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CAPÍTULO 25
– Mamãe, quero que me conte o que aconteceu naquela noite.
Minha mãe estava no escritório de casa, óculos na ponta do nariz, examinando à luz pálida da luminária de mesa as últimas publicações acadêmicas que havia recebido. Ao som da minha voz, ergueu os olhos.
– Eu já esperava que viesse falar comigo sobre isso, Jess.
Ela indicou a espreguiçadeira de segunda mão e cheia de calombos, que servia como poltrona de visita. Eu me afundei nela, puxando o cobertor de lã peruano por cima das pernas.
Mamãe girou sua cadeira na minha direção e empurrou os óculos para o alto da cabeça, me dando total atenção.
– Por onde deveríamos começar? Com o que aconteceu entre você e Lucius no terraço?
Fiquei vermelha e desviei o olhar.
– Não. Não quero falar sobre isso. Quero falar sobre o que aconteceu há duas noites.
Quando trouxeram Lucius para cá. Por que não foram para um hospital? – Eu lhe disse, Jessica. Lucius é especial. É diferente.
– Diferente como?
– Lucius é um vampiro, Jessica. Um médico que estudou numa faculdade americana nãosaberia como tratá-lo.
– Ele é só um garoto, mamãe – insisti.
– É mesmo? É nisso que você ainda acredita? Mesmo depois do que viu, agachada perto da porta?
Olhando para minhas mãos, torci em volta do dedo um fio solto e o arranquei do cobertor. – É confuso demais, mamãe.
– Jessica?
– Hein?
– Você tocou Lucius.
– Mamãe, por favor...
Não íamos falar disso de novo, íamos?
Mamãe me encarou.
– Seu pai e eu não somos cegos. Seu pai pegou o finzinho de seu... momento com Lucius nanoite do Halloween.
Fiquei feliz com o fato de que a luminária mal lançava luz sobre a mesa, porque minhas bochechas estavam pegando fogo.
– Foi só um beijo. Na verdade nem foi isso.
– E quando tocou Lucius você não notou nada incomum?
A frieza. Eu soube na hora o que ela queria dizer, mas, por algum motivo, fui evasiva.
– Não sei. Talvez.
Mamãe percebeu que eu não estava sendo completamente honesta. Ela não tinha paciência com pessoas que ficavam com preguiça de pensar quando encaravam um conceito difícil.
Pôs os óculos de novo no nariz.
– Quero que pense no que viu na sala de jantar. No que sentiu. No que você acredita.
– Eu quero acreditar no que é real – choraminguei. – Quero entender a verdade. Você se lembra do Iluminismo? A ordem geométrica substituindo a superstição? De Isaac Newton, que desvendou o “mistério” da gravidade? E que disse um dia: “Minha maior amiga é a verdade.” Como um vampiro pode ser real?
Mamãe me encarou por um longo momento. Pude ouvir o tique-taque do relógio sobre a mesa enquanto ela organizava seu considerável estoque de conhecimento.
– Isaac Newton – disse mamãe, finalmente – manteve a fé na astrologia durante toda avida. Você sabia desse aspecto de seu suposto cientista racional?
– Não – admiti. – Não sabia.
– E lembra-se de Albert Einstein? – observou mamãe, presunçosa. – Aquele que desvendou o átomo, algo que mal poderíamos conceber há apenas um século? Uma vez Einstein disse: “A coisa mais linda que podemos experimentar é o mistério.” – Ela fez uma pausa. – Se os átomos podem existir, escondidos e ao mesmo tempo em todo lugar, há milênios, por que não um vampiro?
Droga. Ela era boa nisso.
– Mamãe...
– O que é, Jessica?
– Eu vi Lucius beber sangue. E vi os dentes dele. De novo.
Mamãe segurou minha mão e a apertou.
– Bem-vinda ao mundo do mistério, Jessica. – Uma sombra atravessou seu rosto. – Porfavor, tenha cuidado. É um território muito, muito traiçoeiro. Totalmente indomado. O mistério pode ser lindo. E perigoso.
Eu sabia o que ela queria dizer. Lucius.
– Vou ter cuidado, mamãe.
– A família Vladescu tem a reputação de ser implacável – acrescentou, de forma maisdireta. – Você sabe que seu pai e eu gostamos muito de Lucius e que ele é encantador, mas também devemos ter em mente que a criação dele foi bem diferente da sua. E não só em termos de posses materiais.
– Eu sei, mamãe. Ele me contou um pouquinho. Além disso, como vivo dizendo a vocês,não estou a fim dele.
Mentirosa.
– Bom, saiba que estou sempre aqui, disposta a conversar. Seu pai também.
– Obrigada, mamãe. – Empurrei o cobertor de lado e me levantei para ir embora, beijandoo rosto dela. – Por enquanto, só preciso pensar.
– Claro. – Mamãe voltou para suas publicações. – Eu te amo, Jessica – acrescentou porcima do ombro enquanto eu fechava a porta.
Apesar dos avisos, apesar de suas preocupações óbvias comigo, jurei ter percebido uma levíssima sugestão de sorriso em sua voz. 
CAPÍTULO 26
CARO TIO VASILE,
Continuo aguardando sua resposta às minhas preocupações relativas ao destino quase certo de Jessica, caso ela assuma o trono. Não tem nada a me dizer?
Como devo entender seu silêncio?
Sinceramente, Vasile, é exaustivo navegar por essa situação com pouca orientação, a milhares de quilômetros de casa. Estou cansado de competir, sem sucesso, com um camponês. Estou exaurido pelos ferimentos físicos. Fico impaciente por... por quê? Algo que nem sei qualificar. Entedio-me de minha própria natureza, meus pensamentos, meu passado e meu futuro, aqui, deitado.
Na ausência de um comentário construtivo, prosseguirei como meu instinto determina em relação a Antanasia. Duvido que concordará com meu modo de agir, mas me sinto frustrado, irrequieto e imprudentemente voluntarioso. Luto contra o freio que o senhor pôs na minha boca por tanto tempo.
Seu sobrinho,
Lucius
CAPÍTULO 27
– Bom, até que enfim você saiu da garagem, como queria – provoquei.
– Não acredito que viva desse jeito. – Lucius deu um risinho, apoiado em meus travesseiros de cetim cor-de-rosa. No meu quarto. Mamãe tinha insistido para que ele se mudasse para dentro de casa até que sua perna ficasse boa. O gesso estava apoiado no cachorro-quente de pelúcia. – É como viver num casulo fofo, feito de algodão-doce. – Ele fez uma careta. – É rosa demais.
– Gosto de rosa.
Lucius fungou.
– O rosa é somente o primo patético e débil do vermelho.
– Bom, não é para sempre. Você vai voltar logo para seu calabouço escuro com as armasenferrujadas. – Olhei o quarto em volta. – Viu meu iPod?
– Refere-se a isso?
Lucius localizou o aparelho entre camadas de lençóis e o ergueu.
– É. – Estendi a mão. – Me dá.
– Ah, não posso ficar com ele? É tão chato ficar confinado aqui. E estou gostando deexplorar suas preferências musicais.
Lá vamos nós.
– Por que não compra um?
– Mas o seu já tem Black Eyed Peas – zombou ele.
– Não seja idiota.
– Gosto deles. Estou falando sério. – Um sorriso diabólico atravessou seu rosto. – “Myhumps, my humps, my humps!” Minha bunda, minha bunda, minha bunda! Quem não iria gostar disso?
Arranquei o iPod de sua mão e ele riu. Eu ri também.
– Se você não estivesse todo arrebentado...
– Faria o quê? – Ele agarrou meu pulso com uma velocidade espantosa para quem estavacom as costelas partidas. – Iria me bater até eu pedir clemência? Só nos seus sonhos.
É. Às vezes. Nos sonhos. Quero dizer, eu não sonhava que batia nele. Mas ultimamente Lucius vinha tendo mais participações especiais no meu sono. Em casamentos. Em cavernas escuras. À luz trêmula de velas.
Ele me soltou, ficando sério.
– Eu nunca agradeci a você apropriadamente. – Ele se levantou um pouquinho, ajeitando-se, e se contraiu de dor com o movimento. – Por ter cuidado de Fera, por ter ficado comigo. Você foi muito corajosa.
Mudei de posição também, tentando não esbarrar na perna dele.
– Sinto muito por ela ter sido sacrificada.
Lucius olhou pela janela, com a boca encurvada para baixo.
– Você fez o que pôde. Mas acho que algumas coisas são perigosas demais para viver.
– Você tentou domá-la – acrescentei, sem jeito. – Funcionou durante um tempo.
– Não era da natureza dela ser domada. No fim, todos somos fiéis à nossa natureza. Ànossa criação.
Ficamos sentados em silêncio durante algum tempo e me perguntei no que Lucius estaria pensando. Na égua ou nele mesmo?
– Parabéns pelo segundo lugar – disse ele.
Acompanhei seu olhar até o quadro de cortiça na parede, onde eu havia pendurado a fita vermelha de vice-campeã ao lado de um punhado de outras azuis das competições de matemática que eu vencera. Claro, Faith Crosse tinha ficado com a fita azul. Meu desempenho havia sido bom, mas não o suficiente.
– Você merecia a azul – confessei a Lucius, séria.
– Que estranho eu ter sido “banido por toda a vida” da competição – observou ele, comironia. – Eles criaram uma regra nova, ficou sabendo? Só para mim. “É proibido levar animais ferozes para eventos públicos.” Fui o primeiro transgressor. Um pioneiro em violar a lei, por assim dizer. – Ele riu, tossiu forte e colocou as mãos sobre as costelas. – Desgraça.
Fiquei mexendo no iPod.
– Lucius?
– O que foi, Jessica?
Encarei seus olhos negros.
– Eu estava lá. Naquela noite.
– Eu sei.
– Sabe?
– Você chegou perto de mim tarde da noite. Segurou minha mão.
Voltei a futucar meu iPod, sem graça.
– Ah... Achei que você estivesse dormindo.
– Não fique mexendo nisso enquanto conversa. – Lucius tomou o aparelho dos meus dedos.– Claro que eu sabia que você estava lá. Tenho sono leve. Principalmente quando cada centímetro do meu corpo está destroçado de dor.
– Desculpa. – Dei um sorriso débil. – Não queria incomodar você.
– Não... pelo contrário. Fiquei comovido. – Seus olhos se suavizaram e todo o jeito imperioso sumiu. – Você chorou por causa da minha dor. Ninguém nunca chorou ao me ver sofrer. Não esquecerei essa gentileza, Jessica.
– Foi como eu me senti na hora. Não pude deixar de chorar.
– Não, claro que não. – O reconhecimento pareceu lhe causar dor, de algum modo. –Quando eu voltar à minha vida na Romênia, ninguém vai chorar ao ver Lucius Vladescu machucado. E, quando eu sofrer, como é inevitável, vou me lembrar de seu gesto com carinho e apreço.
– Também não vou me esquecer daquela noite – prometi. Enxuguei as palmas das mãos naspernas. Tinham ficado suadas. – Lucius, eu vi você beber sangue.
– Ah, o sangue. – Ele não pareceu surpreso com minha confissão. – Espero que não tenhaficado muito perturbada. Nem enojada. Eu não julgava que você estivesse preparada para isso. Pode ser bem repulsivo para quem não está acostumado.
– Eu meio que desmaiei.
Lucius deu um sorriso triste e olhou pela janela.
– Mesmo inconsciente numa mesa, consegui deixar você nauseada. Que belo talento eutenho.
– Não. Não foi só por ter visto o sangue. Eu... também senti o cheiro.
Lucius virou a cabeça lentamente para me olhar, como se não acreditasse no que ouvia. Vi uma pequena fagulha em seus olhos.
– Sentiu?
– Senti.
– E como era esse cheiro?
– Forte. Quase arrebatador.
– É. É assim mesmo.
– É isso o que você põe no copo de Morango Julius, não é?
Lucius sorriu, um tanto debochado.
– Eu pareço mesmo um homem que tomaria milk-shake de morango de um quiosque deshopping? Já não expressei o que sinto a respeito de coisas cor-de-rosa?
– É. Acho que eu deveria ter imaginado. – Uma pergunta estivera queimando minha cabeça. Uma pergunta para qual eu não tinha certeza se queria resposta. Mas precisava fazer. – Lucius, onde você o consegue? – Visões de filmes antigos, de mulheres aterrorizadas usando camisolas vaporosas, encolhidas diante de agressores com presas, surgiram na minha cabeça. – É... violento?
– Ah, Jessica, os vampiros têm meios. Não é uma coisa tão predatória como no passado.Boa parte fica armazenada, como vocês fazem com o vinho. Ninguém precisa pisotear as uvas quando quer tomar champanhe.
Movendo-se com cuidado para proteger as costelas, Lucius cruzou os dedos na nuca, afundou no travesseiro e olhou o teto. Sua voz profunda ficou pensativa.
– Dizem que nossa adega na Romênia é a melhor do mundo. Safras que datam do séculoXVIII. Podemos chamar um serviçal estalando os dedos, dar o nome de um veneno, para usar uma das minhas expressões prediletas, e nos deliciar.
Um tanto enojada e mais do que um pouco incomodamente empolgada, deixei que ele continuasse a falar, observando-o cair mais fundo num devaneio.
– E também, é claro, quando dois vampiros se casam, quando se unem por toda a eternidade, eles têm um ao outro. Dizem que é a melhor bebida. A fonte mais pura. – Lucius ficou mais introspectivo ainda, mais distante. – Do macho para a fêmea. Da mulher para o homem. Sangue compartilhado. Poderia haver um elo mais forte entre dois seres?
Um sorriso passou por seus lábios.
– O sexo é um prazer fugaz. Sem dúvida, um ato íntimo, que não deve ser descartado. Éfundamental para a procriação, além de ter outros benefícios óbvios.
O sorriso sumiu.
– Mas compartilhar o sangue com outra pessoa... expor nosso ponto mais vulnerável, onde a pulsação bate logo abaixo da pele, e confiar que seu parceiro irá se satisfazer sem dominálo... Isso torna o sexo quase insignificante, em comparação. O sexo é um ato desigual, do homem para a mulher. Mas o sangue... o sangue pode ser compartilhado de modo verdadeiramente igual.
Ele parecia ter me esquecido sentada ali do lado. Fiquei escutando, hipnotizada e... mais alguma coisa.
Ou talvez Lucius não tivesse esquecido minha presença. Seu olhar se virou de repente para mim.
– Mas você acha que eu estou delirando, que falo sobre impossibilidades, sobre atos irracionais. E está certa: a existência de um vampiro é irracional. Nós somos um estudo sobre impossibilidades.
Safra de sangue. Dentes furando pontos de pulsação. Continuava a parecer maluquice. Mas não era mais impossível. Ou mesmo indesejável, pelo modo como Lucius descrevia. Não, nem um pouco.
– Lucius, eu vi você beber sangue. Não é impossível.
– Ah, Jessica. – Ele descruzou as mãos de trás da cabeça. – Por que agora? Por que nessaaltura do campeonato, como diria o técnico Ferrin na quadra de basquete?
– Como assim “nessa altura do campeonato”?
Para mim parecia o início do jogo. Eu estava apenas começando a entender. Começando a acreditar. Por mais difícil que fosse aceitar aquilo, eu não podia mais negar. Acreditava que Lucius Vladescu era um vampiro. E que eu podia, no mínimo, sentir o cheiro do sangue. Reagir a ele. Havia muito mais para entender... para deduzir.
– Está dizendo que é tarde? – insisti.
Lucius apoiou a cabeça nas mãos, esfregando os olhos, aparentando cansaço.
– Por que fui contar toda essa baboseira romântica? Eu me deixei ser levado. Droga, àsvezes sou irresponsável. Eu queria tanto que você entendesse e agora é o momento errado. Desejei partilhar tudo isso com você antes. E então, quando demonstrou interesse, não consegui me calar.
– Não pareceu “baboseira” – garanti. Ao contrário, tudo o que ele dissera era intrigante,ainda que de um modo perturbador, admito. – E por que não agora?
Mas antes que Lucius pudesse responder, meu pai bateu à porta entreaberta.
– Lucius, visita para você.
Lucius se empertigou de novo e arqueou as sobrancelhas.
– Para mim? Visita?
Também fiquei surpresa. Que eu soubesse, Lucius não havia cultivado muitas amizades nos Estados Unidos.
Antes que eu pudesse pensar em alguém, papai ficou de lado, a porta se abriu mais e um narizinho petulante, preso a um rosto lindo enfeitado por cabelos tão claros que praticamente reluziam, entrou hesitante no quarto.
– Oi, Lucius.
Lucius olhou em direção à porta. Olhou com muita intensidade, quase como se nunca tivesse visto Faith Crosse.
Presumi que ele estivesse furioso com ela por quase tê-lo matado. Mas de repente seu rosto se abriu num sorriso. Um sorriso estranho. Como se houvesse acabado de ter uma revelação.
– Bem-vinda, Faith – disse ele. – Entre. Essa é mesmo uma surpresa agradável. Desculpe-me se não posso me levantar para cumprimentá-la.
– Não, sou eu quem precisa pedir desculpas – respondeu Faith, entrando no meu quartocom um beicinho exagerado. – Acho que está preso aqui por minha culpa. – Ela examinou o quarto. – Tipo, é horrível.
Estreitei os olhos para ela. Está falando dos ferimentos do Lucius? Ou da minha decoração?
– Minha égua e eu estávamos em rota de colisão desde o início – tranquilizou-a Lucius. –Eu flertei com a inevitabilidade. Você só fez a cerimônia de casamento.
Faith inclinou a cabeça, como se não soubesse se ele a culpava ou não.
– Bem, espero que esteja se sentindo melhor. – Ela remexeu na bolsa e pegou um iPod. –Trouxe um presente de melhoras.
Entregou o aparelho a Lucius, que sorriu para ela.
– Obrigado, Faith. Foi muita gentileza. – Ele me lançou um olhar. – Acho que não vou maisprecisar do seu, Jessica.
– Imaginei que fosse ficar entediado, preso na cama – acrescentou Faith, que ainda nãohavia admitido minha existência. – É o modelo mais novo e você pode carregar as músicas que quiser.
– Ele gosta de música croata – observei. Não que alguém tivesse pedido minha participação.
Lucius levantou um dedo.
– E do Black Eyed Peas. E não se esqueça do Hoobastank. Será que alguém pode seesquecer do Hoobastank?
– Verdade? – guinchou Faith, batendo palmas. – Eu também adoro o Hoobastank.
Lucius fez um gesto para a cama.
– Por favor, sente-se, Faith.
Três seria definitivamente de mais no meu colchão estreito de solteiro, ainda mais com um vampiro de mais de 1,80 metro esparramado ali. Por isso me levantei. De qualquer modo, eu não estava muito a fim de passar o meu tempo com uma líder de torcida grosseira e egoísta. – Acho que já vou.
– Tchau, Jenn.
Faith me dispensou e ocupou o meu lugar perto de Lucius. Deixou-se cair com força na cama e ele se encolheu, quase imperceptivelmente.
– Cuidado com a perna dele – avisei, pensando em como ela era uma bruxa que só pensavaem si mesma.
– Jessica – chamou Lucius quando cheguei perto da porta. – Espere.
– O que é? Precisa de alguma coisa?
– Não. Tenho algo para você.
Ele tateou debaixo do travesseiro e pegou um livro. Prendi a respiração, reconhecendo o exemplar de Crescendo como morto-vivo – Um guia para o vampiro adolescente sobre namoro, saúde e emoções.
– Você largou isso embaixo da cama. – Lucius o estendeu para mim, mantendo a mãoestrategicamente posicionada sobre o título. – Estava esquecido no meio da poeira. Depois de toda a consideração que coloquei na dedicatória...
Peguei o livro com ele, apertando-o contra o peito e escondendo-o de Faith.
– Ah, obrigada.
– Acho que você vai achar o capítulo sete muito útil. Lamento não poder dar mais orientação do que isso. Mas o livro deve responder à maior parte das suas perguntas.
– Achei que essa fosse sua especialidade – brinquei, pensando na dedicatória.
– Para ser sincero, sugiro que satisfaça qualquer curiosidade que possa ter e depois jogueo guia fora. De uma vez por todas. Na verdade é muito barulho por nada. Meus olhos se arregalaram.
– O quê?
Desde quando Lucius Vladescu achava que qualquer coisa relacionada aos vampiros era “muito barulho por nada”? Eu tinha acabado de ouvir o cara fazer poesia sobre laços de sangue.
Tentei decifrar sua expressão, mas Lucius já estava concentrado de novo em Faith.
– Estou sendo grosseiro ao falar de coisas particulares quando tenho uma visita. Por favor,desculpe-me, Faith.
