III

6 1 0
                                    


O caminho para casa foi quase uma tortura.

Embora casa fosse um termo muito forte para o estúdio de seu pai, Micau estava ansiosa para chegar. Chegar e trabalhar e trabalhar e trabalhar um pouco mais. Ela já perdera metade do dia dormindo e precisava repor o tempo perdido, isso se quisesse sobreviver mais uma semana ou duas.

Micau tentou se distrair observando os cidadãos em meio às suas agitadas rotinas, os casebres coloridos pintando a cidade, algumas tendas que sempre restavam dias após o fim do festival.

Mas tudo estava tão fora de lugar. O mundo não parecia o mesmo das noites anteriores, agora sem o encanto das festividades. Até o céu estava nublado, de ressaca, tentando se recuperar de um final de semana de puro caos.

A visão do prédio cor de rosa de três andares, onde situava-se o humilde estúdio de seu pai, trouxe a Micau um dissimulado e efêmero sentimento de segurança. O único lugar que sobrava para chamar de casa, porém um lugar onde sua família era conhecida e fora traída.

Subindo as escadas rapidamente, quase sonhando com o outro lado da porta de batente azul, Micau mal tomou nota da frente de sua porta.

Ao invés disso, trancou a porta quase ao mesmo tempo que a abriu, tamanha era sua ansiedade.

Jogou-se no colchão. Suspirou alto. Dante não se incomodara em devolver suas roupas, portanto ela permaneceu com as dele no corpo, o cheiro cítrico prendendo a pele dela.

Fora do armazém abandonado, uma garoa limpava o ar de suas impurezas. O céu combinava com o humor nublado dela, seu coração aflito. Talvez a Mãe se compadecesse.

Micau fez questão de prestar atenção no tempo em que caía a água pluvial, parecendo um arrulho leve, um bater de asas de borboleta.

Pensou na mãe, naquele momento, em sua voz macia, sua risada calorosa as rugas e as linhas de expressão... A saudade a consumiu por completo e a lembrou do porquê de ter abusado dos poderes de esquecimento do álcool.

Sua mãe costumava dizer que não valia a pena esquecer. Lembranças e segredos, dizia ela, são a verdadeira moeda da vida. Micau ouvia sua voz se estendendo como canção, quase como se estivesse presente e proferindo as palavras ali mesmo.

Não era só o coração partido, era tudo; o corpo, a alma, o coração, Micau se sentia um ser holístico em sua aflição.

Desapontara sua mãe ao escolher casar com Pietro por interesse, mesmo que por proteção e não só dinheiro, depois perdera a pessoa que mais lhe importava em todo aquele inferno que era Líria. Não, não perdera. Fora roubada.

Micau se debateu na cama, frustrada. Líria realmente era um inferno. Apenas uma imitação fajuta, uma ilusão de liberdade existia, quando nada era permitido e tudo era vigiado. O Novo Príncipe estava no processo de destruir tudo o que sua antepassada construira e ninguém ousava tentar impedi-lo.

Ninguém ousa porque os únicos prejudicados não têm poder.

A nobreza estava ocupada demais com suas novas máquinas para suas belas fábricas, para se preocupar com o trabalhador braçal do qual dependiam.

- Ah, mãe, se você me visse agora... - murmurou.

Teria orgulho?

Rolou para fora da cama. Moveu um pedaço do assoalho para o lado e alcançou uma caixa de madeira, com uma fechadura de metal quase enferrujada.

os proscritos Onde histórias criam vida. Descubra agora