Lentes Interruptas

Acompanhante (In)Desejada

18 de junho de 2034

Após as aulas, fui rapidamente encontrar Sun. Queria ter a mais plena certeza que ela estava bem. A imagem da minha doce irmã sem seus globos oculares não saía mais da minha mente. Era perturbador.

- Sun! - saiu quase como um grito - Como está se sentindo? Tudo bem?

- Está sim, mas me diga você, está bem? Parece um pouco alterado...  - Foi neste momento que percebi que tinha deixado muito aparente minha inquietude.

- Estou sim, não se preocupa. Como foram as aulas - Tentei mudar de assunto, assim como meus pensamentos.

- Foram ótimas. Fique sabendo que na próxima aula faremos um passeio pelo hall histórico do Sr. Skane. Ele foi um herói por nos proporcionar tudo isso.

Herói. Termo certo para aquele senhor que nem ao menos me recordo de ter conhecido? Era nítido que minha irmã só estava sendo mais uma marionete ali dentro. Na verdade, eu via mais como um rato em meio a um monte de ratoeiras espalhadas em seus ensinamentos. Ela já estava presa. Era por isso que estava decidido! Amanhã irei invadir o sistema da Aura e tentar entender melhor todo esse complexo de perfeição.

- Vamos ao refeitório - falei - Como sempre, uma comida deliciosa deve estar nos esperando.

Fomos para o espaço em que nos alimentamos, que fica a cerca de uns cinco minutos do Centro Educacional Delta. Não me surpreendeu muito ao perceber que Aura Skane estava por lá, admirando e interagindo com os internos.

- Ela é tão linda e perfeita, não acha? - afirmou Sun.

- Claro! É nosso exemplo no futuro - queria gritar e falar que não, que para mim, a última coisa que gostaria de ser é um pequeno projeto de Skane.

- Olá, Srta. Skane. Como vai? - cumprimentou Sun, ao se aproximar da regente.

- Muito bem, pequena Sunny. E como está nossa linda menininha dos olhos brilhantes? - queria vomitar ao vê-la interagir assim com minha irmã.

- Bem também. Muito obrigada pelo elogio.

- Que ótimo! E você Antonny, como anda as aulas?

- Tudo perfeito, Srta. Skane, como sempre - me forcei a usar todo e qualquer resquício de atuação que me havia

- Gosto que se sintam assim.

- Vamos almoçar agora. Gostaria de nos acompanhar? - sugeriu Sun, apontando para uma mesa logo ali próxima.

- Bom, por quê não?

- Vamos só ali pegar nossas bandejas e já voltamos - disse, segurando a minha mão e me puxando para a área em que pegávamos nossa comida, mas sem deixar de fazer contato visual com Aura.

Assim que nos afastamos, não resisti em perguntar:

- Por que a convidou para almoçar com a gente?

- E por que não convidaria?

Ela tinha razão. Na cabeça dela, tudo estava muito bem e não tinha problema. Aliás, seria quase que uma honra para ela ter Aura nos acompanhando em nosso almoço.

Assim que retornamos, Aura se sentou conosco.

- Gostaram do almoço de hoje? - perguntou apontando com os olhos para nossos pratos. O cardápio do dia era formado por arroz branco, feijão carioca, panqueca de carne creme de tomate com manjericão e salada, tudo preparado do modo mais orgânico possível.

- Está tudo maravilhoso, Srta. Skane - se adiantou Sun em responder.

- Isso me deixa muito feliz - sorriu para Sun, antes de se virar para mim e começar a me encarar - Antonny, está prestes a fazer os seus 18 anos. Já está preparado para a próxima Maratona Delta?

Algo em seu olhar naquele exato momento não me agradou. Ela me encarava como que me se desafiasse a enfrentar o que quer que fosse.

- Sim, senhora. Estou mais pronto do que qualquer um possa imaginar.

- Que bom! Seria uma pena para nós termos um jovem promissor como você fora de nossos cuidados - Mais uma vez aquele olhar.

- Não se preocupe. Sei o que vai ser melhor para mim.

- Claro que sabe! Assim como Sunny, não é, querida? - disse acariciando os cabelo de Sun. Aquilo começou a me queimar por dentro.

- Sim, senhora - respondeu Sun

Aquela cena me corroía. Na verdade, parece que tudo ali dentro me fazia sentir enjoo, mal estar, me fazia querer vomitar para o que diziam e como agiam. Todos não paravam de parecer robôs controlados pelo além. Minha mão começou a tremer, ao ver Aura sorrindo para minha irmã, aproveitando de sua ingenuidade. Mal me dei conta quando percebi que tinha deixado a faca cair no chão.

- Ton, você está bem?

- Ah, sim sim. Fiquei um pouco distraído. Perdoem meus modos. Irei colocar esta faca para lavar e pega uma limpa. - falei sem jeito.

- Vou aproveitar a deixa e ir ao meu escritório. Se me dão licença...

- Claro. Toda. Muito obrigada pela companhia, Srta. Skane.

- Não há de quê, querida.

Assim que se levantou, notei o crachá que os funcionários geralmente usam para abrir as portas e ter acessos aos demais locais da Delta. Foi neste momento que vi que, o que eu precisava fazer para acessar o sistema, ia ser mais fácil do que imaginava.

Assim que retornei, Sun já estava terminando seu almoço.

- Ton, se não se incomoda, eu vou devolver minha bandeja e ir conversar com Anne. Aposto que, assim como eu, ela deve estar super animada com a excursão da aula de História.

- Claro. Pode ir, Sun. - Antes que ela pudesse abandonar de vez a mesa, eu a chamei - Sun! Pode me prometer uma coisa?

- Posso sim.

- Toma cuidado, por favor.

- Mas eu só vou conversar com Ann...

- Por favor... - interrompi - Só toma cuidado - quase supliquei. Neste momento, mais uma vez a cena dela com seu rosto inexpressivo e vazio e penetrando os seus dedos em meus olhos tomou a minha mente.

- Tudo bem... - disse meio sem entender nada.

Assim que terminei meu almoço, fui para o bosque ao lado da mansão de toda a diretoria. Era lá onde ficava a sala de Aura e todo o restante do sistema, onde só quem entrava eram pessoas permitidas.

Embaixo de uma árvore, fiquei notando a movimentação que acontecia ali. Funcionários entravam e saiam, enquanto eu tomava nota de tudo. Mesmo que nem ao menos soubesse o nome de cada um, descrevia detalhes que me ajudariam a identificar mais tarde quem era  quem.