– Sem problema, Lucius. Tenho muito tempo. – Faith sorriu para mim e repetiu: – Tchau.
Mas eles nem me notaram. Faith já havia chegado mais perto de Lucius, demonstrando todas as funções de seu novo iPod. As cabeças estavam inclinadas sobre a telinha e eles riam.
Olhei mais uma vez para minha fita idiota de segundo lugar, desejando não ter pendurado nada no quadro de cortiça. Faith estava sentada praticamente embaixo dela. A fita no quarto dela era azul. E maior. Fita de vencedora. Minha fita vermelha era de cor mais forte, mais ousada, brilhando no quarto ensolarado, atraindo o olhar como um pássaro exótico. Mas aquela faixa de seda carmim era na verdade somente a prima patética e débil da azul.
– Tchau – falei.
Eles não responderam, já imersos na conversa, por isso saí, levando o livro.
Parei ao pé da escada e abri no capítulo sete. O título era: “Então você sentiu cheiro de sangue? Parabéns!”
Li o parágrafo de abertura, não uma, mas quatro ou cinco vezes: “O aumento da percepção olfativa – às vezes se aproximando do estímulo sexual – quando você está na presença de sangue é sinal de que sua natureza vampírica está florescendo!” Minha natureza vampírica.
Alguns parágrafos adiante o guia orientava: “Logo você sentirá sede de sangue, em especial quando enfrentar emoções fortes.”
Acima de mim, ouvi Lucius rir com Faith Crosse. Eles riam alto e intensamente, como se já compartilhassem histórias muito antigas. 
CAPÍTULO 28
– Mindy, o que você está fazendo aqui? – perguntei, abrindo caminho pelas
arquibancadas até onde ela estava.
– Eu poderia perguntar a mesma coisa – retrucou ela, sinalizando para que eu me sentasseao seu lado.
Larguei a mochila e me sentei.
– Jake me convidou para assistir ao treino de luta – expliquei, acenando para ele. Jakepiscou para mim, os músculos se avolumando quase como num desenho animado, mal contidos pelo macacão justo de lycra. – Por isso repito: o que você está fazendo aqui?
– Ah, não sei. – Mindy sorriu. – Às vezes eu dou uma passada, só para acompanhar otreino.
O ginásio era dividido para permitir que equipes de vários esportes partilhassem o espaço. Os tatames de luta estavam desenrolados num canto, as líderes de torcida saltavam perto dos lutadores e o time de basquete ocupava metade do piso brilhoso de madeira. O ar estava cheio de grunhidos e gritos das líderes de torcida, de guinchos dos tênis e de cheiro de suor.
Um apito soprou agudo.
– Vladescu! Na frente, pelo centro, droga! – A voz retumbante do técnico Ferrin soouacima de todos os outros barulhos. – Você está há uma hora no bebedouro! Arrasta esse rabo de volta para o treino!
Fiquei mais empertigada, olhando quando um romeno alto de cabelos escuros correu vindo do vestiário dos garotos e entrou na quadra.
– Lucius está jogando?
– Se está... – Mindy suspirou, sonhadora.
– Mindy, é por causa do Lucius que você vem pra cá?
– Não é, tipo, um vício – protestou ela. – Talvez só uma ou duas vezes por semana. Mas,poxa, olha só para ele!
Enquanto assistíamos, Lucius agarrou uma bola atirada contra seu peito, deu alguns passos agressivos em direção à cesta, saltou aparentemente sem esforço e enterrou a bola.
– Mas ele ainda nem voltou para as aulas.
– É, eu o encontrei no corredor antes do treino. Ele disse que vai voltar às aulas amanhã. –Ela me lançou um olhar curioso. – Achei que você tinha dito que a perna dele estava quebrada.
– Estava machucada... – Ah, inferno. Eu havia desistido de tentar explicar os mistérios deLucius Vladescu. – Acho que agora está melhor.
– E como.
– Mindy!
– Ah, olha ele de short, Jess. Tem uns caras que a gente quer que fiquem de roupa. MasLucius podia até tirar mais uma camada. Tipo, você não gostaria de ver o que tem por baixo daquilo?
De fato, o corpo por baixo das roupas devia ser praticamente perfeito – com a exceção de outra cicatriz, uma marca larga, serrilhada, que cortava o volumoso bíceps direito. Como ele ganhou aquilo? E será que havia mais em outras partes do corpo? A perna esquerda, que tinha sido quebrada, exibia um grande hematoma preto, o único sinal de que ele ainda estava machucado. Fora essas pequenas imperfeições, não havia nada para criticar. Até as cicatrizes eram sexy. Além disso, Lucius era uma cabeça mais alto do que a maioria dos outros jogadores, os músculos das pernas eram mais definidos e os ombros, mais largos, mais masculinos, sem serem bombados...
Lancei um olhar culpado para Jake, sentindo que o havia traído.
Mindy acompanhou meu olhar.
– Ei, olha lá seu namorado se embolando.
– Não sei se ele é meu namorado...
– Qual é, Jess? Vocês estão juntos. Saíram duas vezes na semana passada, almoçam juntosquase todo dia e você está aqui, não está?
Vi Jake girando no tatame, grunhindo.
– Consegue guardar um segredo, Mindy?
– Poxa, somos amigas desde o jardim de infância. Alguma vez entreguei os seus segredos?
– Não. Nunca.
Mindy era um monte de coisas: desligada, impulsiva, obcecada por sexo. Mas nunca foi desleal.
– E aí? Desembucha!
– Não sei bem se Jake e eu combinamos tanto assim.
Os olhos de Mindy, cercados por uma grossa camada de delineador, se arregalaram.
– O quê? Achei que gostasse dele de verdade!
– Ele é... legal – respondi, encolhendo-me um pouco ao usar o adjetivo desprezado porLucius. – Mas não sei se existe algo intenso mesmo. Não como eu gostaria.
– Hummm. Bem, Jake não é nenhum Lukey – concordou Mindy, com o olhar voltando àquadra de basquete. – Eu disse isso desde o início.
– É, eles são muito diferentes.
Se ela soubesse como eram diferentes, talvez não ficasse tão a fim de seu Lukey. Mindy tinha quase desmaiado quando dissecamos minhocas no sexto ano. Não era o tipo de garota que beberia sangue.
– Não que eu fosse trocar Jake por Lucius – acrescentei. – Só estou dizendo que não tenhocerteza sobre Jake e eu.
– E eu estou dizendo que você deveria finalmente se ligar e escolher o Lucius, antes queele se canse de dar em cima de você. Admita, Jess. Lucius tem carisma – acrescentou ela, assentindo na direção das líderes de torcida. – Veja como Faith está olhando para ele. Lukey chama atenção.
Quando olhei para o outro lado do ginásio, Faith Crosse subia rumo ao topo de uma pirâmide de líderes de torcida – andando por cima das pessoas, como sempre –, mas seu rosto estava virado para a quadra de basquete, onde Lucius conversava com o treinador. O modo como Lucius ficava parado, as mãos nos quadris, mais alto do que o treinador Ferrin, parecia dizer que o pivô astro era quem estava no comando. Olhei de volta para Faith. Ela estava em cima de sua pilha humana mas continuava a observar a discussão no meio da quadra.
– Falando nisso – Mindy interrompeu meus pensamentos –, você está muito bonita hoje.
Essa roupa é nova?
Afastei o olhar de Lucius e Faith e alisei a saia de tecido amarrotado, acima dos joelhos.
– É. Gostou?
– Gostei. Fica bem de roxo. E a gola em V é muito sexy.
– Sexy demais?
– Não. Na medida certa. Você devia usar coisas assim com mais frequência. Fica meio...exótica. Tipo uma cigana ou sei lá. – Ela olhou para a minha cabeça. – E fez alguma coisa no cabelo também?
Amassei os cachos com os dedos.
– Usei um umidificador de cachos em vez de tentar alisar o cabelo. Acho que estou cansada de lutar contra a natureza.
– Está ótimo. – Mindy assentiu, me avaliando. – Brilhoso. E é diferente do que todo mundofaz. Tipo, descolado.
Um grito agudo ressoou e olhei para a frente bem a tempo de ver Faith Crosse se estatelar no chão, derrubando toda a pirâmide. Seu esquadrão caiu um a um, como dominós berrando embaixo dela.
Praticamente todo mundo no ginásio correu para olhar ou ajudar. E a primeira pessoa a chegar ao local do acidente, estendendo a mão para ajudar Faith a ficar de pé, foi ninguém menos do que Lucius Vladescu.
Uma a uma as outras líderes de torcida se levantaram e se examinaram para ver se ninguém estava machucada. Como todo mundo, Faith parecia bem, mas Lucius segurou o braço dela e a levou na direção do vestiário, onde os dois pararam, conversando.
– Ora, ora, ora – observou Mindy. – Se você vai trocar Jakey por Lukey, é melhor correr, porque parece que pode ter concorrência. Olha só para ela, fazendo o cara bancar o cavalheiro diante da donzela em perigo!
Quase ri disso. Para começar, Faith namorava Ethan Strausser desde sempre. E o mais importante, Lucius nunca me trocaria por outra garota, mesmo que a bunda dela ficasse linda no saiote de líder de torcida. Ele gostava de mulheres com curvas. E estava prometido a mim.
Porém, enquanto eu os acompanhava de longe, Lucius e Faith riram alto, como tinham feito no meu quarto. Depois ela lhe deu um empurrãozinho cheio de flerte e ele sorriu para ela, parecendo menos aflito do que no passado. Com a postura mais relaxada. Mais... livre.
– É – riu Mindy. – Se você quer o Lukey, seria bom agir. Faith está babando por ele comose o garoto fosse uma bolsa Prada que tivesse ido parar numa liquidação do Wal-Mart. A preço de banana e pronta para saltar direto nos braços dela!
– Não, isso é maluquice – protestei.
Se bem que, apenas uma semana antes, eu pensava que vampiros fossem maluquice.
O que Lucius quis dizer quando falou “nessa altura do campeonato”?
Enquanto eu olhava Lucius e Faith conversarem, rirem juntos, tive uma sensação estranha, como se alfinetes quentes pinicassem meu coração. Ciúme! Outro sentimento também cresceu dentro de mim. Um sentimento de posse. Um sentimento forte, de proprietária, que beirava a raiva. Uma sensação de ser dona. De ter direito sobre Lucius.
Meus dedos envolveram a lateral do banco, apertando-o com força.
E, de repente, pela primeira vez, senti sede. Muita, muita sede.
De uma coisa que eu nunca havia desejado antes. Exatamente como meu guia para vampiros alertara.

29
– Estou morto – disse Mike Danneker, bocejando enquanto pegava os livros e
fechava a tela do seu notebook. – Não aguento mais matemática.
– Só mais uns exercícios – insisti e abri um dos meus livros de cálculo mais desafiadores.
– A gente poderia fazer esses problemas de palavras...
– De jeito nenhum – respondeu Mike. – E você também devia ir para casa, Jess. Vaiacabar surtando se estudar tanto assim. Ainda faltam semanas para a competição.
– Por isso mesmo que a gente precisa treinar.
Mike se levantou, pendurando a bolsa do notebook no ombro.
– A gente se vê, Jess. Descansa um pouco.
Ele foi andando por entre as mesas e me deixou sozinha no meio da biblioteca da escola. Virei uma página do meu caderno, tentando me concentrar. A verdade era que eu não conseguia focar a mente nos problemas. Talvez fosse porque não parava de pensar em como me sentira no ginásio: com sede de sangue.
Enquanto olhava para o livro, com a mente se afastando de novo para longe de limites, derivadas e integrais, escutei vozes e passos no labirinto de estantes. – A gente devia comprar os trabalhos na internet.
Frank Dormand.
– Nem pensar. Pegaram três caras no ano passado e dois deles perderam a bolsa para auniversidade.
Ethan Strausser.
– E agora? A gente procura uns livros sobre a Liga das Nações? – perguntou Dormand. –Não dou a mínima para isso.
Escutei o som de livros sendo retirados de estantes.
– Por que a Faith não faz os trabalhos para a gente? – acrescentou Dormand. – Ela éinteligente.
Minhas orelhas se eriçaram ao ouvir o nome de Faith.
– Ultimamente ela está um porre – disse Ethan. – Não sei o que está acontecendo.
– Ela anda direto com o Vladescu – disse Frank, cuspindo o sobrenome de Lucius como se fosse um mosquito que tivesse entrado na boca. – Ele deve estar passando sua doença para ela, o filho da mãe.
Com que frequência Lucius tem andado com Faith? E o que eles estão fazendo? O sentimento de posse e o ciúme atravessaram meu corpo de novo. Tentei me lembrar: quando fora a última vez que Lucius havia falado do pacto? E sobre fazer a corte? Percebi que não não sabia. Como podia não saber?
– Aquele esquisito acha que é o dono da escola só porque consegue fazer umas cestas domeio da quadra – resmungou Ethan.
– Tem alguma coisa errada com aquele cara – observou Dormand. – Ele não é normal.
Fiquei imóvel na cadeira, concentrada em escutar a conversa. No fundo, não tinha como Frank e Ethan saberem nada sobre Lucius, mas me incomodava pensar que dois dos maiores imbecis da escola começavam a discutir o fato de que ele era diferente. Eu não sabia direito por que isso me incomodava. Dois valentões idiotas não poderiam ser ameaça para alguém tão seguro de si e fisicamente forte como Lucius. Mas isso me irritou um pouco.
– Você só está pê da vida porque ele bateu em você na frente de todo mundo e acertou suacabeça oca no armário – observou Ethan.
– É. Se ele tivesse quase estrangulado você, também estaria pê da vida. – Dormand fezuma pausa. – Cara, tem alguma coisa estranha no maluco. Quando ele me segurou... sei lá...
foi surreal.
– Qual é? Você ficou com tesão? – zombou Ethan. – O que quer dizer com surreal?
Eu esperava que um panaca metido a machão como Dormand ficasse furioso com o que Ethan estava sugerindo. Mas, pela primeira vez, Frank pareceu quase pensativo.
– Cala a boca, cara – disse ele. – Você não sentiu aquilo.
Ouvi o som de livros sendo enfiados de volta nas estantes.
– Vamos dar o fora daqui – disse Ethan. – Vou arranjar alguém para fazer esse trabalho.
Enquanto eles se afastavam, ouvi Dormand acrescentar:
– Quanto ao Vladescu... aquele cara ainda vai ter o que merece. Ele não é normal. E um dia desses vou descobrir o que tem de errado.
A voz de Dormand foi sumindo enquanto eles saíam da biblioteca.
Olhei ao redor e tentei dizer a mim mesma que a vaga inquietação que eu sentia era totalmente injustificável. Mas, por algum motivo, não me convenci. Frank Dormand era um valentão incansável. Eu vinha sendo objeto da provocação daquele garoto desde que conseguia me lembrar. Sabia como ele era capaz de cismar com um alvo.
E se Frank começar a investigar a vida de Lucius? O passado dele? O que ele é? Será que Dormand pode descobrir alguma coisa?
Não.
A ideia era quase idiota. Frank Dormand não era capaz nem de encontrar um livro sobre a Liga das Nações numa biblioteca de escola. Nunca descobriria que Lucius era um vampiro. Nem em um milhão de anos.
E, mesmo que descobrisse, qual era a pior coisa que poderia acontecer? O condado de Lebanon não era a Romênia. Era um lugar civilizado. As pessoas não formavam turbas para trucidar os vizinhos com estacas, pelo amor de Deus. Isso era ridículo. Lucius ficaria bem.
Então por que não me senti melhor quando fechei os livros, desistindo da matemática – fechando a capa da lógica e da razão – pelo resto da noite?
30
CARO VASILE,
Dezembro no condado de Lebanon, na Pensilvânia, é de “pirar o cabeção”, para usar mais uma expressão que aprendi durante essa longa estadia. Este é um mês muito comemorado aqui nos Estados Unidos. Agressivamente, poderíamos dizer. Cada superfície imaginável é coberta por fios de luzes que piscam; os prédios são sufocados por enfeites verdes; e uma mania coletiva de erigir gigantescos “bonecos de neve” infláveis, diante das casas, irrompe no populacho. É uma tremenda histeria – e os pinheiros não são apenas um mito, Vasile. As pessoas compram as árvores, em abundância. Estão à venda por toda parte. Imagine pagar pelo privilégio de arrastar um pedaço imundo da floresta para dentro de sua sala de estar com o objetivo de decorá-lo com bolas de vidro e admirar o resultado.
Por que uma árvore? Se fosse necessário expor bolas de vidro, por que não usar algum tipo de vitrine? Uma cristaleira, por exemplo?
Gastei muita energia defendendo os vampiros contra acusações de “irracionalidade”. Se soubesse algo sobre a onipresença dos pinheiros, teria dito apenas: “É, talvez eu seja irracional. Mas mantenho minhas árvores no lugar delas. Fora de casa. Diga-me agora: quem é o louco aqui?”
Mas chega dos feriados de fim de ano. (Enfie minha cabeça embaixo d’água até eu me afogar e assim estarei livre de escutar “Jingle Bells” pela milésima vez!) Escrevo em primeiro lugar para informar que tenho muito pouco a informar. Parece que me curei e dominei a arte de dormir na aula de “estudos sociais”. (Continue com sua fala monótona, Sra. Campbell. Passei ao largo de sua tentativa abominável de transformar a tediosa Primeira Guerra Mundial num dos conflitos mais dramáticos da Terra: gás mostarda!
Trincheiras! A aniquilação de nada menos do que quatro impérios!)
Ah, sim. Talvez o senhor se interesse – ou não – em saber que também fiz uma amiga.
Uma garota bastante ferina, Vasile. Tenho quase certeza de que o “bom velhinho” Papai Noel a colocou na lista das crianças “malvadas”. (Uma referência obscura para você, sem dúvida. Confie em mim: Faith Crosse é uma criatura bem fascinante.)
Eu lhe desejaria um “feliz Natal”, mas tenho certeza de que, se existe algo que o senhor detesta mais que o Natal, é esse tipo de “felicidade”.
Seu sobrinho,
Lucius
P.S.: Fique tranquilo porque, apesar de não ter abordado o assunto no corpo desta carta, recebi sua resposta trovejante, ainda que atrasada, à minha sugestão de liberar Antanasia de suas responsabilidades vampíricas. Não deixei de compreender sua ira diante de minha afirmação de que “luto contra o freio”. De fato, o senhor foi bastante claro quando disse que “me faria sentir saudade do freio quando o chicote fosse usado”. As imagens equestres são muito vívidas. Todos os argumentos foram levados cuidadosamente em consideração. Mas será que devo acatar sua ordem de continuar com a perseguição agressiva a Antanasia? Da Romênia é difícil dizer, não é? A distância é de “pirar o cabeção”. 
31
– Jessica, é você? – perguntou Lucius. Ouvi a porta do apartamento da garagem se fechar, seguida pelo som de pés batendo para tirar a neve.
– Oi. – Espiei da pequena cozinha. – Você chegou cedo.
– E você está... aqui. – Ele jogou o sobretudo na poltrona de couro. – Achei que havíamosretomado nossas residências tradicionais.
– E retomamos. – Voltei para a cozinha, mexendo uma panela fervente. Droga. Eu esperava estar com o jantar mais adiantado quando ele chegasse da escola. – Por que já está em casa?
– O treino de basquete foi adiado por causa da neve. Nos Cárpatos diríamos que isso é oequivalente a uma garoa. Um pequeno inconveniente. Aqui parece motivo de pânico nas ruas. Saques e tumulto pelo último pacote de pão de forma na mercearia. – Lucius farejou o ar. – Repito: por que você está aqui? E que cheiro é esse?
– Eu sabia que você estava cansado de pratos vegetarianos, por isso preparei um coelho.Vi alguns no seu freezer quando eu estava dormindo aqui.
Ele parou por um segundo.
– Você fez o quê?
– Cozinhei um coelho.
– Na verdade isso se chama “lebre” – corrigiu Lucius, juntando-se a mim na cozinha. – E,se você não sabe o nome correto, como sabe o que fazer com ela?
– Encontrei este livro de culinária na sua estante. – Mostrei o volume velho e manchado. –Tá vendo?
Lucius franziu a testa, lendo.
– Cozinhando ao estilo romeno. Em inglês! Esqueci que havia trazido isso. – Ele me olhou e deu um sorriso malicioso. – Nosso cozinheiro mandou isso para os seus pais, supondo que ajustariam o cardápio de acordo com o meu gosto. Certamente nunca esperavam que eu fosse parar na casa de veganos que nunca se dignariam a aceitar nem mesmo a paixão de um membro da realeza romena pela carne.
– Bem, hoje temos bastante carne no cardápio – prometi. – Também estou fazendo a sopade cordeiro azedo. – Peguei o livro com ele, abri e apontei para a página que havia marcado. – Esta receita.
