Capítulo 1: Como sombras

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Abril de 1985.

O céu havia escurecido a mais ou menos uma hora e a estrada ainda estava agitada, os carros passavam em alta velocidade, rasgando a noite com seus faróis branco-pálidos.

Aquela parte da estrada era sempre bem calma e silenciosa, a típica parte da viagem onde nada acontece e os passageiros aproveitam para dormir.
Mas essa noite era uma exceção.

Do lado direito da estrada, andavam pelo acostamento os dois vultos responsáveis por quebrar o silêncio daquela noite de primavera.

—Pare de reclamar, estamos chegando— Disse a garota pela quinta vez em um período de meia hora, mas ainda mantendo o mesmo tom de confiança na voz.

—Eu tenho pernas curtas.— Retrucou o seu seguidor —E estou com fome. Pra onde é que você quer ir mesmo? Pra África?! Estamos andando a treze dias, TREZE DIAS.

O jeito reclamão e inconformado de seu parceiro fez com que o rosto da jovem se abrisse em um largo e cansado sorriso.

Porém, sumiu quase no mesmo instante em que mais um carro passou iluminado a estrada, e ela pôde ver, poucos metros à frente o reflexo da luz no metal.

Ela acelerou sua caminhada, estava quase correndo, o que resultou  em mais um motivo para o seu querido amigo adicionar à sua lista de reclamações.

—Sinceramente...você quer que eu tenha um infarto?!— Indagou indignado, enquanto tentava acompanha-lha.

A garota parou abruptamente, ficando de frente a uma placa que indicava:

                        "HAWKINS
              ESTADO DE INDIANA
                          À 150KM"

—Estamos chegando.— Repetiu a garota, só que desta vez sua voz não era mais alegre, nem reconfortante, muito menos otimista. Sua voz era melancólica e dava a impressão de que estava falando um tanto mais para si do que para o seu companheiro, ele percebeu isso.

O clima ficou denso e ambos seguiram em frente, calados, em meio à escuridão da noite, como sombras.

Decorrido algumas horas, passavam pelo mesmo trecho da estrada a família Turner. O casal e seu filho único voltavam de uma breve viajem, e que viajem! Era disso que eles precisavam, dois dias de completa paz, calmaria e...

—O que é aquilo?!—Questionou a Sra.Turner um pouco alto demais, o que fez com que seu marido, que até então estava concentrado na estrada, se assustasse um pouco.

—Aquilo o quê, querida?— Perguntou já meio irritado, voltando novamente a sua atenção para o volante.

—Ali na frente!— Ela apontava freneticamente para algum lugar a sua direita—Droga, passamos!...Carl para o carro.

—Querida, já esta tarde e ainda temos que passar por duas cidades para cheg...

Ele parou de tentar argumentar no momento em que encarou sua esposa, e ela estava fazendo aquele olhar. Ele soube que falar não adiantaria muita coisa, mas porque não tentar só mais uma vez? Milagres acontecem, não é mesmo?

—Por favor...

—Carl Alfredo Turner, é melhor para nós dois se você encostar o carro, agora.

E assim ele fez. O que a louca da sua mulher estava procurando ainda era um mistério para ele e o seu filho, que acordou de um cochilo no banco de trás  no meio da conversa.

Logo quando o carro parou a Sra.Turner abriu a porta e saiu.

—Mãe...— Chamou-a do banco de trás, tentando impedir qualquer loucura que ela estivesse prestes a fazer.

—Calado pivete.—Respondeu a Sra.Turner com aquele olhar.

A Sra.Turner andou até a traseira do carro, a iluminação era péssima e ela se esforçava para enxergar através da escuridão, porém, não obteve sucesso.

Decidiu então dar passos cautelosos a frente e não muito distante encontrou finalmente o que tinha visto pela janela de seu carro.

—Hum...garota? Você precisa de ajuda?

E lá estava a jovem, parada há poucos metros da Sra.Turner, a ausência de uma iluminação decente não ajudava em nada, e a noite escondia o rosto da jovem quase como uma máscara, deixando os seus traços e feições indecifráveis a tal distância.

A Sra.Turner ficou com receio de se aproximar e passou pela sua cabeça que parar o carro no meio de uma estrada tarde da noite talvez não tivesse sido uma ideia tão boa assim. Mas ela não era do tipo mulher que desistia facilmente.

—Meu nome é Lindsey Turner, mas pode me chamar de Lindy. Então, eu vi você pela janela do meu carro e fiquei me perguntando o que uma garota de...Quantos anos você tem? Uns quinze? Enfim, não é muito seguro ficar andando por essas estradas.

—Eu também não acho nada seguro parar o carro no acostamento e conversar com estranhos por essas estradas— Disse a garota. Sua voz era bonita, pensou a Sra.Turner, mas com certeza ficaria melhor sem essa ameaça repentina.

—Olha garota, eu já fugi de casa uma vez e tudo o que eu mais queria era que alguém tivesse parado o carro e me oferecido uma carona de volta pra casa, isso com certeza teria evitado muita merda.

A menina e a Sra. Turner não disseram nada por alguns longos segundos.

O Sr.Turner e seu filho desceram do carro mais a frente, preocupados com a demora.

—Lindy, pelo amor de Deus, o que é que você tá fazendo?!—Gritou o Sr.Turner ao lado da porta recém aberta.

—E então, vai querer uma carona?—Perguntou a Sra.Turner para a jovem à sua frente —Ah, e não tem problema do seu amigo vir também, nós adoramos cachorros.

A garota se aproximou com seu companheiro, a Sra.Turner a ouviu murmurar para o seu cão que latia loucamente "Não posso ficar de bate-papo, vão estranhar, fique quieto." Mas a Sra.Turner decidiu não pensar muito nisso.

A luz dos faróis traseiros do carro deixavam-nos mais visíveis à cada passo que davam.

Os cabelos dela ficavam acima dos ombros, e eram alguma coisa entre cacheado e ondulado. Se você olhasse de relance diria que eram levemente repicados, mas se você os olhasse com atenção por mais alguns segundos perceberia que eram totalmente desiguais, algumas mechas eram mais curtas e outras mais longas.

A Sra.Turner apostaria um dólar que foi ela mesma quem cortou, com uma tesoura bem ruinzinha, pelo visto, mas a menina não parecia se importar nem um pouco com o cabelo bagunçado.

As roupas eram, no geral, um tanto folgadas, resumiam-se em uma calça jeans surrada e uma camiseta que se escondia por debaixo da jaqueta gigantesca que ia até metade de suas cochas.

E claro, o seu companheiro, a Sra.Turner não entendia muito de raças de cachorros, mas era impossível confundir um golden retriever. Com seus pelos loiros e sujos balançando de um lado pro outro, andava animadamente ao lado da garota.

Quando ficaram frente a frente, a jovem estendeu a mão direita e a Sra.Turner a cumprimentou satisfeita.

—Pode me chamar de Cass.— Disse a garota, dando um meio sorriso, que a Sra.Turner logo retribuiu.

Mas uma coisa que a Sra.Turner não sabia era que, na mão oposta à que ela estava agora apertando, escondia-se na região do pulso, por debaixo de uma maquiagem mal feita a verdadeira identidade da garota.

009.

—Você está voltando pra casa?—Perguntou a Sra.Turner, enquanto se acomodava no banco do carona, logo após silenciar o seu marido e o seu filho no meio da primeira de centenas perguntas que tinham, e tudo isso só com aquele olhar.

—Estou voltando pra Hawkins.

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