Senectus

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Tempo. Tempo é mesmo uma coisa maldita, não é mesmo meu velho amigo? Tempo corrompe. Enlouquece. Depois de todos esses séculos nem me reconheço mais. Lembra aquelas criaturas que acreditávamos caçar durante a Idade das Trevas? Lembra aquela criatura presente nos seus terrores noturnos que o faziam acordar na madrugada em busca de meu conforto? Lembra aquela criatura que sequestrou e matou nossos amigos no orfanato? Wendy. August. Simon. Como juramos vingá-los? Agora são apenas nomes não são? Agora somos como aqueles monstros que mataram nossos amigos, talvez até mesmo piores do que eles.

Tudo isso porque insistimos em investigar o que jamais deveria ter sido investigado. Fomos avisados, mas nossa ambição não permitiu que ouvíssemos esses avisos. Tudo isso para descobrir o que diabos estava  enterrado naquela sepultura sem nome, do lado de fora do cemitério do vilarejo. Foi assim que o mal foi desperto naquelas terras, você se lembra?

Lembra das atrocidades que fizemos em nome de nossa sobrevivência ou até mesmo por estarmos simplesmente entediados? Chacinamos famílias inteiras. Até mesmo crianças, assim como aquela vil criatura fez com nossos amigos. Ainda me pergunto o porquê dela não nos matar também, talvez ela tenha achado mais divertido fazer o que fez. Acabar com tudo que restava de humano em nós. Destruir nossa sanidade. Nossa inocência.

Tínhamos 16, você se lembra? Óbvio que não, o que eu estou pensando? Você sequer existe mais. O que eu vejo é apenas um reflexo do que um dia foi meu melhor amigo. Você se perdeu completamente para aquilo...

Sequer deve estar entendendo o que eu estou te falando, em seus olhos apenas há o puro instinto, a consciência já se fora. Provavelmente você me destruiria no momento em que eu te libertasse dessas pesadas correntes. Não o ter poupado desse sofrimento, não tê-lo transformado em cinzas, talvez seja um ato de egoísmo. Mas eu preciso mantê-lo para não me perder de vez também. Talvez o que eu falo seja mais para mim do que para você.

Para manter vivo o que eu já era. Não, não posso soltá-lo. O mundo é um lugar hostil para nós agora, a Londres que costumávamos conhecer nem de perto é mais a mesma. Os dias de caça estão chegando ao fim, logo seremos apenas dois cadáveres vazios e vagantes, movidos pela fome. Fagulhas no tempo. Será que aquela criatura que nos fez assim sabia que seria assim que iria terminar? Será que ele ainda está em algum lugar se entretendo com nossa decadência? Talvez seu propósito, nosso propósito, seja apenas causar caos, morte e destruição.

Todos esses séculos pesam sobre meus ombros. Agora, eu sei. Não resta nada para mim além do tédio. Mais uma vez parto para um longo descanso, esperando que, quando eu despertar novamente, o fim, o prometido Apocalipse, recaia sobre todos nós. Das cinzas às cinzas. Do pó ao pó.

Senectus e Outros contosOnde histórias criam vida. Descubra agora