Lucius examinou.
– Como você conseguiu “levistan em pó” no condado de Lebanon?
– Olhei no cozinhadatransilvania.com. Dá para substituir por estragão.
– Esse cheiro deve ser do “cordeiro azedo” – disse Lucius, franzindo o nariz. – Isso vai impregnar o lugar. E se seus pais souberem que você cozinhou carne, estará encrencada. – Ei, estou tentando ser legal.
Lucius gargalhou.
– É. Deixando-me com uma bela infecção intestinal. Quem não tem experiência não deve mexer com carne de caça. – Ele levantou a tampa da panela com a lebre, que estava fervendo, depois me olhou com uma sobrancelha arqueada. – Você limpou esse bichinho, não limpou?
– Tipo... lavar na pia?
– Remover as tripas e os miúdos. Estou vendo alguma coisa flutuando aqui...
– Tinha tripas?
Lucius pegou uma colher e mexeu na panela.
– Acho que identifiquei a fonte do cheiro. Eu diria que isso é um baço – anunciou ele,pescando uma coisa de aparência escorregadia. – Um orgãozinho maligno. Não é a parte mais palatável de coisa alguma. Nem gatos famintos comeriam um baço.
– Acho melhor jogar fora a lebre – falei com tristeza. O jantar não estava indo tão bemquanto eu esperava.
– Na verdade, Jessica, por mais que eu aprecie o esforço...
Alguém bateu à porta.
– Com licença – disse Lucius, indo atender.
– Ah, claro.
Espiei dentro da panela. Havia outras coisas escorregadias começando a borbulhar enquanto a lebre se desfazia. Eca. Quem iria imaginar?
A porta se abriu rangendo.
– Luc! Oi!
Sentindo algo parecido com um chute na barriga, bati a tampa da panela. Conhecia aquela voz animadinha.
Faith Crosse.
O que ela está fazendo aqui?
– Teve algum problema com a neve? – perguntou Lucius.
Senti cheiro de pizza sobre o fedor do baço.
– Não. Para mim não é grande coisa. – Faith riu. – Peguei emprestado o 4x4 do meu pai.Se acontecesse um acidente, eu não morreria.
Que altruísta! Fui até a entrada da cozinha e me encostei na porta, de braços cruzados, observando os dois.
– Finalmente alguém do condado de Lebanon que entende como enfrentar um pouquinho deprecipitação congelada – disse Lucius, aprovando. – E será que posso acrescentar que você está linda, como sempre? Se bem que nem é preciso dizer.
Argh. Eu ia vomitar e não seria por ter comido entranhas.
– Ah, Luc. – Faith equilibrou a caixa de pizza como uma garçonete, liberando uma das

mãos para apertar o braço dele, em um flerte descarado. – Você sempre diz a coisa certa.
– E você trouxe a coisa certa – disse ele, pegando a pizza. – Esta é uma iguaria local que passei a apreciar.
– Com certeza cheira melhor do que o que está cozinhando aqui. – Faith olhou em volta,buscando a fonte do odor, e me notou. – Ah, oi. – Ela franziu o nariz. – Eu estava dizendo que tem alguma coisa fedendo aqui.
– Tem mesmo – concordei.
Lucius passou por mim, levando a pizza para a cozinha.
– Como eu ia dizer, Jessica, o jantar seria meio inconveniente esta noite, porque chameiFaith para estudar.
– Estudar?
Eu me senti mais passada do que o coelho. Mais azeda do que a sopa de cordeiro.
– É – disse Faith. – Lucius me pediu que fosse sua parceira em literatura inglesa.
Parceira? Para quê? E se houvesse necessidade de alguma parceria, por que eu não fui convidada? Virei-me para Lucius, sabendo que havia traição em meu olhar. Queria que ele visse, mas seus olhos me evitavam.
– Lembra que eu me ofereci para o “relatório oral obrigatório” sobre O morro dos ventos uivantes? – perguntou ele. – Bem, depois de testemunhar intermináveis apresentações emburrecedoras dos meus colegas de turma, pensei que seria interessante condensar o romance numa pequena peça. Para enfatizar as partes dramáticas.
– Eu vou ser Catherine – observou Faith.
– Acho que com isso você vai ser Heathcliff – falei para Lucius, mal conseguindo mascarar a infelicidade na voz.
– Exatamente.
Desliguei o fogão. Talvez o fedor provocado por mim suma dentro de um ou dois anos.
– Então acho que vou nessa. Não quero atrapalhar vocês.
– Pode ficar para a pizza – ofereceu Lucius. – Você não deve ter comido. Espero que nãotenha provado o coelho. Pode não ter fervido por tempo suficiente para matar os parasitas...
– Você estava fervendo o cabelo? – indagou Faith. – É assim que você deixa ele desse jeito, Jenn?
Encarei Faith por um longo tempo, desejando dar uma resposta à altura. Mas nada me veio à mente. Nada.
– Vou para casa – falei, tentando sair com um pouco de dignidade. Tentando passar poreles sem chorar. Tinha dado tudo errado. Um desastre completo.
Lucius deve ter visto minha frustração, a humilhação no meu rosto, porque disse:
– Com licença um momento, Faith.
– Claro, Luc – disse ela, indo para o outro lado do cômodo pequeno. – Vou dar umaolhada nas suas armas aqui. Adoro a decoração diabólica.
Lucius pegou meu braço, levando-me para a porta.
– Jessica – disse baixinho –, sinto muito.
– Pelo quê? – Mal me incomodei em baixar a voz. As lágrimas estavam se juntando nosolhos. Lágrimas de ciúme. Lágrimas de vergonha. Eu era idiota demais. Tinha tentado preparar um coelho para Lucius e ele ia receber uma garota. E não era qualquer garota, mas Faith Crosse.
– Foi gentileza sua tentar... um gesto doce... – Havia piedade nos olhos de Lucius enquantoele empurrava um cacho para trás da minha orelha, como se eu fosse uma criança magoada.
– Mas talvez não tenha sido a melhor ideia. Não agora.
– É – concordei, empurrando a mão dele para longe do meu rosto. – Foi um erro.
– Faith é minha amiga – explicou ele, com calma. – Sinto que preciso de uma amiga agora.
Alguém que me entenda.
Essa doeu. Quem poderia entendê-lo melhor do que eu?
– Eu entendo você.
– Não. Não do mesmo modo... – Ele olhou para Faith, que havia tirado uma espada daparede e testava o gume. – Não posso explicar agora.
– Ah, nem precisa.
A voz dele endureceu um pouco, assim como o aperto de sua mão no meu braço.
– Jessica, você tem Jake. Você escolheu Jake. E tem Melinda, também. Será que eu devo ficar isolado?
– Não. Claro que não. Tudo bem. – Soltei meu braço de sua mão, abri a porta bruscamentee saí correndo do apartamento, sem me incomodar em pegar o casaco.
Enquanto descia a escada fazendo barulho, as lágrimas começaram a escorrer e ouvi Lucius falar no patamar:
– Jessica, por favor...
Segui em frente. Ele não chamou de novo. Antes mesmo de ter chegado lá embaixo, ouvi a porta se fechar com força.
CAPÍTULO 32
Desde a infância, volta e meia eu tinha aquele pesadelo. Ele sempre me
deixava trêmula, demorando-se na mente mesmo depois de eu acordar. Eu o expulsava assim que voltava para o estado de alerta, quase sempre suando frio, embolada nos cobertores. Tentava esquecê-lo pensando em coisas reais. A raiz quadrada de qualquer número positivo real pode ser determinada com a fórmula de Newton... Era assim que eu o enfrentava: agarrando-me à realidade, ao que era concreto.
Mas, naquela noite, em meados de dezembro, o sonho, mais vívido do que nunca, não queria ser extirpado.
– Antanasia... Antanasia...
Ela estava me chamando. A princípio, como um acalanto, um canto reconfortante.
Estava escuro e nevava naquele lugar de montanhas desconhecidas, íngremes e irregulares. Os afloramentos de rocha negra, molhada, que brotavam dos montes de neve eram como dentes. Como presas. A neve caía com mais força, de modo quase ameaçador, como se a tempestade estivesse viva e à procura de sangue.
– Antanasia!
Ela me chamava três vezes e na última era sempre diferente. Como um grito súbito. O gemido de alguém caindo de um dos penhascos...
E depois o silêncio.
Apenas o som do vento e a neve em redemoinho, chicoteando os picos das montanhas que recuavam para cada vez mais longe...
Meus olhos se abriram de repente.
Fiquei deitada na cama por alguns minutos, permitindo pela primeira vez que o sonho saturasse minha mente, se acomodasse e ficasse familiar.
Aos poucos, eu o aceitei.
E então chutei as cobertas emboladas, libertando-me, fiquei de pé sobre o piso de madeira fria e fui em silêncio até a cômoda. Abri a gaveta de baixo, com cuidado para que ela não fizesse barulho. Tateando às cegas sob uma pilha de camisetas que eu não usava mais, meus dedos localizaram o que eu procurava. O livro que Lucius tinha me dado. Levei o volume até a escrivaninha e acendei a luminária.
No círculo de luz, li o título, agora familiar. Com dedos surpreendentemente firmes, folheei as páginas, à procura do envelope de papel encerado, ainda enfiado perto do final, a umas 40 páginas do pesado marcador de prata.
Quando encontrei o envelope, levantei-o com cuidado – parecia delicado demais ou talvez precioso demais para ser manuseado. Enfiei dois dedos dentro dele e retirei o conteúdo. A foto.
Prendi minha respiração quando vi uma mulher com um vestido de seda carmim, numa pose formal, a postura régia porém confortavelmente ereta, os ombros para trás, o cabelo preto e encaracolado num coque sobre a cabeça, envolvido por uma tiara prateada. O nariz era um pouquinho achatado, a boca um tantinho larga demais para ser de uma beleza convencional. Uma sugestão de sorriso brincava nos cantos dos lábios, como se alguém houvesse lhe contado uma piada e ela quisesse rir, apesar de terem lhe dito para ficar séria. Para parecer majestosa.
Uma pedra escura e pequena parecia flutuar no ponto onde o esterno encontrava o pescoço, o cordão fino demais para ser visualizado na imagem.
Minha mãe.
Olhei mais de perto. Seus olhos... seus olhos eram como os meus.
Assim como o nariz. E a boca com ar divertido.
Eu reconhecia cada parte do rosto de Mihaela Dragomir, como se a tivesse visto mais cedo, naquele dia. Talvez porque a vira mesmo, no espelho.
No entanto, a mulher da foto era diferente de mim. Possuía uma qualidade especial que era melhor do que a beleza tradicional: presença.
Recordei as palavras de Lucius, ditas semanas antes: “Mulheres americanas. Por que todas vocês querem ficar quase invisíveis? Por que abrir mão de ter uma presença física no mundo?
Mesmo numa fotografia antiga, dava para ver que minha mãe tinha isso. Presença. Mihaela Dragomir era cativante. O tipo de mulher que atrairia todos os olhares ao entrar em uma sala.
Virei a foto para ver se tinha data, mas não havia nada escrito, por isso olhei-a de novo, estudando seu rosto por muitos minutos, ouvindo na cabeça a voz do sonho. Desfrutando do acalanto de minha mãe, silenciado havia muito tempo, e me obrigando a suportar o grito de sua perda. De novo e de novo e de novo. Será que ela gritou pela perda da própria vida? Ou por me perder? Por nossa separação eterna?
Quando senti que o peso de nosso passado compartilhado começava a ficar opressivo demais, enfiei a foto de volta no envelope. Ela encontrou resistência, como se outra coisa dentro a bloqueasse. Pus a foto com cuidado sobre a escrivaninha, virei o envelope e o sacudi delicadamente. Um pedacinho de papel quase translúcido caiu na palma da minha mão.
Reconheci a letra. Era a mesma que tinha visto no quadro na aula da Sra. Wilhelm em setembro. VLADESCU. A mesma letra que estava na dedicatória do meu guia de vampira.
Ela não é linda, Antanasia?
Não é poderosa?
Majestosa?
Não é exatamente como VOCÊ?
Era quase como um poema. Uma ode. A mim.
Li de novo, embora tivesse memorizado na primeira vez, depois enfiei o bilhete de Lucius de volta no envelope, seguido pela foto, e recoloquei tudo no livro, que deixei na escrivaninha. Depois girei na cadeira, captando meu reflexo no espelho de corpo inteiro que ficava pendurado na porta do quarto. À luz suave, eu poderia ser Mihaela Dragomir, a camisola de flanela transformada em um vestido de gala, de seda...
Num impulso, segurei o cabelo no alto da cabeça e ajeitei os ombros.
Ela não é linda?
Não é poderosa?
Majestosa?
Ela não é VOCÊ?
Soltando o cabelo, apaguei a luz e voltei para a cama, sem saber se queria ficar feliz, chorar ou as duas coisas.
Ela não é VOCÊ?
CAPÍTULO 33
No dia de sua grande apresentação, Lucius e Faith chegaram atrasados
para a aula de literatura inglesa, cinco minutos depois de o sinal tocar – para melhor nos surpreender com seus figurinos. Faith usava um vestido desbotado que parecia da era vitoriana e tão apertado na cintura e tão justo sobre os seios que Frank Dormand, sentado à minha frente, quase caiu da cadeira quando ela entrou na sala. Lucius, para seu papel de Heathcliff, apenas ressuscitou o sobretudo de veludo e a calça preta que tinha usado regularmente havia apenas um mês, mais ou menos.
– Minha nossa – foi só o que a Sra. Wilhelm pôde expressar ao ver aquilo tudo.
Acho que ela ficou um pouco preocupada com a hipótese de os peitos de Faith pularem para fora num momento inoportuno, o que com certeza violaria as normas de vestuário da escola.
Mas foi Lucius que imediatamente tomou conta do centro do tablado, introduzindo sua pequena peça, ensinando com mais autoridade do que a Sra. Wilhelm jamais fora capaz.
– Heathcliff é uma criatura indomada, um homem condenado – lembrou ele. – Catherinetambém está condenada. Condenada a amar Heathcliff, que deve destruir a ela e à sua descendência. Está em sua natureza tomar o que deseja. E o que ele quer é vingança, acima de tudo. Catherine é uma selvagem admirável. O amor deles é impiedoso, cruel, amargo e maligno.
– Ah, minha nossa! – exclamou a Sra. Wilhelm, agitando-se numa cadeira nos fundos dasala. Dessa vez acho que estava quase babando pelo Lucius.
– Admiro muito essa história – acrescentou ele. – Ela ecoa.
Torci a caneta nos dedos, quase quebrando-a, confusa e triste. Amor impiedoso, cruel e maligno. É isso o que ele quer? Será que foi isso o que sempre esperou de mim? Lucius chegou a esperar algum tipo de “amor” entre nós?
Olhei para Jake, que deu de ombros e revirou os olhos azuis, como se achasse toda aquela produção meio exagerada. Sorri para ele, mas sem emoção. Por que, por que não consigo sentir algo mais profundo por Jake? Ele é bonito, é popular, sem nenhum traço de crueldade ou perigo em seu corpo musculoso. Por que essa vontade toda de me virar e olhar para Lucius? Um cara que é todo errado para mim? Um VAMPIRO arrogante, enigmático e potencialmente perigoso?
Jake era a escolha sensata, doce e previsível.
No entanto, me virei, ansiosa por olhar para Lucius.
Quando voltei ao drama, ele encarava Faith e a peça começou. De algum modo, condensaram a primeira metade do livro, pegando citações aqui e ali, inventando algumas coisas, imagino, e costurando tudo numa intensa cena de 25 minutos que foi da infância alegre e despreocupada dos dois personagens até Catherine trocar Heathcliff pelo gentil Sr. Linton.
Pelo menos acho que foi isso o que eles representaram. Eu só conseguia me concentrar nos movimentos brutos e ao mesmo tempo ternos dos corpos deles. O modo como Lucius agarrava o pulso de Faith, puxando-a contra o peito. O modo como os olhos de Faith se arregalaram quando ela se soltou. A paixão quase parecia... real.
Minha caneta de plástico se quebrou de verdade sob a pressão dos dedos, com a tinta manchando minha mão e batendo no meu rosto. Não, Lucius. Não.
Ninguém notou. A turma toda estava fascinada enquanto Faith, com os olhos azuis grudados nos olhos negros de Lucius, sussurrava, a voz intensa com o que eu temia desesperada não ser paixão fingida:
– Independentemente do que nossas almas sejam feitas, a sua e a minha são iguais.
Eles ficaram ali, imóveis, cara a cara, até que alguém percebeu que era hora de aplaudir. Mindy se ajoelhou na cadeira, enfiou os dedos na boca e assobiou, coisa que eu nem sabia que ela era capaz de fazer.
Como se acordassem com aquele alarme estridente, Lucius e Faith saíram dos personagens, sorriram, deram-se as mãos e fizeram uma reverência profunda na direção da plateia. De alguma maneira os seios de Faith permaneceram no lugar, se bem que, pelo modo como Frank Dormand esticava o pescoço, acho que pelo menos ele conseguiu uma boa visão do que estava debaixo do vestido.
Tive que admitir que foi a melhor apresentação de trabalho sobre um livro que eu havia visto na vida. Provavelmente a melhor já feita na Escola Woodrow Wilson.
E odiei cada segundo daquilo.
Lucius era o meu noivo. Eu é que deveria estar lá em cima. Algo fora roubado de mim. E não se tratava apenas de alguns segundos de glória diante da turma. Naquele momento eu soube que havia desperdiçado a chance de uma vida inteira de glória ao lado do homem mais envolvente, enfurecedor, carismático e aterrorizante que eu já havia conhecido. Parte de mim sabia que eu deveria me sentir aliviada. Durante meses, me livrar de Lucius Vladescu tinha sido tudo o que eu mais queria. E, mesmo assim, só me sentia vazia, derrotada e desesperada para encontrar um modo de trazê-lo de volta para mim. Então me lembrei do pacto. Lucius nunca deixaria de honrar o pacto. Deixaria?
Enquanto os aplausos iam morrendo, Faith saltou para o corredor a fim de se sentar atrás de mim, seguida por Lucius, que nem me deu bola.
Então refleti: será que eu iria querer o cara se ele só estivesse ligado a mim pela obrigação? Que tipo de vitória seria essa?
Olhei para Lucius, mas ele estava inclinado para a frente, sussurrando algo para Faith.
Um amor impiedoso, cruel, amargo e maligno... Lucius realmente desejava isso? Será que desejava mesmo Faith? Nesse caso, será que algum dia eu havia tido uma chance? Será que deveria querer uma chance? 
CAPÍTULO 34
– Trouxe sua roupa lavada – gritei, dando um chute na porta do
apartamento de Lucius.
Ele abriu a porta.
– Ah, obrigado, Jessica. – Em seguida pegou o cesto cheio de roupas emboladas, franzindoa testa. – O que é isso?
– Mamãe disse que você pode começar a dobrar sua própria roupa.
– Mas...
– A mordomia acabou, Lucius – avisei, seguindo-o para dentro do quarto. Eu não haviaentrado ali desde a desastrosa tentativa de preparar um jantar romeno, uma semana antes. O ar ainda fedia um pouco a baço.
Lucius jogou as roupas na cama e recuou, examinando aquela confusão.
– Imagino que seja tarde demais para contratar uma lavadeira...
– Ah, se liga! Não banque o bebezão. Eu faço isso duas vezes por semana. E não acho queexista nenhuma “lavadeira” aqui por perto.
– Isso é um infortúnio regional seu e não meu. – Ele pegou uma meia, segurando-a como se nunca tivesse visto aquilo antes. – Por onde começar?
Peguei a meia dos dedos dele.
– Quer dizer que você é capaz de liderar uma nação de vampiros mas não consegue juntarum par de meias?
– Cada um com suas habilidades – observou Lucius, incapaz de conter um sorriso. – Felizmente, as minhas estão no ramo da liderança e não das “tarefas subalternas”. Dei um sorriso relutante.
– Eu ajudo. Só dessa vez.
– Obrigado, Jessica.
Lucius se deixou cair em sua poltrona de couro.
– Eu disse “ajudo” e não “faço para você”.
Ele não fez qualquer esforço para se mexer. Pelo contrário, deu um risinho, afundou mais na poltrona e cruzou os dedos atrás da cabeça.
– Acho que uma demonstração serviria melhor.
– Seu idiota! – gritei, jogando a meia de volta na pilha e puxando seu braço, pondo-o depé. Claro que Lucius era forte demais para mim e, quando me puxou de volta, acabei caindo sobre o peito dele, nós dois rindo.
