Eu só queria

47 8 2
                                    

Que o império não leia mentes como diz que lê, que ele não saiba o que se passa dentro das casas, que ainda lhe reste o mínimo de liberdade para, pelo menos, tentar mentir. Se não fosse verdade, se aquela minúscula faísca de esperança se provasse um truque de fumaça e espelhos, teria que renegar seu nome, seu direito de ser chamado de humano, seu passado e tudo que um dia foi seu por... nada? Pelo privilégio de não ser como todos os outros queriam que fosse?

Aquilo não era uma vida a ser vivida.

Estava cedo. Tão cedo que Leandro precisou de uma dose extra de força de vontade para sentar-se na cama e observar o irmão do outro lado do quarto iluminado pela luz azulada da manhã. Todos falavam que eram extremamente parecidos, que os dois puxaram a mãe, mas nunca conseguiu ver essa suposta semelhança. Noah era alto, forte por um ano de serviço militar, tinha um cabelo preto cuidadosamente despenteado que a tempo falta aos cortes e uma barba rala que ele fazia de tudo para que crescesse e ficasse como a do pai, enquanto Leandro, coitado, parecia estar sempre doente, como se comesse pouco e quase não saísse ao sol. Fazia questão de andar sempre bem-vestido, bem penteado, com as lentes dos óculos sempre limpas na falsa esperança de chamar a mesma atenção que o irmão, mas era sempre só esperança. Antes de levantar, pegou os óculos que deixava sobre o criado mudo e ajeitou-os no rosto. Noah dormia como um bebê. Leandro sentiu falta dos escravos do imperador. Esses ainda não saíram pelas ruas do império gritando que a coroação da princesa seria em seis meses, espalhando o convite para quem tivesse alguma coisa decente para vestir, algum jeito de ir para capital e o mínimo de boas maneiras. Uma preocupação a menos, quase ninguém estaria acordado para ter a chance de ver o que faria. Mesmo assim, sabia que não podia chamar a atenção, nem mesmo do colega de quarto. Com medo que Noah acordasse, tirou os cobertores de cima de si e andou até o corredor principal do andar de cima, tentando não fazer nenhum barulho desnecessário, tinha medo até de respirar. Por sorte estava vazio e todos os moradores daquela casa ainda dormiam. Tinha que ser assim, se alguém soubesse o que faria, família não seria mais família, eles poderiam traí-lo, denunciá-lo ao império. Fariam isso, fariam isso por dinheiro.

A ideia de ser trocado por algo tão banal como notas de papel sem valor algum o enjoou. Sabia que todos que conheciam uma aberração as denunciavam para o império por dinheiro, por honra. Não seria problema já que aquele não era mais seu filho, além disso, sempre é possível repor uma prole defeituosa. Estavam fazendo um favor para si e para a sociedade. Estariam melhorando o mundo.

Leandro fechou os punhos com raiva, mas logo relaxou os músculos sabendo que aquilo era inútil. Se fosse só por ele, aquela cidade inteira estaria em chamas. Ele já teria queimado todos os vilões com suas próprias mãos, com seu talento, já teria os feito passar por um julgamento humilhante como faziam com aberrações... Ai se ele fosse mais do que só uma aberração... faria com que os engravatados passassem pelo mesmo que o faziam passar, medo de traição, de ser achado, mal-tratado, torturado, morto... talvez a última parte não fosse tão ruim quanto as outras, mas os faria pagar por tudo o que fizeram com pessoas como ele, pessoas que nada mais são que pessoas.

Já que nunca teria a cidade, teve que se contentar em queimar as folhas do jardim só para lembrar-se de que não era como eles, de que não era um tirano.

Saiu para o gramado e ficou lá por um tempo, só olhando as plantas que, de vez em quando precisavam de cuidados e as folhas do carvalho que estava dentro da cerca. Com um pouco de dificuldade, subiu em seus galhos e tirou um tufo de folhas mortas de um "V" feito pela árvore, secando o orvalho matinal nas calças do pijama. Vestia uma camisa azul clara de manga longa por causa do inverno, junto com uma calça preta de algodão e meias que um dia foram brancas. Só por precaução olhou em volta novamente, mesmo que a planta o fornecesse um bom esconderijo, não queria arriscar ser visto por nenhum par de olhos alheio. Devia fazer aquilo? Devia por todos em risco? Não daria em nada, pelo menos não depois de tudo o que fez para prevenir-se de bisbilhoteiros. Com um aperto no peito, Leandro fechou as mãos, sentindo as folhas quebrarem com sua força, aquecerem-se com seu talento até o ponto de combustão, mas aquilo não era um incomodo, pelo contrário, era um prazer. Quando aquela sensação passou, abriu as mãos para ver uma chama vermelha cintilando sobre sua pele. Parecia inacreditável que aquilo fosse possível, mas lá estava esse aquilo, provando que o mundo estava errado. Aquele filhote de fogo passeou pelos seus braços enquanto seu dono tomava cuidado para que a árvore não se queimasse, depois voltou para suas mãos. Ele ficou lá, passando o fogo de um lado para o outro, fazendo formas estranhas com ele, divertindo-se com aquilo como se fosse a coisa mais besta do mundo. Quando suas pernas se cansaram de sustentar seu peso sob galhos do carvalho, Leandro desceu sem dar-se ao trabalho de apagar o fogo, não era sua intenção de qualquer jeito. Ele deixou que aquela chama crescesse, tomando conta dos seus braços causando um calor como o de quem toma sol para esquentar-se. Queria que aquele momento não acabasse nunca, mas sabia que tempo, na situação que ele estava, era a única constante universal.

O que fazer quando o céu cairOnde histórias criam vida. Descubra agora