Ao final do dia, Ameris e Ann já estavam cansadas mas tudo estava guardado em seu devido lugar. Com o passar das horas a menina parecia ter conquistado o respeito da garota mais velha, que agora falava com ela como uma igual e não como quem fala com uma criança. E Ameris descobriu que ela também não parecia olhá-la como diferente, ou incapaz.
Depois de descansarem por algum tempo Ann aconselhou a tomar um banho antes do jantar. Agradecida Ameris a segui até o quarto de banho.
A primeira parte era um quartinho com duas prateleiras, com espaços para guardar as roupas e, ao lados delas vários ganchos com uma fileira de toalhas. Ali tiraram as vestes em silêncio e, ao entrar pela porta seguinte, se depararam com algo um tanto mais luxuoso do que ambas esperavam.
A sala era grande, as paredes eram de um tom rosado e brilhante e nos dois cantos da sala estátuas brancas em forma de donzelas despejavam água quente continuamente dos jarros que tinham nas mãos. A água caia na piscina redonda que tinha degraus brancos em todo o seu interior, que serviam de banco para algumas mulheres que estavam se banhando alí.
Em sua admiração Ameris levou alguns minutos para notar que toda a conversa morreu quando a viram.
Pelas roupas na sala anterior ela sabia que haveria mais gente, mas isso já era comum para ela. Era algo normal mulheres se banharem juntas. Então porque tinham tal expressão em seus rosto? Aquilo era surpresa? Não, tinha mais algo. Ela pensou. Atrás dela, Ann se remexia, aparentemente desconfortável.
Agora, um pouco insegura, seguiu até a piscina e entrou com cuidado na piscina, se sentando com a ajuda de Ann no primeiro degrau, no lado oposto às outras mulheres. Não demorou muito para que duas se retirassem do banheiro. Ainda havia espuma em seus cabelos quando se dirigiram para a porta. Uma delas se inclinou para a outra mas sua tentativa de sussurro não foi bem sucedida, pois as paredes pareciam ecoar os sons, e a palavra "Sendom" foi ouvida entre elas. Era uma palavra familiar para a Ameris e a criada, e seu peso ficou suspenso entre elas.
Sendom era o nome dado a pessoas que nasciam sem as características de sua raça. Ervas daninhas que brotavam e manchavam as linhagens das famílias. Um Seelu que nascia sem asas, um Mirtir incapaz de praticar magia, um Narcaniano que não poderia suportar o calor do fogo. Ao olhar para um Sendom era impossível saber a que raça pertenciam. Assim como telas em branco. Assim como Ann e Ameris.
***
Aos poucos ela se acostumou com a rotina, que era ainda mais parada do que em sua casa. Várias mulheres viviam ali, algumas mais velhas, outras mais jovens, algumas tinham consigo seus filhos, a maioria tão jovem quanto ela. Poucas pareciam ter obrigações fora dali, por isso, o dia começava tarde e seguia num ritmo lento, sempre. A sala central era normalmente preenchida com o som de conversas e fofocas enquanto as mulheres botavam-se a tecer e a bordar. Na hora das refeições uma serva baixa e rechonchuda soava o sino na porta da sala de jantar como sinal de que a comida estava posta.
Por um tempo ela não gostou do momento das refeições. Era fuzilada com olhares estranhos, e parecia ser alvo de murmúrios e risadas. Sabia que era diferente, mas nunca achou que fosse um motivo para ser tratada daquela forma. Nenhuma delas nem tentava puxar conversa com ela.
ーVocê não gostaria que eu lhe trouxesse o jantar no quarto hoje?ー Perguntou Ann, que havia se revelado a única companhia agradável, em um dia no qual Ameris não estava com humor para enfrentar os olhares na sala de jantar.
ーNão quero parecer mimada.ー descartou a ideia rapidamente. ー Na minha casa, eu odiava ser excluída das refeições, aqui tudo que quero é ficar no quarto. Quem diria não é?
Sentada no colchão baixo ela encarava seus pés descalços, estendidos à sua frente concentrada neles para afastar as lágrimas. Até que um pensamento surgiu em sua cabeça.
ーAnn.... ーComeçou receosa.
ーSim, Ameris?ー respondeu ela se empertigando, preocupação estampada em seu rosto.
ーVocê sabe o que significa Sendon?
O silêncio que seguiu depois daquela pergunta era tão grande que poderíam ouvir uma agulha cair no chão no quarto ao lado. Com um semblante que exibia tristeza e uma grande ela se ajoelhou ao lado de minhas pernas. Parecia escolher suas palavras com cuidado.
ーSendon é alguém que, como eu não exibe as características de sua raça. No caso de nós, karcahni, é quando não exibimos nem uma única característica animal, nada de garras, escamas ou chifres.ーela disse com calma, sempre me olhando nos olhos, e quando viu que eu esperava, continuou. ーPelo que eu soube, também, mesmo os sendons nascidos entre os Seelus, que normalmente tem cabelos nas cores mais diversas, sempre tem cabelos em tons de loiro, ruivo ou castanho. Eles também vivem menos do que qualquer raça. Duram em torno de 80/90 anos. Eu sou uma, e pelo que dizem, você também.
Embora Ameris tivesse lido sobre isso em livros nunca tinha tido a oportunidade de conversar com alguém sobre o assunto.
ーComo eram seus pais?ー perguntou de repente e Ann encolheu os ombros, triste.
ー Eu não sei, não os conheci. Me abandonaram assim que notaram o que eu era.
ーDesculpa. ー pediu envergonhada ーEu já pessoas me chamando assim pelas minhas costas, mas aparentemente ninguém teve coragem de me falar diretamente.
Finalmente ela sentia que podia encerrar aquele capítulo da vida dela, a busca pelo motivo pelo qual nunca poderia brincar com seus irmãos, ou passear pela feira com a mãe. Ela ficou em silêncio alguns minutos enquanto absorvia aquela nova realidade. E a criada esperou pacientemente enquanto ela tentava decidir o que fazer dali pra frente.
Ao contrário do que Ann parecia esperar a menina não ficou triste, finalmente sentia que não estava sozinha, que fazia parte de algo, mesmo que não fosse algo tão bom, e o melhor, havia alguém igual a ela.
ーSabe...reconsiderei a sua proposta. Pode trazer o almoço aqui, e traga bastante, hoje você vai comer comigo. Temos que conversar sobre algumas coisas
Surpresa a criada abriu a boca pronta para negar o convite mas Ameris a encarou tentando impor sua vontade pelo menos uma vez e ela, ainda desconfiada, assentiu se retirando do quarto.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Engaioladas
FantasyEm um mundo habitado por homens-fera, gigantes de fogo e seres mágico, o fraco e diferente nem sempre é aceito. Os Karcahni são a raça mais populosa no mundo, com seus traços animalescos e seus dons para a caça e a guerra. Eles existem nas mais d...