Aos poucos o riso foi parando e nossos olhos se conectaram de verdade pela primeira vez desde aquela noite medonha em que eu havia tentado cozinhar uma lebre. De repente não estávamos mais de brincadeira.
– Jessica – disse ele baixinho, envolvendo meu pulso com os dedos.
– O que foi, Lucius? – perguntei, me apoiando com mais força em seu peito, com o coraçãocomeçando a bater mais forte.
Talvez eu não tivesse sido vencida por Faith. Os olhos dele tinham a mesma expressão da noite de Halloween, mas sem a raiva e a frustração. Em vez disso havia uma espécie de desejo mais suave. Um desejo menos temível, embora quase igualmente amedrontador. Mesmo assim não me afastei dele. Dessa vez sabia que não queria me mover. Iria enfrentar o que quer que acontecesse.
Soltando meu pulso, Lucius puxou com delicadeza um dos meus cachos, deixando-o voltar para o lugar, como uma mola.
– Você mudou o cabelo. Aceitou seus lindos cachos.
– Você gosta?
– Sabe que gosto... – Ele girou outro em volta do dedo. – Isso é fiel a você.
Eu me ajeitei um pouco e minha mão pousou na curva rígida de seu bíceps. Ele usava uma camiseta e eu podia sentir a cicatriz serrilhada que atravessava seu braço. Minha confiança estremeceu por um momento. Honra. Disciplina. Força. A criação dele foi bem diferente da sua, Jessica... A família Vladescu tem a reputação de ser implacável...
– Como conseguiu isso? – perguntei, acompanhando a cicatriz com a ponta dos dedos.
Algo mudou nos olhos dele. O brilho no negrume diminuiu um pouco.
– Foi um acidente. Não é uma história que valha a pena ser contada.
Ele estava mentindo.
Continuei a acompanhar a cicatriz com o dedo. Era larga e eu não conseguia imaginar o que seria capaz de rasgar a carne daquele jeito... até que pensei nas armas na parede. Mas quem faria aquilo com ele? Com qualquer pessoa?
– Pode me contar o que aconteceu – incentivei-o. Eu entendo você... Ou posso tentar entender... Por que quer arrancar isso dele, Jess? Por que não pode deixar isso pra lá? Porque quero saber sobre ele. É por isso. Eu queria saber a verdade sobre Lucius. Suas histórias. Seu passado. O que ele desejava.
– Jessica – gemeu ele, envolvendo minha cintura. – Se pudéssemos não falar, neste momento. Se pudéssemos apenas ser.
Não. O que quer que acontecesse teria que ser nos meus termos também. Eu tinha visto Lucius com Faith. Não seria idiota. Não cairia no seu charme, na sua experiência... não se o que ele realmente quisesse fosse algo diferente ou algo que eu não pudesse dar...
Acompanhei a outra cicatriz, no queixo, e ele segurou minha mão, afastando-a um pouco. – Jessica...
– Você quer mesmo isso? – sussurrei.
Ele continuou segurando minha mão, movendo-a até a boca, roçando os lábios nela. – Quero o quê, Jessica?
– O que você disse na sala de aula.
Ele pareceu em dúvida.
– Na sala...?
– Um “amor amargo, cruel e maligno”? É o que você quer de verdade?
Quando falei isso, foi como se tivesse cortado uma corda que nos atasse e Lucius, ainda segurando minha mão, sentou-se empertigado, colocando-me de pé e empurrando-me com a mão gentil porém firme. E se levantou também.
– Lucius?
Então ele sorriu, um pouco triste, como se não houvéssemos acabado de compartilhar o que compartilhamos.
– Estamos aqui, perdendo tempo, e a roupa lavada espera na cama – disse ele, com odeboche habitual na voz. Em seguida se inclinou sobre o colchão e pegou uma cueca. – Nessa velocidade, todos os amassados vão se fixar. E um Vladescu pode dobrar as roupas, se coagido, mas nós não passamos a ferro.
– Lucius? – Toquei seu braço. Não queria saber, mas precisava. – O que está rolando entrevocê e a Faith?
Lucius sacudiu a cueca, evitando meus olhos.
– Faith?
– É. Faith – respondi, me sentando na beira da cama.
– Ela me intriga – admitiu ele, conseguindo de algum modo dobrar sua roupa de baixo.
– Por quê? Por que você gosta dela?
Como se eu não soubesse. Lucius Vladescu podia falar quanto quisesse sobre a beleza das curvas, dos cachos e da importância de se ter presença, mas, no final das contas, era como todos os outros homens – todos os outros garotos –, que ficavam de quatro pela líder de torcida loura que tinha barriga sarada, peitinhos empinados e bunda perfeita debaixo daquela saia curta idiota.
– Ah, Jessica – disse Lucius, parecendo estar ligeiramente exasperado. – Durante meses euperguntei como poderia preferir um camponês e você nunca me deu uma resposta satisfatória. Talvez essas coisas não possam ser explicadas com facilidade.
– Então você gosta da Faith?
Nesse momento ele me olhou.
– Eu a aprecio.
Aquela confirmação na lata me deixou constrangida, mesmo que já soubesse a resposta.
– Há alguma diferença?
Lucius suspirou e se sentou ao meu lado na cama, olhando para a parede.
– Talvez, Jessica. Realmente importa, nessa altura?
– O que isso quer dizer? Por que você fica falando como se o pacto estivesse acabado? Ea guerra?
– Você nem acredita no pacto ou na guerra.
– Agora acredito – insisti.
Lucius ignorou essa revelação. E eu que achava que isso era tudo o que ele sempre quisera escutar. Um pequeno sorriso cruzou seu rosto.
– Esse baile de Natal que vai acontecer é um evento social muito esperado, pelo queimagino. As garotas querem ir, certo? O Atarracado vai vestir o melhor macacão e levar você, não é?
– Quanto ao Jake...
O que eu iria fazer com relação ao Jake? Desde aquele dia no ginásio, em que eu havia confessado a Mindy minhas dúvidas sobre nosso relacionamento, vinha me distanciando dele. E quando dei as costas ao Jake para ver Lucius encenar sua peça na aula de literatura inglesa, eu sabia que estava dando as costas a um cara maravilhoso... um cara que gostava de mim de verdade. Uma pessoa boa que não bebia sangue nem tinha cicatrizes perigosas. E mesmo assim eu tinha feito isso.
– Não sei se vamos juntos – respondi. – Estamos meio que afastados.
Dando de ombros, Lucius se levantou e voltou a dobrar a roupa.
– Devem fazer o que deixa vocês dois felizes, Jessica. Devem fazer o que é certo paravocês.
– E você vai fazer o que é “certo para você”, eu suponho – falei, mal- -humorada.
– Estamos nos Estados Unidos, como sou lembrado constantemente na aula de estudossociais – observou Lucius. – Temos direito à escolha por aqui. – Ele fez mímica de uma balança com as mãos. – Pepsi ou Coca? Mc Donald’s ou Burger King? O antigo namorado ou o novo?
– É. Mas e o Ethan? Ele e Faith estão juntos há séculos.
– Eu já disse, Jessica. Todos temos escolha. Incluindo Faith. Ethan não tem direitos sobreela. Não vi nenhuma aliança no dedo da garota.
Claro que Faith tinha escolha. E havia optado por Lucius. Eu tivera provas disso no ginásio e na aula de literatura inglesa. Que inferno! Eu já tinha visto na competição do Clube da Juventude, quando ela segurou meu braço distraidamente, olhando Lucius arrasar no percurso com sua égua maldita. Só não quis admitir a mim mesma. A coisa toda foi acontecendo na minha cara e eu havia me obrigado a permanecer cega.
Então Lucius sorriu para mim, mas havia algo parecido com tristeza em seus olhos.
– Você tem sorte, Jessica – disse ele. – Não está tão presa à tradição, ao peso do passado.Aqui você é livre. Não somente para escolher um refrigerante, mas para escolher seu destino. É uma sensação empolgante, não é?
Acho que eu tinha vivido tanto tempo com minhas possibilidades que não as considerava tão “empolgantes” como Lucius. Na verdade, naquele momento, eu até queria estar amarrada com um pouco mais de força ao passado. Ao mesmo tempo, porém, uma raiva súbita me atravessava. Raiva de Lucius.
– Se você está tão a fim da Faith, o que foi aquilo? – Apontei para a poltrona de couro,onde nós havíamos acabado de nos embolar. Onde eu podia jurar que Lucius esteve a ponto me beijar. – Ali, na poltrona. Quando passou o braço em volta de mim. O que foi aquilo, Lucius?
Lucius baixou a camiseta que estava dobrando, deixando os braços caírem ao lado do corpo.
– Aquilo, Jessica, foi quase um erro.
Um erro? Ele tinha acabado de dizer “um erro”?
Esticando-me no meu 1,62 metro e juntando uma força que eu nunca soube possuir, alimentada por uma indignação da qual não sabia ser capaz, recuei a mão aberta e dei um tapa tão forte no rosto de Lucius Vladescu que sua cabeça virou bruscamente.
Ele ainda estava coçando o queixo quando bati a porta.
Romeno sugador de sangue idiota. Tinha sorte de eu não ter feito outra nobre cicatriz em seu corpo imperial. Se ele se metesse de novo com Jessica Packwood – Antanasia Dragomir –, com toda a certeza receberia um tratamento régio. 
CAPÍTULO 35
– Foco, Jess, foco – falei para mim mesma.
Mas quanto mais eu me obrigava a ficar concentrada, mais a concentração me escapava. Era como se agarrasse bolhas de sabão que flutuavam no ar. Bolhas cheias de códigos matemáticos e números sem significado. Sinais de adição, de subtração, de raiz quadrada girando em volta da minha cabeça. Todos estouravam no segundo em que eu os pegava. Estouravam e sumiam.
De algum modo, apesar de faltar a vários treinos, eu tinha conseguido chegar à última rodada da Olimpíada de Matemática de Lebanon, em que competiam os melhores estudantes. Sem canetas. Sem papel. Nem mesmo uma chance de reler as perguntas. Só a moderadora lançando problemas orais e 10 alunos de pé, um tentando responder antes dos outros.
Eu queria muito vencer. Aquela era uma arena onde eu podia brilhar. A gente não precisava ser bonita, nem loura, nem rica, como Faith.
Para com isso, Jess. Você pode chegar ao campeonato estadual se mantiver a cabeça no lugar.
Olhando para o público modesto encostado nas paredes do refeitório, vi o Sr. Jaegerman suando no terno de poliéster escolhido para hoje – um marrom-acinzentado medonho – e me observando. Ele sorriu e fez o sinal com os polegares para cima. Mike Danneker estava lá também, depois de ser eliminado na rodada de velocidade, quando entrou em pânico inexplicavelmente por causa de alguns polinômios rotineiros.
Mike pôs as mãos em concha na boca:
– Não erra – sussurrou, de modo teatral. Como se isso ajudasse.
A moderadora terminou de folhear os papéis.
– Pergunta número dois. Um caixa de banco distraído trocou os dólares pelos centavosquando descontou o cheque de pagamento da Sra. Jones. Depois de comprar uma xícara de café por 50 centavos, a Sra. Jones percebe que tem o triplo do valor do cheque original. Qual é o valor do cheque?
Eu podia fazer isso. Era uma equação diofantina. Isso. Então por que meu cérebro não funcionava?
Quanto mais eu me concentrava e raciocinava, mais indecifrável me parecia toda a linguagem das equações. Era como se parte da minha mente estivesse se desligando. Morrendo. Isso havia começado semanas antes, quando passei a me afastar de Jake e me aproximar de Lucius. Para longe da humanidade comum e em direção a um mundo onde o sangue tinha um cheiro delicioso. O cálculo fazia minha cabeça viajar. A álgebra perdia aos poucos a atração. E agora eu estava numa sala cheia de matematletas, em que eu deveria ser uma força dominante, mas, em vez disso, só conseguia pensar: dólares? Centavos? Café seria uma boa... Onde se pode conseguir uma xícara de café por 50 centavos? Mas eu não queria café. Queria ir para o campeonato estadual. Raciocina, Jessica... E nenhum pensamento me vinha. Pelo menos não do tipo certo. Será que o café ajudaria?
– Não! – berrei, sem nem perceber que tinha falado a palavra em voz alta, até que o salãojá quieto ficou completamente silencioso e todas as cabeças se viraram na minha direção.
Comecei a suar como se fosse o Sr. Jaegerman num dia de verão, empolgado com um problema envolvendo uma parede alta e o ângulo do sol.
Humilhada. Eu tinha sido humilhada.
– Foi mal – falei, me dirigindo a todo mundo e a ninguém em particular. Todos continuavam a me olhar: meus concorrentes, meus colegas de equipe, os espectadores. E, assim, saí do lugar designado para mim e fui andando, com o que eu esperava que fosse um pouquinho de dignidade, em direção à porta.
No corredor, me encostei na parede fria, de azulejos. O que estava acontecendo com o lado esquerdo do meu cérebro? A parte que deveria controlar a análise e a objetividade parecia entorpecida. E pinicando. Como se fosse mastigada pelo lado direito, o aleatório, intuitivo, não lógico. Apertei as têmporas com os dedos, massageando-as, tentando aliviar uma dor que eu sabia que não era exatamente física.
– Jessica, você está bem?
O Sr. Jaegerman passou pela porta e correu até o meu lado, bufando um pouco e enxugando a testa com um lenço. Eu sabia o que ele estava pensando. Seu cavalo premiado acabara de quebrar uma pata no último obstáculo. Ele havia investido quatro anos em mim e eu tinha saído mancando.
– A matemática está parecendo... difícil ultimamente – tentei explicar, encarando o Sr.
Jaegerman, desesperada. – Não sei o que está acontecendo. Não consigo me concentrar.
– As coisas estão bem em casa? – ele tentou perguntar. O esforço de forjar uma conexãohumana real entre nós que não fosse sustentada pelos números fez o suor empoçar em seu lábio superior e escapar pelos cantos da boca. Ele usou a gravata para enxugar o queixo. – Problemas com garotos? – sugeriu, nervoso. Parecia à beira de algum tipo de espasmo, como se tivesse penetrado demais numa caverna profunda e percebesse que não havia oxigênio ali.
Se eu começasse a me abrir, ele poderia desmaiar no corredor. Eu precisava salvá-lo, deixar que ele respirasse.
– Não, não é um garoto – menti, poupando meu professor de um ataque cardíaco.
– Ah, graças a Deus! – exclamou ele, apertando o peito. E então percebeu o que tinha dito.
– Quero dizer, claro que, se fosse um garoto, você poderia me contar...
– Tudo bem – insisti. – Não é nada disso.
Mas era. Só que Lucius não era um garoto, de fato. Era um homem. E eu o queria de volta.
Mas sabia que não adiantava mais. Ele estava a fim da Faith.
– Vou me sair melhor da próxima vez, Sr. Jaegerman – prometi. – Vou mergulhar noslivros amanhã. Me concentrar.
– É isso aí, Jess.
O Sr. Jaegerman estendeu a mão para dar um tapinha no meu ombro, hesitou e recuou de volta.
– Vamos voltar para dentro – falei, corajosamente. – Pelo menos posso ouvir, tentar resolver os problemas só por diversão.
– É, é – concordou o Sr. Jaegerman, aliviado porque nosso momento pessoal havia passado. – Excelente ideia.
Acompanhei meu treinador de volta ao refeitório. Mas, para ser honesta, resolver problemas não parecia divertido nem excelente. Parecia a atividade mais sofrida que eu poderia imaginar.

36
CARO VASILE,
O senhor sabia que nos Estados Unidos as “opções” são tão abundantes que alguns indivíduos de mente débil chegam ao ponto de se sentir assoberbados e precisar de aconselhamento psicológico (eu sei: nós gargalhamos!) só porque são incapazes de se orientar em meio às opções quase infinitas inerentes a literalmente cada ato, por mais insignificante que seja?
Aqui, até mesmo pedir uma pizza (finalmente esbarrei em algo comestível) exige múltiplas decisões. Grande? Extragrande? Com pepperoni? Algum tipo de legume? Mais queijo? Menos queijo? Queijo escondido, como uma surpresa, dentro da massa? E, por falar em massa... grossa? Fina? Moldada à mão? Ou devemos repensar tudo e pedir no estilo de Chicago? Ou à siciliana?
Francamente, Vasile, pedir comida “para viagem” (também descobri que posso comandar um exército de supostos serviçais, todos andando por aí em velhos Ford Escorts) exige tanta estratégia quanto alguns generais devotam a uma batalha em que sangue de verdade, e não apenas molho de tomate, será derramado.
Por falar nisso, lamentei saber que os Dragomir estão cansados de esperar o retorno de sua princesa e a consumação do pacto.
Eles continuam sendo uma família impulsiva e impaciente, não é? Mas acusar-me de não me esforçar para cumprir com minha obrigação – e depois tentar cravar uma estaca num Vladescu num ataque de ira... Esse tipo de coisa pode precipitar um conflito terrível, Vasile. E de repente considero toda essa possibilidade enfadonha demais.
Será que nós, vampiros, devemos sempre recorrer tão rapidamente à violência? Será que não poderíamos nos sentar em volta de uma “loura gelada” e “esfriar a cabeça”, como minha televisão e meus colegas de time vivem insistindo para que eu faça? (O senhor ficaria pasmo com o esforço que os adolescentes americanos fazem para conseguir qualquer quantidade de cerveja, que é proibida aos menores de 21 anos. Na verdade é espantoso, Vasile – tudo por um pouquinho de lúpulo fermentado. Se ainda fosse por sangue...)
Retornemos à pequena explosão de tensões entre os Dragomir e os Vladescu. Por favor, aconselhe os dois lados a permanecerem pacientes, lembrando-lhes que somos vampiros. Por que tanta pressa quando temos a eternidade?
E já que estamos no assunto dos impetuosos Dragomir e da violência, nossa princesa-àespera me deu um tapa na cara bem impressionante um dia desses. O senhor, dentre todos os vampiros, sabe como é difícil fazer minha cabeça se virar com o uso da mão aberta.
Devo dizer que admirei a força por trás do tapa. Muito impositiva. E o modo como os olhos dela relampejaram foi bastante régio.
Quanto à causa de minha humilhação pela bofetada de Antanasia... Talvez seja melhor deixar para outra missiva.
Enquanto isso, será que eu poderia lhe pedir que mandasse, com extrema presteza, algumas das minhas roupas formais? Digamos, talvez, o smoking Brioni que adquiri em Milão. E despache um par de abotoaduras discretas também. Confio no seu julgamento. Tenha em mente que a maior parte dos meus colegas de festa estará usando smokings alugados. (O senhor sabia que é possível alugar roupas? Isso não parece repulsivo? Vestir calças usadas por uma sucessão de predecessores de pedigree duvidoso e higiene incerta? Mas é verdade.) O fato é que desejo, é claro, me apresentar de modo adequado à minha posição – sem sobrepujar indevidamente os demais. A deliberada demonstração de superioridade por meio da vestimenta é algo grosseiro, não acha?
Desde já agradeço pela ajuda.
Seu sobrinho, Lucius
P. S.: Que diabo. Por que não me despedir com o cumprimento americano tradicional?
“Feliz Natal”, tio Vasile. “E próspero ano-novo.”
P.P.S.: Realmente – “aconselhamento psicológico”! 
37
– Jessica, telefone para você – disse papai, enfiando a cabeça no meu
quarto. – É o Jake.
– Eu nem ouvi tocar – admiti, sentando-me e pegando o aparelho sem fio da mão dele.Estivera deitada na cama, olhando para o teto, pensando em vampiros infiéis e no fato de que meu cérebro parecia estar se desintegrando e desejando que minha vida fosse simplesmente normal de novo. – Oi, Jake – falei, com menos entusiasmo do que deveria ter. – E aí?
Eu deveria terminar com o Jake. Sabia disso e mesmo assim não tinha feito nada. Por quê? O que estou esperando?
– Oi, Jess. Eu só liguei... bom, estava pensando se ainda está tudo em cima para o baileformal de Natal. Não tenho visto você na escola...
– É, acho que andei ocupada. A gente devia se encontrar e bater um papo, mas...
Lá fora ouvi um grito agudo, depois uma gargalhada. Puxei a cortina de lado. Lucius e Faith estavam no quintal, travando uma guerra de bolas de neve bem vigorosa. Enquanto eu olhava, Lucius pegou Faith no colo e a jogou numa pilha deixada por nosso arado, esfregando gelo em seu gorro de lã cor-de-rosa.
– Lucius! – gritou ela, chutando-o. – Seu idiota!
É, Lucius... Você é, sim.
– Jess... você está aí?
– Ah, desculpa, Jake. – Fechei a cortina. – Estou.
– Eu estava perguntando sobre o baile, porque preciso alugar um smoking...
