bigodinho ralo. O barbudo é que falava:
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Tesouro do Enforcado (Conto)
Short StoryNum fim de tarde, durante uma visita do neto, um avô conta um dos seus costumeiros "causos". Entre uma baforada e outra no cachimbo, ele narra para o menino a história de dois irmãos do interior de Minas Gerais que desafiaram o medo em busca de um t...