Abandonando todas as defesas

427 50 21
                                    

Com amor, Mar.
_

"Vi,

O sol surge aos pouquinhos no cantinho do céu, e ele tá exatamente do meu tom favorito. Está frio nessa madrugada que te escrevo, eu estar vestindo aquele conjunto de moletom horrível comprova isso. Ainda assim, tremo, e a água congelante do mar se chocando com meus pés inquietos não me ajudam muito. A verdade é que eu não estou ligando muito pra nada ao meu redor, tudo está diferente, e nem mesmo a mim, eu encontro.

Eu estou por toda a noite acordada, e só agora tive a coragem de sair da cama, caminhei sozinha até a praia deserta que fica bem em frente a casa que estou morando. Você gostaria daqui. Vim aqui te escrever essa carta, meu coração procura por tua presença e não acha.

Tudo seria mais fácil se você não estivesse em literalmente qualquer coisa ao meu redor. Você está nesse céu rosado bem a minha frente, está no mar mansinho que toca meus pés, está no frio que atormenta todas minhas entranhas, pois era nele que você costumava se juntar a mim na cama, junto com suas meias coloridas e esse teu sorriso-abrigo. Tu está na lua que desapareceu, está no sol que surge devagarzinho nesse céu limpo, está nos meus pensamentos, que insiste em se direcionar exclusivamente a você, sempre. Está nas lágrimas que eu agora deixo cair, está cravada em minha alma e em meu coração, e eu juro, juro por tudo, que já tentei te tirar daqui mas não consigo.

Hoje eu clamo por ti, era mais um dos dias que eu não havia conseguido suportar a tua ausência, e eu venho me sentindo assim com tanta frequência que me preocupo. A dependência que eu sinto do teu ser é algo jamais sentido por mim em relação a outro alguém, é como um vício.

É que é tão mais fácil quando tem você pra dormir junto, pra acordar junto, viver junto, pra me contar dos seus dias seguros, Vi

Eu sei que é estranho eu estar te escrevendo isso depois de tantos meses, e não entendo nem porque sigo escrevendo, sendo que talvez eu nem mesmo tenha a coragem de chegar a te enviar, talvez seja apenas um meio de desabafar a saudade que tu me faz sentir.

Tem ausência, tem saudade. Tem lembrança de felicidade.

Lembrança de quando a gente cantava "um dia após o outro" embaixo do nosso céu preferido. De quando você me ligava todas as noites e me aguentava choramingar sobre a faculdade e o quanto ela me massacrava, sempre me aconchegando com tuas palavras e até mesmo com teu silêncio. De quando chegamos a São Paulo juntinhas, igual dois bichinhos do mato, eu toda acanhada, te olhava fixamente e me perdia no teu jeitinho. Tu sempre foi inspiração pra o meu existir. De quando gravamos o EP, onde naquele estúdio, dividindo o sofázinho minúsculo contigo, achei meu lar.

De quando ali, deixei de ser uno, unicamente Ana Clara Costa Caetano, pra ser Ana Caetano, ou como eu prefiro, só Ana, o início de duo, o início de nós.

Lembrança de quando eu voltei pra Araguari e quando me despedi chorando de ti, na época eu nem tinha noção , mas hoje entendo, havia sido como deixar meu coração pra trás. E é lembrar do teu sorriso grande me chamando pra dividir o dia a dia contigo, que aquece por completo o meu peito. Esse foi o dia que mais te achei maluca, mas rapidinho eu entrei nas tuas maluquices e do nada já tava sendo maluca junto a ti, no nosso ninho, enquanto praticamente sambávamos em cima da enorme quantidade de plástico bolha e trocávamos gargalhadas sem motivo algum.

Foi naquele dia que eu percebi que meu coração se desmontava todo com teu sorriso e que teu olho cor de marte ser minha maior distração não era em vão. Eu já estava apaixonada, sem nem mesmo sentir teus lábios, sem te tocar, mas a verdade é que eu já era tua antes mesmo de tu querer me ter. Quando me vi, tu estava alojada em mim da maneira mais Ana que existe, nas minhas canções.