Lá fora, mais gritinhos contentes.
Jake acrescentou, um tanto inseguro:
– Espero que ainda queira ir, Jess.
Que cara legal. Muito, muito legal...
Abaixo da minha janela, Faith berrou:
– Não encosta a mão em mim!
Parecia que ela desejava exatamente o contrário.
Apertei o telefone, obrigando-me a prestar atenção em Jake. Será que eu tinha mesmo certeza de que queria terminar com ele? Será que pararia de viver só porque tinha sido dispensada por um estudante de intercâmbio metido que tentara me seduzir em seu quarto só para depois admitir que tinha sido um “erro”? Será que desperdiçaria todo o meu último ano escolar deitada na cama, preocupada em pensar se era uma vampira? Pelo amor de Deus! Não, eu não faria isso.
– Claro que eu quero ir, Jake – respondi, forçando a voz a parecer muito mais animada doque me sentia. – Mal posso esperar.
O alívio inundou a voz dele.
– Beleza! Então vou pegar o smoking amanhã. Se você tem certeza...
Será que Faith Crosse nunca vai parar de berrar no meu quintal?
– Claro que tenho, Jake – respondi, acrescentando logo antes de desligarmos: – Vai sermuito bom.
Estiquei-me na cama, puxando o travesseiro para cima do rosto e cobrindo os ouvidos para abafar toda a diversão que meu ex-noivo de pacto de sangue e Faith estavam tendo lá fora.
Enquanto ficava ali, odiando os dois, meus dentes começaram a doer. A princípio era só uma dor pequena, chatinha, mas, a cada vez que o som da guerrinha de Faith e Lucius chegava aos meus ouvidos, a dor ficava mais aguda. Era quase como se meus dentes estivessem apertados demais dentro da boca, forçando-se contra as gengivas, e eu quis arrancá-los. Desejava descobrir algum modo de libertá-los para se tornarem o que desejavam tão desesperadamente ser.
Fui até a cômoda e catei o guia de vampiro. Abri no sumário. Ali estava: Capítulo 9:
“Encontrando o caminho das presas!” Folheei até a página indicada.
“As garotas começam a sentir os incisivos doerem à medida que se aproximam dos 18 anos, embora algumas ‘precoces’ possam notar mudanças já aos 16. A sensação ocorre com frequência, ainda que não exclusivamente, em momentos de estresse emocional, não diferentes daqueles de sua primeira sede de sangue. Tente ser paciente e aceitar o ‘desconforto dental’ como parte da maturação vampírica, assim como você aprende a aceitar as cólicas menstruais como parte de seu crescimento para a condição de mulher. Lembre-se de que, quando for mordida pela primeira vez, suas presas serão liberadas para se expandir e desabrochar e logo você esquecerá as dores temporárias que a levaram à plena condição de vampira!”
Minhas presas poderiam ser liberadas com a mordida de um vampiro. Claro. Lucius tinha me contado isso quando fizemos compras. As presas das mulheres só cresciam quando elas eram mordidas.
Guardei o guia.
A boa notícia era que eu tinha um vampiro à mão no meu quintal. A má era que eu queria cravar uma estaca no coração do sujeito antes que ele tivesse chance de se aproximar – sem contar o fato de que ele não parecia mais dar a mínima para mim. O que uma jovem vampira “desabrochando” iria fazer?
38
– Você tem sorte que pelo menos uma de nós leia a Cosmopolitan e a
Vogue – disse Mindy em tom reprovador, entrando no meu quarto com umas 10 caixas de sapatos. A pilha era tão alta que ela não conseguia enxergar nada à sua frente. – Mindy e sua coleção de sapatos vieram prestar socorro!
Minha melhor amiga largou as caixas no chão, numa pilha desordenada, e seus olhos se arregalaram ao me ver.
– Caraca, Jessica!
– Isso é... bom?
Mindy veio correndo, agarrou meus braços e me girou, me olhando de cima a baixo.
– Você está... você está maravilhosa!
– O.k. – acalmei-a, soltando seus dedos um por um. – Pega leve porque esse vestido mecustou praticamente cada moedinha que ganhei na lanchonete durante o verão.
– E valeu cada centavo – declarou Mindy, confirmando com a cabeça.Olhei no espelho pendurado atrás da porta do quarto.
– É lindo, não é?
– Você é linda – corrigiu Mindy. – O vestido só deixa o resto do mundo saber disso. Onde comprou? Esse não é um vestido qualquer de poliéster do shopping.
– Voltei àquela loja esnobe onde comprei o vestido para o Halloween.
Dessa vez, fui eu que dei uma de superior diante de Leigh Ann. Mas tinha aprendido bastante com Lucius. Apenas alguns meses antes, eu não tinha noção de tudo o que poderia ser obtido apenas levantando o queixo e falando de nariz empinado.
– Isso é, tipo... veludo de verdade – disse Mindy, deslizando a mão pelo tecido.
– É. O busto, ou melhor, o corpete, como diria Lucius, é de veludo e a saia é de sedajaponesa tecida à mão.
Passei as mãos sobre o vestido preto. Era escuro como um céu noturno de agosto logo antes de uma tempestade. Tomara que caia, tinha corte reto e envolvia meu corpo num caimento perfeito. Não era apertado demais, mas justo o bastante para mostrar cada curva da minha silhueta. Quando me olhei no espelho, fiquei feliz por não ser magricela demais.
Aquele não era um vestido feito para um corpo de menino.
– Tenho os sapatos perfeitos – guinchou Mindy, revirando as caixas. Ela levantou um parde sandálias de salto alto e tiras, muito discretas para Mindy, mas perfeitas para o vestido.
– Tem certeza de que posso pegar emprestado?
– Claro – respondeu Mindy, com apenas uma levíssima sugestão de tristeza ou ciúme navoz. – Eu nunca vou a lugar nenhum. Pelo menos a sandália pode ter algum uso.
Dei uma abração na minha amiga.
– Obrigada, Min. Você é o máximo.
– Ah, não fica toda melosa. A gente ainda precisa fazer seu cabelo e já são quase sete danoite.
– Acha que pode me ajudar com, tipo, um coque? Quero que seja perfeito. Melhor ainda doque no Halloween.
– E eu não leio a Cosmo, a Vogue e a Penteados das Celebridades? – observou Mindy, pegando minha escova de cabelos. – Você está em boas mãos, Jessica Packwood.
Hesitei, depois peguei a foto da minha mãe biológica, que eu havia posto numa pequena moldura de prata sobre a escrivaninha.
– Será que consegue me deixar parecida com... ela?
Entreguei a foto a Mindy e ela ficou boquiaberta.
– Jess... essa é... essa tem que ser... – Ela me olhou, visivelmente chocada. – Ela era tipouma princesa ou sei lá o quê?
– É uma longa história – respondi, pegando a foto de volta. Olhei para Mihaela Dragomir.– Mas ela era especial, sim.
– O que você está me escondendo? – indagou Mindy, curiosa e meio cautelosa. – Temalguma coisa rolando.
– É só uma lembrança que me deram – expliquei evasiva, guardando a moldura. – Era algoque antes eu não conseguia encarar.
– Jess, ela é igualzinha a você. É quase sobrenatural.
Fiquei vermelha de prazer. Ela não é linda... poderosa... majestosa... como VOCÊ?
– Obrigada, Mindy, mas será que a gente pode falar disso mais tarde? Neste momentoestou desesperada por uma ajuda com o cabelo.
Quando falei em cabelo, Mindy voltou ao presente e pegou um punhado dos meus cachos.
– Deixa comigo, Jessica. Quando eu tiver terminado, toda garota da Woodrow Wilson vaiquerer ser você.
Depois de 15 minutos e um frasco de fixador inteirinho, Mindy segurou um espelho e me mostrou o resultado. Meus cachos estavam arrumados artisticamente, mas de maneira aleatória, na cabeça, como uma coroa gloriosa, brilhosa, e ela havia pegado uma mecha grossa e torcido em volta do coque, imitando a tiara da foto de minha mãe biológica. Mindy tinha mandado muito bem.
– Nunca mais vou rir da Penteados das Celebridades – prometi.
Lá embaixo, a campainha tocou.
– Jess? – perguntou Mindy, me dando uma última borrifada.
– O quê? – perguntei, ainda me admirando no espelho.
– Isso tudo é pelo Jake ou tem alguma coisa a ver com o fato de Lucius levar a Faith? Seique você sempre diz que não gosta dele. Mas mesmo assim é um saco quando alguém que era a fim da gente muda de ideia...

– É tudo por mim – interrompi, ajeitando os ombros. O vestido, o cabelo e a sandália, tudotinha a ver com sentir orgulho de mim mesma. Acreditar que eu era linda. Acreditar que eu era inestimável.
Esqueça Lucius e Faith Crosse. Minha intenção era ter presença.
– Então, arrasa com eles – disse Mindy, dando-me um abraço cauteloso, para não estragarmeu cabelo. – Você está incrível.
Dei uma última olhada no espelho enquanto descia para receber o Jake. Incrível. Essa era a palavra para minha transformação. Talvez eu acrescentasse também majestosa.
Apesar de estar mais do que um pouquinho triste e mais do que um pouquinho magoada, além de completamente confusa, a jovem mulher no espelho conseguiu dar um sorriso. 
CAPÍTULO 39
– Você está muito linda, Jess – disse Jake, me entregando um pouco de
ponche.
– Você também está legal, Jake.
Legal.
– Uma pena você andar tão atolada ultimamente – acrescentou ele. – Senti sua falta.
– Sabe como é, o último ano da escola... – desconversei, dando de ombros e tomando umgole de ponche.
– Nem me fale – concordou Jake. – Estão esfolando meu rabo.
Encolhi-me um pouco diante da expressão grosseira. Parecia algo que um... um... camponês diria.
– Tipo, se eu não ganhar uma bolsa, vou ter que ficar preso a uma faculdade preparatóriapor dois anos – continuou ele. – Vai ser um saco. Você já fez suas inscrições?
– Eu preciso passar para a Grantley. Você sabe, onde minha mãe dá aula. Aí não vou pagarnada.
– Irado. De graça.
Tomei outro gole de ponche, desejando que Jake e eu tivéssemos mais em comum. Talvez houvesse sido um erro ir com ele ao baile. De repente seria melhor eu ter ficado em casa...
– Ih... – Os olhos de Jake se arregalaram e ele apontou por cima do meu ombro. – Saca só.
– O quê?
Virei a cabeça e meu coração parou por um segundo.
Lucius havia chegado de braço dado com Faith. Ela estava reluzente num vestido prateado com alças finas e luvas que subiam até os cotovelos, o cabelo louro preso com uma tiara brilhante, como se fosse uma espécie de princesa do gelo. Uma rainha da neve cruelmente cintilante.
E Lucius... Lucius era seu equivalente escuro, num smoking de caimento perfeito. Mesmo do outro lado do ginásio era fácil ver que não era uma roupa alugada como a de Jake. O smoking de Lucius era feito sob medida para seu corpo alto e magro, as calças cortadas com perfeição e cobrindo a medida certa dos sapatos tão impecavelmente polidos quanto seus modos.
Olhei para Jake. O smoking dele era adequado. Preto, conservador. Nem um pouco espalhafatoso ou constrangedor. Mas se esticava nos ombros volumosos e a gravataborboleta estava um pouquinho torta.
Era totalmente injusto comparar os dois – tipo, Jake não pode pagar por um smoking sob medida –, mas foi o que fiz. Meu parceiro de pacto de sangue nunca estivera tão lindo. E Faith reluzia como um pingente de gelo alto e frio, pendendo do braço dele. Ela puxou Lucius para baixo, sussurrando no ouvido dele. Ele riu, mostrando dentes de um branco tão puro quanto o da camisa.
– Ethan não vai gostar disso – murmurou Jake, rindo.
Olhando em volta no ginásio mergulhado na penumbra, localizei facilmente Ethan
Strausser, com seu parceiro e capanga gorducho Frank Dormand à tiracolo. Ethan fuzilava Lucius e Faith com o olhar, o peito arfando de fúria. Ele esmagou seu copo de papel e o ponche voou na camisa, o que só o deixou com mais raiva. Esfregou a mancha e soltou um monte de palavrões.
– Viu? Ele está pê da vida – observou Jake. – É melhor Luc tomar cuidado no estacionamento. Ouvi dizer que Ethan quer acabar com o cara. Vai enfiar a porrada nele por estar saindo com a Faith.
Olhei de volta para Lucius. Ele guiava Faith para a pista de dança. Em seguida, envolveu a cintura dela com as mãos.
– Vem – falei, pegando a mão de Jake. – Vamos dançar.
– Claro, se você não tem medo de que vá eu pisar no seu pé – brincou Jake. – Não soumuito bom.
– Tudo bem, Jake – garanti, sentindo carinho pelo cara que me levava pelo ginásio, comminha mão apertada em seus dedos grossos, calejados de trabalho. Claro que Jake não sabia dançar, não tinha smoking nem sabia como fazer um elogio elegante. Era um garoto de fazenda e não um membro da realeza romena. Ele pôs uma das mãos na minha cintura, segurou minha mão direita com a outra e fizemos círculos lentos sob as luzes que piscavam.
– Isso é legal – disse Jake, colando seu corpo no meu.
– É – concordei, tentando me concentrar naquele sentimento carinhoso. Ele é legal, Jess. Tente sentir alguma coisa. Tente curtir o fato de estar com um cara legal, normal... Tente esquecer Lucius, vampiros e pactos...
Jake encostou a testa na minha. Éramos quase da mesma altura.
– Jess... – Ele me puxou para mais perto. – Faz um tempão que a gente não se beija.
– É, faz – concordei, sem saber o que mais poderia dizer. Tente, Jess...
Jake roçou o rosto no meu. Nossos lábios estavam para se encontrar quando, de repente, ele foi puxado para longe.
– Ei, que por...?
– Posso interromper?
Lucius estava parado na nossa frente, sorrindo, mas não de modo feliz.
Jake voltou a envolver minha cintura com o braço.
– Luc, a gente está dançando.
– E eu estou interrompendo. É assim que funcionam os bailes no lugar de onde venho.
– Não estamos em... no lugar de onde você veio – disse Jake.
– Lucius! – sibilei com os dentes trincados, olhando-o furiosa. Não. Ele não tinha o direito.
Lucius pôs a mão no ombro de Jake.
– Peço desculpas se me equivoquei com os costumes de vocês. Mas, por favor, me permita. Não ficarei com ela por muito tempo.
Jake olhou para mim, em dúvida.
– Só um segundo, Jake – pedi, querendo matar Lucius ali mesmo. – Eu cuido disso.Jake lançou um olhar raivoso para Lucius também.
– Só uma música.
Depois saiu batendo o pé no meio da multidão, claramente irritado.
– O que você quer? – perguntei. – A gente estava quase...
– É, eu vi o que vocês “quase” iam fazer.
– Isso não é da sua conta.
A música terminou e eu cruzei os braços em cima do peito, como se me protegesse contra ele. Mesmo quando odiava Lucius, eu me sentia vulnerável a ele.
– A música acabou, Lucius. Volta pra Faith.
– Vai começar outra música. Não é o que acontece nesses eventos?
E, obviamente, outra música começou.
– Podemos? – perguntou Lucius, passando o braço pela minha cintura e me puxando.
– Você não vai parar até conseguir o que quer, não é?
– Não.
– Então só uma música – resmunguei, deixando-me ser puxada, odiando o frio traidor naminha barriga.
– Você dança, Jessica? – perguntou ele, sorrindo para mim. – Valsa? Quadrilha francesa?
– Sabe que não.
– Ah, mas com a sua graça, você deveria. Eu poderia ter... – Lucius pareceu se conter edeixou a frase no ar. – Por enquanto, faça assim – instruiu ele, guiando minha mão esquerda para o seu ombro e pegando a direita, segurando-a perto do peito. Sua palma era fria na minha cintura. Aquela frieza familiar. Parte de quem ele era.
Não, Jess... não caia nessa... Ele está com a Faith... Você não passa de um “erro” em potencial.
– É só me acompanhar – afirmou Lucius. – Eu guio. Confie em mim.
Confiar em você...
Mesmo à revelia, me deixei ser conduzida, o corpo seguindo o dele.
– É, Jessica – disse Lucius, olhando-me com admiração. – Você tem um talento natural,como eu esperava.
Assim que ele disse isso, tropecei, pisando naqueles sapatos impecáveis.
– Desculpa – falei enquanto ele me firmava, puxando-me para mais perto ainda.
– Está tudo bem – disse Lucius. Tínhamos ficado quase imperceptivelmente mais lentos, sóo bastante para sairmos de sincronia com a música, movendo-nos em nosso próprio ritmo. – Todo mundo tropeça de vez em quando. Como você sabe muito bem. – Ele guiou minha mão para seu rosto, pondo as pontas dos meus dedos no lugar onde eu havia batido. – Ainda dói aqui quando faço a barba. Mas foi merecido.
– Se está tentando se desculpar...
– Estou tentando elogiar. É raro um indivíduo bater em mim e sair ileso.
A música era longa e nós oscilávamos juntos, ainda um pouco fora do ritmo, e meu coração tinha começado a bater acelerado. Meu Deus, eu não queria me sentir assim. Queria odiar Lucius com um fervor ainda maior por se enfiar no meio do meu encontro, interrompendo a tentativa de ter uma noite legal. Procurei manter Faith em mente. Faith, Faith, Faith, Jake, Jake. Erro, erro, erro.
Lucius pôs os dedos sob o meu queixo, inclinando minha cabeça para me olhar nos olhos de novo.
– Eu não tinha o direito de me intrometer daquele jeito, mas acho que é difícil abandonarvelhos hábitos.
Por algum motivo, quando ele disse isso, tive vontade de chorar. Quis que a música terminasse naquele momento ou talvez que continuasse para sempre.
– Você está linda demais esta noite – continuou ele. – Quando a vi nesse vestido... Nossa,Jessica. Eu a achava linda antes, mas hoje você se superou. – As pontas de seus dedos acariciaram a parte de trás do meu vestido, sentindo o tecido refinado. – Veludo e seda pretos ficam perfeitos em você. Parece um noturno de Chopin. Uma harmonia suave e ao mesmo tempo estimulante, feita para ser desfrutada à noite...
– Não, Lucius...
– Eu não poderia permitir que aquele garoto...
– Você está com a Faith – lembrei um tanto bruscamente. – Não comigo.
Uma dor fugaz relampejou nos olhos dele, quase como se eu tivesse lhe dado outro tapa.
– É, claro. Está certa. Não vou interferir de novo, Antanasia. Prometo.
Meus dedos apertaram seu ombro ao ouvir meu antigo nome. O nome que eu havia notado que ele tinha parado de usar.
– Você me chamou pelo meu nome. Meu antigo nome.
Lucius apertou minha mão, comprimindo o polegar contra minha palma.
– Velhos hábitos. Velhos nomes. Velhas almas.
– É isso o que somos? – Examinei seus olhos escuros. Nós tínhamos uma ligação...
Montanhas escuras, pactos de sangue... Ele não podia negar...
Mas negou.
– Estes são novos tempos.
Mesmo assim, Lucius soltou minha mão para me abraçar mais completamente, me puxar mais para perto, até eu quase me sentir parte dele. Quase não dançávamos mais, ficando apenas parados juntos, no meio da pista de dança.
– Como você me exaspera – sussurrou ele perto do meu ouvido. – Como testa minha decisão.
E antes mesmo que eu pudesse questionar o que ele queria dizer – era eu que o exasperava? –, ele encostou a testa na minha, como Jake havia feito pouco antes. Só que Lucius não moveu a boca na direção da minha. Apenas roçou os lábios de leve na minha bochecha e desceu pelo maxilar até o meu pescoço.
Uma sensação ferozmente maravilhosa e aterrorizante me fez estremecer e, na fração de segundo em que sua boca passou pela minha jugular, todo o ginásio desapareceu. Estávamos sozinhos, eu poderia jurar, numa sala de pedras iluminada por velas, os pés descalços num grosso tapete persa, uma lareira ardendo às minhas costas. Eu já estivera lá. Eu sabia.
Lucius abriu a boca ligeiramente e eu senti um toque levíssimo de suas presas acariciando minha pele, logo acima do ponto onde meu sangue pulsava mais forte.
Suas presas...
Eu não me importava se aquilo era irracional. Não me importava se era impossível. Só queria senti-las. Precisava delas, como jamais havia precisado de qualquer coisa na vida. Meus dentes começaram a ficar doloridos. Era aquela agonia deliciosa, delirante, de alguma coisa lutando para nascer.
