II

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Micau ainda estava inconsciente quando um aroma forte e inconfundível de noites de estudo e manhãs lentas invadiu seu último sonho. Café, pensou, com desejo infantil e uma barriga vazia. Mesmo à distância podia escutar a bebida quente sendo derramada em uma caneca.

Em seu despertar arrastado, Micau sentia-se pesada, como se algo a amarrasse à cama, de tal maneira que demorou a perceber os arredores desconhecidos. Apenas quando seus olhos já haviam se acostumado à escuridão foi que o sentimento de errado se apropriou dela. Então, procurando se orientar, tateou até chegar no pé da cama.

Tudo naquele aposento era grande demais ou apenas muito fora da realidade de Micau. O edredom, os travesseiros. Os lençóis em que ela dormira eram de um algodão macio, o mais perto de seda que ela chegaria.  A cama só seria aceitável se fosse para um casal, o que provavelmente não era, a julgar por uma única arara de madeira no canto do quarto, sapatos masculinos em uma sapateira pequena e nenhuma penteadeira (contraindicando uma presença feminina). Além disso, pelo pouco que Micau podia enxergar, o quarto era inteiramente decorado por um papel de parede, com acabamentos no chão e no teto.

Aquilo não poderia nunca pertencer a uma família de operários, nem mesmo a uma família simples de artesãos como a dela. Ah, jamais... Sua mãe nascera e criara seus filhos na mesma casinha de três aposentos, assim como a mãe dela e mãe da mãe dela.

E, todavia, não era opulento o suficiente para pertencer a algum burguês ou nobre. Era elegante, mas com certeza não pertencia a algum dono de fábrica ou outra família tradicional.

A garota respirou fundo. Um pé de cada vez, ela fez seu trajeto em direção as cortinas mais longas e grossas que já havia visto. Mas assim que o veludo acariciou seus dedos, a porta foi aberta e outra fonte de luz foi introduzida.

Uma forma escura pairava no batente. Cabelos bagunçados e pele parda que suspirava enigmas e obscenidades.

Dante.

- Café? - ele sugeriu, com um meio sorriso que não chegou aos olhos.

Os lábios não estão pintados. ela se demorou um pouco observando, mas Dante sem sua boca preta era uma visão tão estranha que equiparava-se a um dia normal de trabalho após o Festival dos Festivais. Pelo menos as argolas permanecem.

Algo ainda a puxava na direção dele, como um cordão invisível, mesmo com todas as coisas que indicavam que ele era perigoso. Mas agora, Micau estava em um local desconhecido e tinha fome. Precisaria confiar nele, pelo menos um pouco mais.

Séria, ela concordou, seguindo-o quarto afora, apenas para ficar embasbacada. Nuvens de confusão assombraram seu raciocínio, vista a imagem na frente de seus olhos.

Inúmeras poltronas vermelhas permeavam o chão de madeira, dois andares abaixo do mezanino em que Micau estava. Adjacente à ela, estava um palco de madeira polida, o qua a garota pouco enxergava devido as cortinas de veludo escuro.

Opostas a Micau, paredes brancas, decoradas por imagens esculpidas na pedra, querubins e demônios, rosas e espinhos, árvores frondosas cujas copas seguravam a abóboda do teto, a cereja do bolo.

E que cereja. Um azul profundo quase aveludado, um céu noturno e estrelado, com suas constelações douradas.

O lugar cheirava a magia e canções de ninar e contos de fada macabros. O silêncio e o vazio, descompassados apenas pela respiração baixinha dela. Ah, e a presença pulsante de Dante.

Micau nunca pensou que um dia conheceria o interior do Teatre Divine.

- O café vai esfriar. - disse Dante, puxando-a de leve pelo braço.

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