Dai tu me beijou. Sem muito cenário, mas não foi necessário. Eu te dediquei mais uma música e tu só me observava, ali, as duas sentadinhas no sofá da nossa salinha quase sem móveis, toda atenta, enquanto levava a xícara de chá que eu havia feito, lentamente, pra boca. Meu eu tímido se manifestou, minhas mãos suaram e meu coração palpitou. Eu estava nervosa, e tinha motivo. Cor de marte foi, pela primeira vez, cantada pra inspiração dela. Eu havia pedido. Me prova, me enxerga, me sinta, me cheira. Se deixa em mim. E tu assim o fez. Acho que nunca senti algo tão forte na vida, foi a primeira vez que fui capaz de sentir o amor de sua maneira mais intensa.

Dai por diante a gente se grudou mais ainda. Eu amava acordar com teu beijinho no meu pescoço, amava te ver com a carinha de sono sorrindo em minha direção, me fazia me sentir a mulher de maior sorte no universo. Eu te tinha. Amava sem tanto teu jeitinho concentrado de tentar fazer um café da manhã que se preze só pra me agradar, amava quando tu me chamava de Ninha quando na verdade era eu que me aninhava em teu corpo todas as noites. Amava o fato do teu quarto ter virado o de visitas, amava quando tu, toda animada, fazia carnaval logo cedo mesmo sendo uma terça-feira, dia completamente menosprezado pelas minhas teorias bobas.

Vi, eu amava dividir a vida contigo, dividir a casinha, dividir o palco, dividir meu nome com você. Amava teu beijo em todas as versões já experimentadas por mim, amava fazer amor enquanto você me dizia besteira. Eu amava o nosso amor. Amava te ver me amar e amava tanto te amar.

Onde nos perdemos?

Eu também sei que não posso, e não tenho o mínimo direito de cobrar tua presença enquanto eu mesma me fiz ausente. E chego na conclusão que talvez eu tenha algum problema, pois sempre dou um jeito de me desfazer de algo e depois sentir falta. Aconteceu o mesmo quando, com sete anos, dei o ursinho Alfredo pra minha priminha e passei toda a noite chorando sem ele. Ou quando troquei minhas cordas de Nylon pelas de Aço, alegando as de aço serem melhores, e na primeira canção que fui tentar tocar, eu, e as pontas dos meus dedos, ja sentimos falta. O maior problema é que, o ursinho Alfredo voltou pra mim após uma conversa de mamãe com minha Tia o pedindo de volta, e que as cordas de Nylon voltaram da mesma maneira depois de uma rápida ida a loja de música e vinte e cinco reais pagos, mas pra te ter de volta, eu não tenho como conversar com alguém ou apenas pagar por isso.

Veio fama, veio proibição, veio Mike, veio briga, veio distância, e eu, que dividia uma carreira e um teto contigo, passo a mal te encontrar. Eu sei porque tudo aconteceu, você me falou em uma de nossas brigas o quão difícil era pra você, e não me faço de coitada, eu entendo. Hoje entendo. Tu me amava e me queria, enquanto eu fugia igual boba do amor grande que sentia por você apenas por ele me assustar. Mas naquele dia, eu não entendia. E foi ali, exatamente ali, que tudo acabou de vez entre nós.

Vi, te peço perdão com todo o meu coração. Te peço perdão pelas palavras afiadas e imaturas proferidas, e aceito o seu perdão pelas suas, mesmo que elas tenham sido em menor escala. Te peço perdão por ter te deixado sozinha em São Paulo, por ter me mudado bruscamente pro Rio sem mal te preparar. Por ser motivo da quebra de contrato, por separar o Anavitória em Ana Caetano E Vitória Falcão. Peço perdão pelo fim da nossa amizade, da nossa parceria e da nossa cumplicidade. Peço perdão pelo fim do nosso amor. Ou pelo menos pelo fim dele no teu coração.

Sinto falta de ti, leãozinho, do teu sorriso bobo, do teu olhar-marte, das tuas piadas sem graça que me faziam gargalhar, do teu péssimo gosto pra filme e até do pão tostado pela manhã. Sinto falta do teu cheiro, do teu beijo, do teu gosto. Do teu fogo, do nosso jeito torto de seguir.

Abandono todas as minhas defesas, porque dói sem tanto te lembrar. É que só tu fazia meu mundo bambo, girar.

Eu sei que tu não volta.

Mas se um dia quiser voltar, eu to te esperando, passarinha.

Com todo o amor imenso que sinto por ti.

Ana Clara Caetano.
ou Ninha
mas só pra tu.

Rio de Janeiro, 8 de Abril de 2021"






Dói sem tantoOnde histórias criam vida. Descubra agora