– Lucius... por favor... – Inclinei a cabeça para trás, expondo o pescoço para ele, ansiandopor envolver sua nuca com as mãos, enfiar os dedos em seus cabelos compridos e escuros e puxar aquelas presas fundo nas minhas veias. O desejo era intenso a ponto de também ser dor. Dor e prazer misturados do modo mais inconcebivelmente maravilhoso.
– Ah, Antanasia – sussurrou ele, a voz rouca no meu ouvido, testando minha carne comaqueles incisivos afiados como navalhas...
Agora... agora... por favor, faça agora...
– Com licença! Oiê!
A imagem se despedaçou. Meus olhos se abriram e eu estava de volta ao ginásio da escola, bombardeada por um número exagerado de luzes piscando. Nós nos separamos de forma abrupta e Lucius passou a mão pelos cabelos pretos, lambendo os lábios, sem sinal das presas. Parecia abalado.
– Me esqueceu, seu bobo? – disse Faith Crosse, parada perto da gente, mãos nos quadris,balançando a cabeça. – Se eu não soubesse das coisas, juraria que você estava ficando um pouquinho perto demais de sua anfitriã aí. – Seu tom era leve, mas ela me cutucou com o dedo e havia raiva e descrença em seus olhos. Sua expressão dizia com todas as letras: “Não tem nenhuma chance de me trocar por isso.”
– Lucius e eu só estávamos dançando – respondi com a voz firme, recuperando o autocontrole na mesma hora. Não entraria em pânico. Não ficaria sem graça. E não agiria como se ela fosse superior a mim ou o merecesse mais. Dei as costas para Faith. – Preciso encontrar o Jake – falei para Lucius.
– Espere – insistiu Lucius, tentando me alcançar. Mas Faith interveio, agarrando a mãodele.
– Tenho certeza de que Jenn quer voltar para o acompanhante dela. E sei bem que vocêtambém quer voltar para a sua.
– Jess...
Estava prestes a acontecer uma cena. Outros casais começaram a olhar.
– Obrigada pela dança – respondi, sorrindo e recuando. – Ele é todo seu, Faith.
– Ah, eu sei disso – disse ela, o sorriso com um brilho tão gelado quanto o do vestido. Foilogo agarrando Lucius, mas ele continuou a olhar para mim. Acho que havia compaixão em seus olhos. Ou um pedido de desculpas. Talvez ele simplesmente não pudesse se conter. Talvez fosse mesmo como todo garoto adolescente. Na hora da necessidade, qualquer pescoço serviria. Mais uma vez eu quase tinha sido usada – um erro –, como naquele dia no quarto dele. Será que eu era tão incapaz de enxergar suas verdadeiras intenções? Que poder ele tinha sobre mim que me fazia cair de novo, de novo e de novo?
Meu Deus, ele quase mordeu meu pescoço...
Encontrei seu olhar durante um longo tempo através da pista de dança, depois dei as costas lentamente a Lucius Vladescu e fui andando, de cabeça erguida e ombros alinhados, enfrentando a multidão. As pessoas saíam da frente, abrindo caminho para mim. Eu me recusei a olhar para trás, mas esperava que ele estivesse me observando. E percebendo que tinha cometido um erro terrível ao me trocar por Faith Crosse.
Com pena de mim? Fala sério. Eu que tenho pena de você, Lucius.
Jake não estava em lugar nenhum. Não fiquei surpresa. Eu havia colocado nós dois numa situação humilhante. Qualquer um que tivesse prestado atenção pensaria que Lucius e eu estávamos perto demais. Provavelmente tivemos sorte de ninguém ter visto suas presas.
Acabei ligando para minha mãe e pedindo uma carona. Fiquei em silêncio durante todo o caminho para casa, odiando vampiros. Vampiros intrometidos, que destruíam corações, não sabiam controlar seus hormônios e mordiam pescoços.
CAPÍTULO 40
VASILE,
Foi assim que você planejou isso o tempo todo?
Claro que foi.
Como fui idiota por não perceber o esquema em sua totalidade. Ou – devo ser honesto comigo mesmo – talvez eu conhecesse a verdade. Mas queria tanto o poder também...
Esta noite, porém, quando encostei as presas no pescoço de Antanasia, todo o futuro ficou claro para mim. O cheiro do sangue dela foi como um soro da verdade injetado nas minhas veias, um espelho rachado refletindo meu próprio eu infernal.
Você sabia o tempo todo que uma garota americana que não fosse criada como vampira seria destruída com facilidade caso assumisse o trono. A carta que escrevi, alertando que Jessica não estava preparada, que estaria vulnerável ao ataque de fêmeas famintas de poder, não foi uma revelação para você. A fragilidade dela o agradava. Você contava com isso. Ah, meu Deus, Vasile, será que nós contávamos com isso?
Eu teria me casado com ela, cumprindo o pacto, teria levado Antanasia para o nosso mundo na Romênia, onde ela ficaria quase absolutamente indefesa, e então iria abandoná-la ao seu destino sinistro. Quando? Quanto tempo isso teria demorado? Um ano? Menos? Mas, a essa altura, os clãs iriam estar unidos de forma legítima e todo o poder estaria nas nossas mãos. Nas suas mãos.
Você forçaria o destino, Vasile? Iria derrubá-la pessoalmente? Em segredo, é claro, com a mão enluvada de um dos seus lacaios... ou tentaria forçar a minha mão?
Com Antanasia escondida em nosso castelo no alto, quem seria melhor para cuidar de sua destruição “desafortunada” do que o homem que compartilhava a cama com ela?
Seria este o golpe mais cruel, Vasile? Fazer com que eu me sentisse como me sinto e depois arruiná-la? Seria esta sua maior tentativa de me endurecer? Mesmo para você isso parece maligno demais. Vil demais. Ou talvez, mesmo depois de todos esses anos, eu o subestime – o que é sempre um erro perigoso.
E se eu não fizesse como me orientou, se não a destruísse, você me despacharia também, acusando-me de insubordinação? Eliminaria o herdeiro inconveniente? Quem, entre os Anciões Vladescu – e presumo que todos conheçam e aplaudam suas intenções relativas a Jessica –, iria culpá-lo?
Que desgraça! Que poder você teria então: controle absoluto sobre os dois maiores clãs de vampiros, sem nenhum sucessor para mordiscar seus calcanhares.
Você sabia o tempo todo que eu chegaria a ter um sentimento tão profundo por ela?
Não é adequadamente cruel, Vasile, que, agora, para tê-la, eu precise abrir mão dela?
Libere-nos, Vasile. Libere Antanasia de mim e me libere, também, ainda que por pouco tempo. Apenas por alguns meses. É tudo o que peço. Deixe-me em paz. Não quero pensar em pactos, em poder nem em nada do que, como você, sou capaz de fazer.
Porque a parte mais doentia é que, mesmo de má vontade, admiro sua estratégia. Sinto um prazer doentio ao ver o plano em sua totalidade. Ao saber que, no seu lugar, eu teria feito a mesma coisa: sacrificaria uma adolescente americana insignificante sem pensar duas vezes, no interesse de comandar tantas legiões malditas de vampiros. Quase posso sentir o poder em minhas mãos.
Mas, é óbvio, eu sou quem sou: produto de suas mãos.
Assim permaneço, como sempre,
Seu,
Sempre, irrevogavelmente e irredimivelmente,
Lucius
P. S.: Antanasia pode surpreender todos nós, Vasile. Pode mesmo. Talvez tenha uma tremenda capacidade de lutar. Mas não serei o instrumento de sua inevitável destruição.
P.P.S.: No caso de você não ter deduzido o que quis dizer com tudo o que escrevi acima, deixe-me ser claro: opto por desobedecer o pacto.
A escolha não é uma coisa maravilhosa, Vasile? Não é de espantar que os americanos deem tanto valor a ela. 
CAPÍTULO 41
– Jessica?
Meus olhos se abriram de repente. Eu estava no meu quarto, deitada na cama, no escuro, mas havia alguém ali. Sentei-me num pulo, procurando a luz.
Outra pessoa a acendeu. Comecei a gritar, mas uma mão firme sobre a minha boca me impediu, empurrando-me de volta no travesseiro.
– Não grite, por favor – sussurrou Lucius enquanto eu me retorcia. Fiquei parada e eleafastou a mão. – Peço desculpas por assustá-la e pelo tratamento grosseiro. Mas eu precisava falar com você.
Por um momento fiquei quase empolgada em encontrá-lo no meu quarto. Ele está aqui por minha causa... E então todos os acontecimentos da noite voltaram de uma vez.
Sentando-me de novo, apertei as cobertas em volta do peito.
– O que você quer? – falei rispidamente, olhando o relógio. – São três da madrugada!
– Não pude dormir depois do que aconteceu esta noite. – Ele se sentou na beira da cama,sem ser convidado. Ainda vestia a roupa do baile, mas sem a gravata e o paletó. A camisa estava amarrotada e por fora da calça. – Só vou conseguir descansar depois que conversarmos.
Levantando as cobertas, olhei para mim mesma, sem certeza do que usava para dormir. Será que estou decente, pelo menos?
– Está tudo coberto – garantiu Lucius, com um sorriso minúsculo nos lábios. – Sua roupade dormir não revela nada além do amor insistente pelos cavalos árabes.
– Você está numa situação tão precária que nem acredito que tentou fazer uma piada.
Passou totalmente dos limites.
Lucius ficou sem jeito.
– É mesmo. Só fiz a brincadeira na esperança de fingir que nosso relacionamento não tinhamudado esta noite.
– Você quase me mordeu, Lucius. E depois foi embora com a Faith. Com certeza as coisasmudaram.
– O que fiz esta noite, ou o que quase fiz esta noite, foi imperdoável – concordou ele,arrasado. – Foi repreensível. Não somente por ter chegado perto de mordê-la, mas também por fazê-lo em público. E com Faith olhando, a mulher que me acompanhava. Não sei o que me deu. Nem sei como começar a pedir o seu perdão.
Tudo naquele pedido de perdão doía. Estar perto de mim era “repreensível”? Era “imperdoável”? Ele não conseguia imaginar “o que deu nele” para sentir atração por uma criatura tão repulsiva como eu. Ainda mais porque isso poderia ter perturbado sua preciosa prioridade: Faith Crosse.
Lucius suspirou, interpretando corretamente o meu silêncio. – Você me despreza mais do que nunca, não é?
– É.
– Você foi embora. Imagino que Jake tenha ficado chateado.
– Vamos sobreviver.
Meu tom frio pareceu confundi-lo.
– É. Acho que vamos. – Ele esperou. – Pensei que você teria mais a dizer.
– O que quer que eu diga, Lucius? – Eu pretendia dar um gelo nele, mas de repente tudosaiu numa explosão. – Você aparece na minha porta, me persegue durante meses e, quando finalmente me convence de que sou especial, quando finalmente sinto algo por você, você vira tudo de cabeça para baixo e fica de quatro pela mesma loura perfeitinha de quem todo cara gosta. Você é tão típico...
– É verdade? Você começou a sentir algo por mim?
Sua voz estava agridoce. Mais azeda do que doce.
– Senti, Lucius. Senti. Só por um momento. – Minha raiva foi sumindo, acomodando-senuma tristeza carrancuda. – Agora parece um pesadelo. Um “erro”, para usar a sua palavra. Um erro terrível.
Lucius esfregou os olhos cansados.
– Ah, Jessica... Não pense que sabe toda a verdade sobre o que faço ou digo – retrucouele, enigmático. – Às vezes nem eu sei. Se pareço incoerente, é porque estou lutando comigo mesmo.
Ele se inclinou para a frente, torcendo as mãos.
– Que desgraça. Fiz uma tremenda confusão.
– É. Acho que sim.
Ele me olhou com sofrimento nos olhos.
– Você nunca vai entender como é ser seduzido pela normalidade.
Quase funguei.
– Você? Normal?
– Sim, eu. Normal.
– A última coisa com a qual você já se importou foi em ser normal.
– Não, Jessica. Isso não é totalmente verdade. Não nos últimos tempos. – Lucius se levantou e começou a andar pelo meu quarto pequeno, falando baixinho, quase consigo mesmo. – Você não faz ideia de como foi ser criado na solidão. Ser criado para um objetivo. Seus pais, Jessica, não têm em mente uma finalidade para você. Você não é uma ferramenta deles. Você existe apenas para ser amada por eles. Sabe como isso é estranho para mim?
Olhei para ele, sem saber o que dizer. Sem querer interrompê-lo.
Ele parou e sorriu para mim, um sorriso triste.
– Eu vim para cá e, de repente, havia todo um mundo novo. Nossos colegas de escola, porexemplo. Eles têm permissão para ser tão... tão frívolos!
– Você detesta frivolidade.
– Mas a frivolidade é fácil. – O sorriso sumiu. – Eu costumava achar que os adolescentesamericanos fossem ridiculamente voltados para si mesmos. Mas isso é viciante, por falta de uma palavra melhor. Eu me vi atraído pelo seu mundo. Estar entre vocês é estar de férias. As primeiras férias da minha vida. Se descontarmos as pressões inerentes ao cumprimento do pacto, não há expectativas para mim, além de fazer uma cesta de três pontos antes de o sinal tocar.
– Lucius, o que você está tentando dizer?
Ele se deixou afundar de novo na cama.
– Acho que estou relutante em abrir mão de tudo isso por agora.
– Abrir mão de quê?
– Dos bailes enfeitados com papel crepom barato. Dos jeans. Do basquete. De estar comuma garota sem o peso de gerações espiando por cima dos meus ombros... – Faith. Você não quer abrir mão de Faith.
Ele recuou.
– Para uma garota que bloqueou todas as minhas tentativas de fazer a corte, de repentevocê está muito possessiva.
– Era você que ficava dizendo como era importante nós dois nos casarmos, caramba!
Lucius passou os dedos pelos cabelos cor de ébano.
– Se eu tivesse mordido você esta noite não haveria como voltar atrás. Sabe disso, nãosabe? Eternidade. É isso o que estará em jogo quando estivermos juntos. Eternidade. Está preparada para isso? E, Jessica, uma parceria comigo não é algo que você deveria desejar. A eternidade pode vir mais depressa do que prevíamos, caso se junte a mim.
– Não entendi.
Ele segurou minha mão, entrelaçando meus dedos.
– E é exatamente por isso, Jessica Packwood, que eu a liberei.
– O quê?
– Eu dissolvi o pacto.
– Por causa de Faith – repeti, puxando a mão. Odiei o ciúme que me rasgava como umaforça física. – Você quer morder a Faith. É disso que se trata.
Lucius balançou a cabeça.
– Não. Eu não morderia Faith. Se bem que não tenho certeza se reluto por impor a condição de vampira em Faith ou por impor Faith ao mundo dos vampiros.
Não acreditei. Sabia que ele queria Faith.
– Lucius, de acordo com o pacto, você precisa me morder. Nós estamos prometidos um ao outro. Se não fizer isso, violará o tratado e a guerra vai começar...
– Estou tentando lhe dizer, Jessica, que o pacto não existe mais.
Na voz dele havia um tom definitivo que me apavorou e meu ciúme foi substituído por uma agitação mais doentia, mais forte.
– O que você fez, Lucius?
– Escrevi aos Anciões. Avisei-os de que não vou mais participar desse jogo ridículo.
– Você o quê? – Isso saiu quase como um grito. – Você o quê? – repeti, baixinho.
Houve um tremor de medo, mas também de determinação, nos olhos de Lucius.
– Escrevi ao meu tio Vasile. Cancelei todo o combinado.
– Achei que não pudesse fazer isso.
– Mas fiz.
Minha agitação se intensificou, virando pavor e fazendo minha nuca arrepiar. A última coisa que eu esperava ver no rosto de Lucius era medo. Por isso soube que ele estava numa encrenca enorme.
– O que vai acontecer?
– Não sei – admitiu Lucius. – Mas você vai estar em segurança. Não deve se preocupar.Fui eu que tomei a decisão. Eles não lhe farão mal. – Ele segurou minha mão de novo e permiti que ele cruzasse nossos dedos outra vez. – Mesmo que isso custe minha existência, Antanasia, você estará em segurança. Eu lhe devo isso, por motivos que nunca precisará saber ou entender.
O pânico tomou conta de mim e apertei os dedos dele com força.
– O que vai acontecer, Lucius?
– Não deve se preocupar com isso.
– Lucius... – Pensei na cicatriz terrível no seu braço. Em suas palavras. “É claro que eles batiam em mim. Repetidamente. Estavam criando um guerreiro...” – Eles vão castigar você?
Ele deu uma risada sombria.
– Ah, Antanasia. Castigo não é exatamente a palavra para o que vou enfrentar nas mãos dosAnciões.
– A gente pode tentar argumentar com eles... – falei, sabendo que era uma sugestão impraticável.
Lucius sorriu para mim e havia ternura no rosto dele.
– Você tem um coração bom e é abençoada com uma ingenuidade que às vezes é perigosa.Mas o mundo está repleto de criaturas como minha pobre e malfadada Fera. E eu. Criaturas que presenciaram coisas monstruosas e acabaram por se tornar monstros também. Criaturas que talvez devessem ser sacrificadas.
– Para com isso, Lucius – exigi. – Para de falar assim!
– É verdade, Antanasia. Você nem pode conceber as coisas que aparecem nos meus sonhos, nas minhas tramas e na minha imaginação...
Engoli em seco.
– Foi isso o que quis dizer no Halloween, quando falou que poderia me mostrar coisas“não legais”?
Os dedos de Lucius apertaram os meus.
– Ah, não, Antanasia. Nada de violência contra você. Independentemente do que pensa demim ou do que vá recordar de mim no futuro, por favor, acredite que eu não iria nem poderia fazer mal a você. Talvez houvesse um tempo, antes de eu conhecê-la, em que, se você tivesse ficado no meu caminho para o poder... mas agora, não. – Ele hesitou e afastou o olhar. Depois murmurou: – Meu Deus, espero que não...
– Tudo bem, Lucius – acalmei-o. – Sei que não faria mal a mim. – Mesmo assim, ele teradmitido aquilo me abalou. Houve um tempo em que ele poderia ter feito mal a mim? Por que acrescentou aquela advertência no final?
Mas Lucius não estava me escutando. Ele olhava fixamente para as paredes cor-de-rosa que tanto odiava.
– Para minha família, para os meus filhos, poderia ter sido diferente. Eu realmente vi umnovo caminho aqui, apesar de todas as vezes que zombei deste lugar e de suas convenções.
– E se você ficasse aqui? – sugeri, esperançosa. – Poderia viver como uma pessoa comum.
Assim que soltei as palavras, percebi como pareciam bobas. Mesmo assim Lucius me surpreendeu, dizendo:
– Talvez por mais algumas semanas, se eu tiver sorte.
– Só isso?
– Só. Sei qual é o meu lugar e eu seria atraído de volta a ele. – Lucius desentrelaçounossos dedos, ficando de pé. – O importante é que saiba que está liberada do pacto. Absolvida. Você está livre para... bem... – Um toque de seu riso de zombaria se esgueirou de volta na voz dele. – Livre para fazer o que quiser da vida. Ir à faculdade. Morar em alguma casa de dois andares no subúrbio. Ter filhinhos de cabelos louros, com gosto pela vida rural, correndo pelo campo. Seu destino lhe pertence. Isso eu prometo.
– E se eu não quiser mais essas coisas?
– Confie em mim, Antanasia... Jessica. Um dia você vai olhar para esses poucos meses e achar que não passaram de um sonho estranho. Um pesadelo em potencial. E vai ficar muito, muito feliz, por ele jamais ter se realizado.
Então Lucius beijou minha testa e eu soube que o peso de nosso destino compartilhado jamais seria tirado de seus ombros. Ele podia brincar de ser um adolescente normal, mas isso era apenas um breve adiamento. O destino de Lucius Vladescu estava amarrado em pergaminhos, preso em genealogias e imposto por punhos ou coisa pior. Isso me deu calafrios.
Ouvi seus passos indo em direção à porta, mas ele parou antes de sair.
– A criatura mais linda que eu já vi na vida foi você, esta noite – disse baixinho. – Quandodançamos... e a visão de você me deixando, com a cabeça erguida, sem olhar para trás, enquanto as pessoas abriam caminho... Não importa onde more e com quem escolha se casar, Antanasia, você sempre vai fazer parte da realeza. E vou me lembrar eternamente de sua imagem esta noite, assim como vou me recordar do modo como chorou por mim quando eu estava machucado lá embaixo. Esses são dois presentes que você me deu e que vou guardar enquanto puder.
Lucius saiu e fechou a porta. Depois, apesar da doçura e do calor de suas palavras, estremeci no escuro. 
CAPÍTULO 42
Demorou menos de uma semana para o inferno se abrir, depois que a
carta de Lucius chegou à região rural perto de Sighişoara, na Romênia.
Enquanto isso, Lucius sugava tudo o que podia da típica vida de adolescente americano como se ela fosse uma veia farta. Jogava basquete durante horas e horas, matava aula e até deu uma festa em seu apartamento na garagem, que terminou com uma batida da polícia e uma ameaça por parte de meus pais de deportá-lo no próximo voo para Bucareste. Faith estava o tempo todo a seu lado, como se eles tivessem sido grudados com cola.
E então, Lucius, mamãe, papai e eu fomos convocados para um encontro com os Anciões, que aconteceria no condado de Lebanon. Eles se dignaram a marcar uma reunião aqui, tão séria era a crise. Não havia escolha a não ser comparecer.
– Não acredito que eles vão se reunir numa churrascaria – reclamou mamãe, entrando comrelutância na Bife do Oeste, na véspera de ano- -novo, na hora marcada. – É como um tapa na cara. Eles sabem que somos vegetarianos.
– É um jogo de poder – concordou papai.
– Por favor, apenas cooperem – implorei. Eu sentia que as coisas já iam ficar feias obastante sem que papai e mamãe tivessem de se preocupar com a comida. – Aqui servem saladas.
– Cheias de agrotóxicos – fungou papai. – De conservantes.
Às vezes papai assumia uma perspectiva muito limitada.
– Nós viemos para uma reunião – disse mamãe à recepcionista.
– Com um bando de... homens mais velhos – acrescentei. – Eles disseram que reservaramuma sala.
Um medo tão cru quanto a carne que havia nos freezers atravessou o rosto da recepcionista, mas ela conseguiu dar um sorriso enquanto localizava três cardápios.
– Aqui, por favor.
– Ai, merda – não consegui deixar de dizer enquanto entrávamos na sala.
Mamãe apertou minha mão.
– Está tudo bem, Jessica.
Mas não parecia nem um pouco bem.
No meio de uma sala forrada em lambri e enfeitada alegremente com recortes de papelão de Papai Noel com duendes e renas de narizes brilhantes, 13 dos velhos mais tenebrosos que eu já vira estavam encurvados ao redor de uma mesa circular, golpeando uma enorme bandeja cheia de carne sangrenta, muitíssimo malpassada. Eles jogavam pedaços de carne vermelha nos pratos e não comiam. Apenas... chupavam. O sumo. O sangue que escorria. Ainda que o aquecimento estivesse ligado no restaurante, o ar era frio com a presença deles. E o cheiro de sangue fazia minhas narinas pinicarem, penetrava nos poros e me fazia cócegas no estômago.
Meus pais apertaram a barriga e meu pai começou a ter ânsias de vômito.
O vampiro mais velho e mais assustador levantou com relutância o olhar de seu festim. Indicou três cadeiras vazias.
– Por favor, sentem-se. E desculpem-nos por termos começado sem vocês. Estávamos famintos por conta da viagem.
Vasile. Tinha que ser o tio de Lucius, Vasile. Havia uma semelhança muito vaga nas feições deles e a mesma pose de poder contido. Mas o velho vampiro Vladescu não tinha o charme, a graça e o maravilhoso brilho de malícia que havia nos olhos de Lucius. Vasile parecia mais uma versão atormentada e deformada do sobrinho. Enquanto o poder de Lucius era bonito de se testemunhar, temperado com humor e até mesmo alegria, o de Vasile era amargo e repugnante. Fiquei angustiada ao pensar em Lucius – no maravilhoso e divertido Lucius – sob o jugo daquele homem, sentindo seu punho...
– Sentem-se – ordenou Vasile de novo.
Até mesmo a arrogância, que havia se tornado um dos traços mais cativantes de Lucius, se assentava de modo totalmente errado nos ombros encurvados do tio.
Obedecemos e nos sentamos. A recepcionista nos entregou os cardápios, lançando-nos um olhar piedoso, como se fôssemos reféns.
– Vocês vão querer...? – Ela fez um gesto para a pilha de carne, sem certeza do que falar. –Ou devo chamar uma garçonete?
– Só três saladas do bufê – disse mamãe por nós três, devolvendo o cardápio. Dava paraver que ela estava lutando para manter a compostura diante da carnificina.
Olhei ao redor da mesa.
Havia uma cadeira vazia. Imaginei se Lucius iria aparecer. E então a porta se abriu e ele entrou. Eu até esperava que ele estivesse com as roupas antigas – o sobretudo de veludo e a calça preta –, mas ele usava calça jeans e seu casaco de moletom da Grantley. Senti que estava demarcando seu território logo no início. Um desafio. E, apesar disso, circulou ao redor da mesa apertando as mãos de cada um dos presentes.
– Tio Vasile. Tio Teodor.
Cada vampiro interrompeu o consumo de sangue apenas o suficiente para apertar a mão dele antes de voltar ao festim. Lucius se sentou, piscando para nós. Dava para ver que estava nervoso.
– Ele está com medo deles – sussurrou mamãe no meu ouvido.
– Eu também – confessei. – Você reconhece algum, da Romênia?
Mamãe assentiu ligeiramente.
– Acho que me lembro de um ou dois, mas foi há muito tempo.
– Comam – instigou Vasile, apontando o garfo para nós. – Depois, falaremos.
Meus pais foram para o bufê de saladas e eu fui atrás, mas não sem olhar por cima do ombro para aqueles pedaços de carne, com desejo. O odor do sangue... era inebriante demais. Apesar de meus temores por Lucius e por todos nós, aquele cheiro me atraía. Fiquei culpada por me sentir assim naquele momento tão pavoroso.
Quando retornamos ficou bastante óbvio que havíamos interrompido uma discussão intensa, ainda que em voz baixa. A bandeja estava cheia de pedaços de carne que foram sugados até ficarem secos e os pratos individuais haviam sido empurrados para a frente. Todas as cabeças estavam viradas para Lucius, sentado imóvel. Os olhos dele se voltaram rapidamente para nós.
– Os Packwood precisam estar aqui?
Ficamos de pé, segurando os pratos de salada, à espera do veredicto. Eu não sabia o que teríamos feito se Vasile dissesse para irmos embora.
– Sim – respondeu ele. – Eles devem ficar.
Pusemos nossos pratos na mesa e o som ecoou na sala subitamente silenciosa. Em seguida puxamos as cadeiras e nos sentamos.
– Comam – ordenou Vasile, de novo.
Até o molho da salada parecia grudar na minha garganta, por isso dei algumas mordidas, só para constar, e empurrei o prato.
O vampiro à minha direita se inclinou para mim. Não mais encurvado sobre um pedaço de carne sangrenta, ele passaria por um empresário qualquer que tivesse saído para jantar. Só que havia algo diferente nele. Algo ameaçador nos olhos. Então esses são os Anciões...
– Não está com fome? – perguntou ele, com sotaque forte.
– Não – respondi, obrigando-me a encarar seus olhos pretos. Não iria me encolher nemdemonstrar medo. É esse o meu povo? A minha espécie?
– Eles terminaram – anunciou Vasile, levantando-se depois que meus pais também haviamempurrado os pratos. – Farei as apresentações.
O velho rodeou a mesa citando os nomes, mas não gravei nenhum. Estava ocupada demais observando Lucius. Ele parecia um condenado que esperava a cadeira elétrica na companhia dos carrascos e não quis me encarar.
Vasile se sentou, dobrando o corpo comprido na cadeira como se fosse uma espécie de acordeão humano. Juntou as mãos à sua frente, unindo os dedos esqueléticos e nodosos.
– O que vamos fazer com esses dois jovens?
– Com os dois jovens, não – interrompeu Lucius. – Só comigo. Isso diz respeito apenas amim.
– Silêncio – sibilou Vasile.
– Claro, senhor – cedeu Lucius.
Vasile olhou para os meus pais.
– Vocês sabem que Lucius decidiu, com uma espécie de ataque de independência – ele cuspiu a palavra –, que não cumprirá mais o pacto.
Todos assentimos.
– Lucius nos contou – disse papai. – E nós apoiamos sua escolha. Além disso, ele estáconvidado a ficar conosco pelo tempo que desejar.
– Vocês “apoiam sua escolha”? – trovejou Vasile, incrédulo. – Vocês apoiam a insubordinação dele?
– Olhe, Vasile – começou meu pai. Sua voz falhou e havia um pedaço de espinafre presoem seus dentes, mas mesmo assim senti orgulho dele. – Eles não passam de uns pirralhos.
– Não conheço esse termo – disse Vasile.
– Pirralhos. Jovens. Adolescentes. Por que não deixá-los à vontade...
Vasile bateu na mesa e alguns pedaços de carne ressecada caíram da pilha.
– Deixá-los à vontade?
Mamãe pôs a mão no meu braço.
– É – acrescentou ela, corajosamente. – Se Lucius decidiu que quer romper o pacto... Bem,aquilo foi feito há muito tempo e ele é um rapaz. Vocês devem entender que seria ridículo esperar que esses dois adolescentes se apaixonassem e se casassem só por causa de um decreto.
Olhei para Lucius. Seus olhos estavam fixos em Vasile.
– Se apaixonassem? – rosnou Vasile. – Quem disse algo sobre amor? Isso tem a ver com opoder.
– Tem a ver com adolescentes – contradisse meu pai. – Lucius está namorando outra moçae Jess está se preparando para a faculdade...
Sem dúvida meu pai falara o que não devia. Ao ouvir a expressão “namorando outra moça”, Vasile saltou da cadeira e girou para Lucius feito um chicote estalando. Lucius se encolheu, como se tivesse sido golpeado no rosto.
– Cortejando? – rugiu Vasile. – Fora do pacto?
– É a minha escolha – disse Lucius calmamente, usando sua nova palavra predileta. –Jessica estava receptiva ao pacto, mas escolhi outra coisa.
Apesar de saber que ele estava me protegendo, as palavras doeram. E mesmo nesse instante Lucius não olhou para mim.
Seguindo uma deixa silenciosa que ignorei por completo, quatro vampiros idosos se levantaram e de repente Lucius estava de pé, sendo levado para longe. Um dos vampiros mais velhos havia passado o braço pelos ombros dele, mas eu sabia que Lucius não iria receber um sermão gentil de um tio bem-intencionado.
– Aonde vocês vão levá-lo? – indagou mamãe.
– Está tudo bem, Dra. Packwood – garantiu Lucius. Em seguida afastou o braço do parenteque o segurava, como se preferisse receber sua punição com dignidade. – Por favor, não se envolvam em um assunto de família.
– Lucius, espera – gritei, me levantando.
Ele se virou para mim só por um segundo.
– Não, Jessica.
Um calombo enorme ficou preso na minha garganta enquanto eles o agarravam e o empurravam na direção da porta. Quatro contra um. Covardes.
Tentei segui-lo, mas mamãe me puxou de volta.
– Acho que não, Jessica. Agora, não.
– Sente-se, por favor – acrescentou Vasile, com a voz cortês. – Mesmo que você fosseatrás... bom, não poderia encontrá-lo. Ele está perfeitamente seguro com a família.
– Acho que deveríamos ir embora – disse papai, ficando de pé. Mamãe e eu começamos aacompanhá-lo.
– Isso ainda não terminou – alertou Vasile, apontando um dedo esquelético para nós três. –Lucius vai voltar com um pensamento diferente. E vocês não vão recuar diante de sua promessa.
Mamãe se eriçou.
– Minha filha não vai fazer nada contra a vontade.
– A vontade dela é se casar com ele. Ela está destinada a ele. Ela sabe. Para usar suaexpressão, ela o ama.
Papai me olhou.
– Do que ele está falando, Jessica?
– Não sei – gaguejei.
– Eu vi seu olhar quando Lucius foi levado. – Vasile gargalhou. – Ser criada entre humanosa deixou transparente demais.
– Estamos indo – concluiu papai, agarrando meu braço.
– Boa noite, por enquanto – disse Vasile, me fazendo uma ligeira reverência.
Enquanto passávamos, rodeando a mesa, pelo clã de vampiros senti algo sendo posto na palma da minha mão. O movimento foi tão rápido que pareceu um truque de mágica. De algum modo tive o bom senso de não gritar. Olhando para trás, captei o olhar de um vampiro que não havia notado antes. Era um pouco mais gordo do que os outros e um pouco mais baixo, e sua pele era rosada. Os olhos tinham uma leve sugestão de diversão e, quando o encarei, ele pôs um dedo nos lábios, sinalizando que agora compartilhávamos um segredo, e piscou para mim.
Segurei o pedaço de papel até chegar ao meu quarto e o abri com dedos desajeitados de impaciência. Era um bilhete:
Não fique tão apavorada por enquanto. Nem tudo está perdido. Você parece uma boa garota. Vasile é despótico. Sempre cheio de si. Encontre-se comigo amanhã naquele belo parque que tem um riacho. Que tal por volta das 10?
Estarei no coreto. E vamos manter isso entre nós, hein?
Dorin 
CAPÍTULO 43
Mamãe entrou no meu quarto por volta da meia-noite e falou:
– A luz do quarto dele ainda não se acendeu.
– Você também está vigiando?
Eu estava olhando pela janela, em direção à garagem.
– Claro.
Afastei o olhar só por um momento.
– Acha que ele vai ficar bem?
– Sinceramente, não sei.
– Você sabia que eles batem nele?
Mamãe puxou mais ainda a cortina, juntando-se à minha vigília.
– Não tinha certeza, mas suspeitava.
– Lucius disse que batiam nele repetidamente.
Quando pronunciei essas palavras em voz alta, meu medo já intenso beirou o pânico.
– Eu lhe contei que os Vladescu têm a reputação de serem implacáveis e que Lucius foicriado para ser o príncipe deles – disse mamãe, soltando a cortina. – Não fico surpresa em saber que ele não teve uma infância feliz. – Ela se sentou ao meu lado na cama e beijou minha testa, como fazia quando eu era criança e tinha medo de trovões. – Mas Lucius é forte – lembrou ela. – Tente não deixar que seu medo a domine.
Mas dava para ver que ela tirava conclusões precipitadas. Como eu.
– E se ele não voltar?
– Ele vai voltar. – Ela hesitou. – Jess, você o ama, de verdade?
Fui poupada de precisar responder quando uma luz se acendeu no apartamento em cima da garagem. O ar saiu dos meus pulmões num jorro e senti como se estivesse prendendo a respiração havia horas. Não esperei mamãe. Simplesmente saí correndo do quarto, com os pés descalços voando pelo quintal gelado. Não me importei com o frio.
Encontrei Lucius no banheiro apertado da garagem. Estava sem camisa, curvado sobre a pia, lavando o rosto. Ele me ouviu entrar mas não se virou.
– Vá embora.
– Lucius, o que aconteceu?
Ele continuou curvado.
– Deixe-me em paz.
Cheguei mais perto.
– Não. Vira pra mim.
– Não.
Passos soaram na escada e mamãe apareceu atrás de mim. Deu um tapinha no meu braço e depois se aproximou de Lucius do mesmo modo quieto e não ameaçador como eu tinha feito com Fera naquele dia terrível.
– Lucius – disse ela com voz tranquilizadora, pondo a mão nas costas dele. Reconheciaquele gesto de quando eu era criança e passava mal, vomitando. Os músculos de Lucius estremeceram.
Percebi que talvez, apenas talvez, ele estivesse chorando. Ou tentando não chorar. Com muita força.
Mamãe se curvou perto de Lucius, puxando seu cabelo preto para trás. Em seguida se empertigou e se dirigiu a mim:
– Jess, vá pegar o kit de primeiros socorros, embaixo da pia da cozinha.
– Mamãe, ele está bem?
– Vá, Jess – disse ela, com calma.
Eu não queria ir. Queria ficar com Lucius.
– Agora – insistiu ela.
– Tô indo.
Parei junto à porta, olhando para trás, e vi que minha mãe havia puxado Lucius para si, envolvendo-o com os braços. Ele tremia. Ela acariciava seu cabelo, falando com ele baixinho. Era por isso que minha mãe tinha me mandado sair. Sabia que Lucius não queria que eu o visse desmoronar, talvez sob a pressão do primeiro toque maternal que sentira na vida. Fechando a porta em silêncio, a obedeci e fui correndo para casa.
Voltei com o kit de primeiros socorros, seguida por meu pai grogue, ainda lutando para amarrar o roupão na cintura.
A essa altura, Lucius já estava deitado na cama, com minha mãe sentada a seu lado. Ela acendeu o abajur da mesa de cabeceira enquanto eu lhe entregava o kit. Lucius virou o rosto para a parede, mas pude ver que ele fora muito machucado. Seu lábio estava cortado e hematomas escuros se formavam sob os olhos e na bochecha. O nariz parecia meio torto.
– Vou pegar uma toalha molhada – ofereceu papai, querendo ser útil.
– Estou bem – insistiu Lucius. Mas se encolheu quando mamãe passou álcool em sua boca.
– Você não está bem – disse mamãe.
– Não é o meu melhor ano, hein? – zombou Lucius, amargo. – Pelo menos a égua não sabiao que estava fazendo.
Papai se sentou também, ao pé da cama. Segurava distraidamente a toalha molhada como se não soubesse o que fazer com ela, agora que a havia trazido.
– Lucius, o que aconteceu?
Lucius não respondeu.
– Lucius – instigou papai de novo. – Conte para a gente.
– Jessica deveria ir dormir – disse Lucius, o rosto ainda virado para a parede. – Estátarde.
– Quero ficar.
– Você é uma criança – disse Lucius. Sua voz estava rouca. Distante. – Não precisa tomarparte em nada disso.
Meus pais se entreolharam e eu percebi que, naquele momento, eles julgariam se eu ainda era mesmo criança.
– Jess pode ficar, se quiser – declarou papai. – Isso a afeta, também.
– Eu vou embora pela manhã – prometeu Lucius. – Não vou mais afetar nenhum de vocês.
– Você não vai a lugar nenhum – disse mamãe, pegando a toalha molhada com papai elimpando um pouco de sangue do rosto de Lucius. Em seguida, virou o rosto dele com delicadeza em sua direção e eu vi o estrago por inteiro pela primeira vez. Ainda que o quarto estivesse na penumbra, pude notar que, comparado com os “tios”, a égua tinha pegado leve. Meu estômago doeu de raiva e tristeza.
– Isso é entre mim e minha família – disse Lucius. Em seguida ergueu o tronco um pouco.
Ainda não tinha olhado para mim. – Vou para casa enfrentar a situação.
Todos sabíamos o que isso significava. Mais dor. Mais cicatrizes.
– Aqui é a sua casa, agora – afirmou papai, com voz firme. – Você vai ficar.
Enquanto papai fazia o convite e eu observava mamãe cuidar dos ferimentos de Lucius, vi, finalmente, as pessoas que haviam levado uma criança da Romênia, salvando a vida dela. De repente me ocorreu que, sem dúvida, eles arriscaram a vida por mim. Pareceu estranho e egoísta que eu nunca tivesse percebido isso antes. Eles sempre haviam desconsiderado os próprios riscos.
– Casa. – Lucius cuspiu a palavra com desprezo.
– É. Casa – disse mamãe.
– Isso mesmo – acrescentou papai, pondo a mão no braço de Lucius. – Você ficou nagaragem por tempo demais. Nunca percebi como aqui é frio. Esta noite vai se mudar para a casa. Permanentemente. Vamos arranjar espaço.
– Não posso me impor mais do que já fiz – respondeu Lucius, falando com papai. – Evocês não precisam temer por minha causa. Os Anciões não planejam ficar. Confiem em mim. Eles têm certeza de que a mensagem foi entendida. Que vou obedecer.
– Mesmo assim quero que se mude para a casa – disse papai, não admitindo a recusa deLucius. – Consegue se levantar?
Lucius parecia machucado e exausto demais para protestar. Mexeu as pernas devagar e parou na beira da cama.
– Desgraça! – disse ele, apertando as costelas. – Eles memorizam cada lugar que já foiquebrado em mim para poderem quebrar de novo, com mais eficiência.
Mamãe passou o braço pelos ombros nus de Lucius, reconfortando-o, e eu desejei estar no lugar dela. Lucius se apoiou, de novo se permitindo demonstrar um pouco de fraqueza, e ela o segurou por um momento, olhando para meu pai por cima da cabeça abaixada de Lucius.
Havia uma tristeza profunda nos olhos dela.
– Tente ficar de pé – disse papai, segurando Lucius pelo braço.
– Obrigado – respondeu Lucius. Mesmo espancado, ele mantinha uma postura nobre aoficar de pé. – Obrigado por tudo. Desculpem-me por causar tanto aborrecimento.
– Não é aborrecimento, filho – garantiu papai, ajudando a firmar Lucius com um braço emvolta da cintura.
Lucius se encolheu de novo enquanto mamãe também passava o braço pela cintura dele.
Eles começaram a andar lentamente, mas Lucius parou depois de alguns passos.
– Dra. Packwood, Sr. Packwood, no passado, eu nem sempre fui gentil. Acho que chameivocês de... fracos. Vocês sabem que são muito diferentes da minha família.
– Tudo bem, Lucius – garantiu mamãe, instigando-o a andar. – Não precisa falar maisnada.
– Não. Preciso, sim. Foi errado insultá-los e não só porque são meus anfitriões. Creio queconfundi gentileza com fraqueza. Peço desculpas.
– Venha, Lucius. – Papai deu um tapinha nas costas dele. – Desculpas aceitas. Agora vamos levá-lo para a cama.
Fizemos um pequeno desfile patético, lento, pelo quintal gelado: mamãe, papai e Lucius seguindo com dificuldade pela neve e eu logo atrás. Minha mãe fez uma cama para Lucius no escritório dela, um pequeno cubículo entre nossos quartos, e fingiu que ia se deitar. Mas eu sabia que meus pais estariam de vigília a noite toda. Sabia que não confiariam na afirmação de Lucius, de que seus parentes brutais iam embora. E estavam preocupados com a hipótese de ele desaparecer na escuridão. Eu também estava. Mas logo ouvi a respiração profunda e regular de Lucius no cômodo ao lado. Ele tinha que estar dormindo. Devia estar exausto. Enquanto eu puxava as cobertas, de volta à minha cama quente, me lembrei de que o novo ano já havia começado. Logo eu teria 18 anos. Tecnicamente, a idade para me casar.
No cômodo ao lado, o homem de quem eu tinha sido noiva quase que desde o nascimento até alguns dias atrás se mexeu e soltou um gemido abafado de dor. Quantas vezes ele fora quebrado “com eficiência” e havia gritado assim, sofrendo até mesmo no sono? E será que carregava outros ferimentos por dentro? Uma dor ainda pior do que ossos quebrados, cortes e hematomas?
CAPÍTULO 44
Cheguei perto do coreto do parque por volta das 10 horas, como o bilhete havia pedido, e o vampiro que estava esperando acenou, segurando o casaco em volta do pescoço com a outra mão. Fazia um frio de rachar e havia previsão de neve.
– Fiquei com receio de que não viesse – disse ele, sorrindo.
Apesar do sorriso, me aproximei com cautela.
– Lucius disse que vocês todos iam para casa.
– É verdade – confirmou ele. – Os outros já retornaram à Romênia. Fiquei para trás naesperança de ajudar na situação.
Relaxei um pouco, feliz por saber que a maioria dos tios de Lucius havia partido. Quanto mais longe, melhor.
– Meu nome é Dorin – acrescentou ele, estendendo a mão enluvada. Ele deve ter me vistoolhar para a lã colorida. Listras amarelas e laranja. – Chique, não acha? – disse ele, balançando as mãos. – Comprei no shopping.
Apertei a mão dele.
– Comprou no shopping?
– Ah, sim. Cultura americana. Tudo aqui tem a ver com diversão. Fiquei com inveja quando Lucius foi despachado para ficar vários meses aqui. É claro que foi bom mandá-lo para longe do velho Vasile durante um tempo. – Ele sugou as bochechas, tornando-as cadavéricas, numa imitação. – Pareceu uma jogada inteligente.
Examinei o rosto de Dorin. Suas bochechas estavam rosadas no frio e os olhos eram pretos, como eu passara a esperar dos vampiros, mas tinham um franzido alegre nos cantos.
– Sente-se, sente-se – disse ele, indicando um banco e espanando um pouco de neve.
Mesmo assim o banco não pareceu muito convidativo.
– Será que a gente poderia ir a uma cafeteria ou algo assim? – sugeri, soprando as mãos.
Lancei um olhar de desejo para suas luvas.
Dorin ponderou, com a cabeça balançando para a frente e para trás.
– Claro. Por que não? Acho que fiquei num clima meio capa e espada com esse parquevazio. Sou fã de romances de espionagem, sabe?
– Eu também – respondi, sorrindo.
– Bom, não fico surpreso – disse ele, me levando para fora do coreto. – Como somosparentes e coisa e tal, provavelmente temos uma porção de coisas em comum.
– Somos parentes?
– Sim, sim. Eu deveria ter posto isso no bilhete. Talvez fosse menos assustador para você.– Parentes, como?
– Sou seu tio. Irmão de sua mãe.
Parei e o encarei, procurando algum traço familiar no seu rosto. Qualquer semelhança com minha mãe biológica ou comigo.
– Você não se parece muito com ela nem comigo.
As bochechas rosadas de Dorin ficaram um pouco brancas.
– Bom, na verdade sou meio-irmão. Seu avô andou tendo uma aventura fora do casamento.
– Ele sorriu sem graça. – Sou o produto disso.
– Mas você conheceu meus pais biológicos?
– Claro, claro. Mas, primeiro, vamos a um lugar fechado. Você está tremendo.
É, estava. De frio e ansiedade. O vampiro ao meu lado era meu tio. Tinha conhecido meus pais biológicos. Enfim, depois de quase 18 anos, eu ficaria sabendo quem eles eram de verdade. Finalmente estava pronta.
Dorin me ofereceu o braço e o aceitei.
– Então venha, Antanasia. Temos muito o que conversar.
Juntos caminhamos pelo parque congelado na direção do Pouca Fé, a cafeteria mais próxima. Dorin parou antes de entrar, lendo a placa. Um sorriso estampou seu rosto.
– Entendi. Entendi mesmo. Que engraçado. Vocês e seus trocadilhos. Em Bucareste seriachamado simplesmente de “Cafeteria”. Os comunistas estragaram tudo.
Fizemos os pedidos – descafeinado para mim e um café com leite duplo com chantilly e chocolate para Dorin – e nos sentamos a uma mesa no canto. Dorin sugou o creme como se fosse sangue de um bife.
– Antes de entrarmos nas histórias de família – começou ele –, aquilo ontem à noite foifeio, hein? – Ele limpou o bigode de espuma com um guardanapo. – Mas Vasile é assim.
Adora um drama, mais do que um aldeão comum. Tudo vira teatro.
Meus sentimentos calorosos iniciais para com meu tio receberam um banho de água fria.
– Então o que aconteceu com Lucius foi só uma espécie de efeito teatral? Porque o narizquebrado dele pareceu bem verdadeiro.
Dorin parou no meio do gole, baixando a xícara.
– Não! Verdade?
– Verdade.
– Nossa. Achei que eles já haviam superado esse tipo de coisa. Não é bom. Não é nem umpouco bom. Nunca pensei que iriam encostar a mão nele de novo. Nunca pensei que teriam a coragem de lutar com ele. Eu mesmo não me arriscaria.
– Eram quatro contra um – lembrei.
– Mesmo assim. – Dorin parecia estar avaliando as chances. – Eu não me arriscaria. Comoestá o garoto? Como ele se saiu?
Como eu poderia colocar em palavras?
– Tão mal assim, é? – Dorin pareceu aflito. – Vasile nunca teve muito interesse por crianças. Mas Lucius se saiu bem, apesar de tudo, não é? É um ótimo rapaz. Um vampiro notável. Todo o clã Vladescu tem um orgulho justificado. Não é de surpreender que Lucius se rebele, depois da rédea curta com que Vasile o manteve enquanto ele crescia.
Passei o dedo na borda da minha xícara.
– O que vai acontecer com Lucius?
– Bem, a carta surpreendeu todos os Anciões. Achávamos que você é que seria difícil deatrair. Os americanos não são muito chegados a um pacto de sangue. É mais uma coisa europeia. Tentei chamar a atenção para isso, mas ninguém me ouve. Eles tinham quase certeza de que você cederia.
– Que eu “cederia”?
– Ah, é só olhar para Lucius. Nós presumimos que ele faria qualquer adolescente desmaiar. Ele é muito popular em Bucareste, entre certas debutantes que apreciam o lado sombrio...
Eu não queria ouvir sobre as antigas conquistas de Lucius.
– Então vocês acharam que eu ficaria caidinha por ele e que Lucius aceitaria o que recebesse.
Dorin inclinou a cabeça, pensativo.
– É. Acho que foi mais ou menos isso. E você ficou caidinha, não foi? Você o ama, estoucerto?
Fiquei vermelha.
– Quanto a amor, não sei...
– Todos vimos como você olhou para Lucius. E Vasile, apesar de todos os defeitos, émuito hábil em ler os pensamentos de outros vampiros. Melhor do que a maioria. Ele é velho demais. Que habilidade não aperfeiçoou?
– Ainda não sou vampira – corrigi.
– Mas sente sede, não é? – perguntou Dorin, esperançoso. – Nesse ponto você já deve...
Olhei ao redor, certificando-me de que a cafeteria estivesse vazia.
– Já – confessei, sussurrando para que o barista atrás do balcão não escutasse. – Às vezes.
Dorin assentiu, aprovando.
– Você tem muita coisa pela frente, Antanasia. A primeira vez que provar um VermelhoSiberiano, sobretudo o tipo O, safra 1972... – Seu olhar ficou distante e ele estalou os lábios. – Ah, é algo extraordinário.
– Não se eu nunca me tornar vampira por completo. Não se nunca for mordida.
Dorin voltou à realidade.
– Ah, sim, o pacto. E o nosso rapaz rebelde, Lucius. Nós, ou melhor, você, é quem devepersuadi-lo e garantir que o pacto seja cumprido.
– Como posso fazer isso?
– Você o ama. Pode fazer com que ele recupere o juízo. Na verdade é bem simples.
– Não é nem um pouco simples. Lucius não quer mais saber do pacto. E ele tem umanamorada...
– Lucius está se rebelando. Está sendo adolescente. Ele vai voltar. Vai voltar para você. Terminei de tomar meu café.
– Você está muito errado.
Dorin não tinha visto como Lucius agia comigo agora. No café da manhã ele havia se mostrado totalmente distante. Desligado. Algo aconteceu quando lhe deram a surra. O riso, o sarcasmo, a leveza, tudo isso tinha sumido. Agora Lucius estava diferente. Intenso. Assustador.
– Precisamos tentar – disse Dorin.
Fiquei imaginando se ele seria capaz de ler minha mente, como Vasile.
– Você consegue. É filha de Mihaela Dragomir. E, ora, aquela mulher era capaz de fazerqualquer coisa que quisesse.
Do outro lado da mesa, meu tio estreitou os olhos, reparando em mim.
– O que foi?
– De certos ângulos, você fica igualzinha a ela. É a imagem cuspida e escarrada, para usaruma expressão nojenta da sua língua. – Ele balançou a cabeça, suspirando. – Uma mulher linda, linda. Tremendo desperdício.
– Dorin, por que você não pode assumir o papel de líder do nosso clã? – sugeri. – Você éum Ancião. Não pode consertar essa confusão? Mudar o pacto, de algum modo?
– Eu já lhe disse. Meu sangue não é puro. Você é a última Dragomir pura, herdeira dotrono. Precisa ser você. Todos contamos com você. Contamos com o sangue que corre nas suas veias. Sua mãe, Mihaela, era uma grande líder. Assim como seu pai. Ele era muito nobre. Você descende da melhor linhagem.
– Se o pacto não for cumprido, haverá mesmo uma guerra?
– Os Dragomir e os Vladescu já estão impacientes. Há rumores de desconfianças dos doislados. Seu casamento oferecerá estabilidade, garantirá que o poder seja compartilhado igualmente entre clãs que guerrearam durante gerações, lutando pela supremacia. Mas, à medida que começam a se espalhar os boatos de que o pacto pode não ser cumprido, a velha instabilidade retorna mais forte do que nunca. A situação já está volátil.
– Os vampiros podem morrer?
– Os vampiros não morrem – observou Dorin. – Mas podem ser destruídos e isso é muitopior do que a morte. Mas, para responder à sua pergunta, sim. Vampiros seriam destruídos.
A velha guerra, que cessou com o seu noivado com Lucius, seria retomada.
Uma guerra de verdade. Por minha causa.
– Seus pais obtiveram a primeira paz – continuou Dorin. – Você vai alcançar a paz duradoura.
– Me fale sobre eles – insisti. – Quero saber de tudo.
Ele deu um sorriso largo, caloroso, e sinalizou para o barista no balcão.
– Acho que vamos precisar de um bule inteiro. – E se virou para mim. – Há tanta coisapara contar, minha futura princesa.
CAPÍTULO 45
– O que você está fazendo aqui? – perguntou Jake, parecendo infeliz ao
me ver ao lado do seu armário.
Saí do caminho para que ele pudesse abri-lo. Parecia fazer séculos que eu o vira lutar com a tranca no primeiro dia de aula. Muita coisa tinha acontecido desde então.
– Eu queria ver você – respondi. – Falar do que aconteceu no baile.
– Você me fez bancar o idiota.
Jake abriu a porta com força, fazendo-a bater nos outros armários.
– Fui eu que fiquei parecendo uma pessoa horrível. Fui eu que...
– Não precisa descrever – rebateu Jake, enfiando os livros no armário. – Vi você com oLuc. Eu estava lá, caso tenha se esquecido do que fez naquela noite.
– Eu mereço isso – admiti. – E só quero dizer que sinto muito.
– Por que quis sair comigo? Eu era um prêmio de consolação, depois que o Luc convidou aFaith? Porque o cara pode ter dado em cima de você no baile, mas parece que ele tem uma namorada.
Jake estava com vontade de me magoar e conseguiu. Afinal de contas, ele tinha sido magoado por mim.
– Jake, você não é prêmio de consolação de ninguém – garanti. – É um dos caras maislegais que conheço e eu gostaria de não ter tratado você daquele jeito.
– É, eu também – disse ele, batendo a porta do armário. – Mas não sinta pena de mim,Jess. Sou eu que sinto pena de você, porque o cara pode ser um figurão da Europa, mas nunca vai tratar você de um jeito tão legal quanto eu trataria.
E o pior era que eu sabia que Jake estava certo. “Legal” não fazia parte do vocabulário de Lucius Vladescu. Intenso. Cavalheiresco. Divertido. Arrogante. Perigoso. Honrado. Passional. Essas eram as palavras pelas quais Lucius vivia. Mas legal? Nunca.
– Eu vejo como olha para ele – acrescentou Jake. – Droga, eu soube que a gente ia terminar naquele dia que você foi ao treino de luta. Você ficou olhando para ele o tempo todo.
Eu não tinha nada a dizer. Não havia como me defender.
– Ele vai partir o seu coração, Jessica. Aquele cara vai destruir você.
E, com isso, meu primeiro namorado se virou e saiu da minha vida – com uma dignidade muito pouco camponesa.
Fiquei ali, parada, observando Jake se afastar enquanto pensava em como era curioso ele ter usado aquela palavra típica dos vampiros para o que Lucius faria comigo. Destruir.
Como era estranho que, de todas as expressões que Jake poderia ter escolhido – sacanear, magoar, destroçar, ferrar –, ele optasse por aquela palavra específica. Isso me abalou um pouco, quase como se fosse uma premonição.
Mas por quê?
Você sabe, Jess... No fundo, sabe que tem bons motivos para temer o Lucius...
Eu era a herdeira puro-sangue da liderança de um clã que havia guerreado com o de Lucius durante gerações. Deveria herdar o poder que a família dele sempre quis tomar. Se eu estivesse fora do caminho... Então me lembrei da declaração estranha de Lucius logo depois do baile de Natal.
“Por favor, acredite que eu não iria nem poderia fazer mal a você. Talvez houvesse um tempo, antes de eu conhecê-la, em que, se você tivesse ficado no meu caminho para o poder... mas agora, não. Meu Deus, espero que não...”
Não. Lucius nunca me faria mal, nem mesmo pelo desejo de ascender ao poder. Eu me prendi à primeira parte. “Eu não iria nem poderia fazer mal a você.”
Então pensei no Lucius mudado. Naquele jovem distante, raivoso, ferido, que nem queria me olhar nos olhos. Será que ele poderia me fazer mal?
Eu não acreditava nisso. Se havia uma certeza à qual eu precisava me agarrar com força na minha nova vida, agora de pernas para o ar, era a promessa feita por Lucius de me proteger, mesmo à custa de sua própria existência.
Ainda assim eu não conseguia deixar de me sentir inquieta com o alerta pouco característico – e bastante sinistro – de Jake.
CAPÍTULO 46
– Lucius, eu trouxe um pouco de chocolate quente. – Enfiei a cabeça no
seu quarto novo, levando uma bandeja. – É do tipo vegano, mas não é tão ruim.
Ele estava deitado de costas em sua cama improvisada – um colchão de ar –, de olhos fechados, ouvindo música com fones de ouvido. A luminária da mesa era a única fonte de luz do cômodo, lançando sombras ao redor dele. Demorei um segundo examinando-o antes que ele percebesse que eu estava ali e se virasse, como ele sempre fazia agora. Seus ferimentos haviam melhorado um pouco e o inchaço em volta dos olhos tinha sumido. Pousei a bandeja e dei um tapinha no seu ombro.
Ele levou um susto, tirou os fones de ouvido e sentou-se bruscamente.
– Não me assuste desse jeito. Não sabe que é perigoso? Já devia saber.
– Foi mal. – Dei um passo para trás, vendo como seus olhos estavam duros. – Fiz umpouco de chocolate quente e pensei...
– Não gosto de chocolate.
– Você acabou de esvaziar outro pote do sorvete de tofu com alfarroba de papai. Então nãoprecisa fingir que não gosta de chocolate. Toma um golinho.
Lucius empurrou minha mão, derramando um pouco no chão.
– Jessica, é tarde. Vá dormir.
Ignorei sua ordem e me sentei de pernas cruzadas ao seu lado, tomando a bebida rejeitada. – O que você está ouvindo?
– Metal alemão. Richthofen.
Pousando a caneca, fiz sinal para ele me passar os fones.
– Posso ouvir?
Ele trincou os dentes mas concordou.
– Como quiser.
Quando pus os fones no ouvido, meu coração se encolheu. Parecia música de elevador para almas atormentadas a caminho do inferno. Palavras guturais em alemão, sintetizadores rosnando, sem melodia. Apenas uivos e gemidos. De dar medo.
– O que aconteceu com o Black Eyed Peas? – perguntei, fazendo um esforço para brincarenquanto tirava os fones.
– Acho que isso está combinando mais com meu estado de espírito.– Lucius...
– Jess, vá embora.
– Para de ficar me empurrando para longe.
– Pare de ficar me puxando para perto!
Abracei os joelhos junto ao peito.
– Estou preocupada com você.
– O tempo de preocupação já passou.
– Não, não é verdade. Ainda podemos consertar as coisas.
– Jessica, em poucas semanas vou retornar à Romênia para enfrentar o castigo pela minhainsubordinação. Só me deixe em paz pelo tempo que me resta. É tudo o que peço.
– Mas, Lucius, eu quero ajudar.
Ele riu, um riso curto e amargo.
– Você? Você quer me ajudar?
– Não é engraçado. Eu posso ajudar. Talvez seja a única pessoa capaz de fazer isso.
– Como?
– Posso me casar com você.
Seus olhos se suavizaram apenas por um segundo e então ele os esfregou com as palmas das mãos, passando-as sobre os ferimentos, como se estivesse se castigando.
– Jessica...
Eu me inclinei para a frente, segurando a mão dele.
– A gente poderia fazer isso. Eu quero fazer.
Lucius puxou a mão.
– Você nem sabe o que está oferecendo, Jessica. Só sabe que sente pena de mim. Não voume casar por pena, para ser salvo como um vira-lata doente que está prestes a ser sacrificado e é adotado no canil por alguma boa alma. Prefiro ser destruído com dignidade. – Não sinto pena de você.
– Não?
– Não. – As lágrimas queimavam meus olhos. – Eu te amo, Lucius.
Não pude acreditar nas palavras que tinham escapulido da minha boca. Sempre pensei que, quando as dissesse pela primeira vez, o momento seria perfeito. E não desesperado e doentio desse jeito.
Houve um longo silêncio e os olhos de Lucius endureceram de novo.
– Que pena, Jess – respondeu ele. Depois se deitou e virou de lado, como se quisessedormir.
Saí correndo do quarto e trombei com minha mãe, chocando-me nos braços dela. Ela me levou para o seu quarto e fechou a porta.
– O que você estava fazendo com Lucius? – perguntou ela, ao mesmo tempo que tiravaalguns lenços de papel de uma caixa e os entregava para mim.
– Só conversando.
Enxuguei os olhos, mas as lágrimas não paravam.
– E o que ele disse? Por que você está chorando?
– Eu disse ao Lucius que o amava – admiti, apertando os lenços de papel molhados. – Quequeria me casar com ele.
Os olhos da minha mãe se arregalaram. Sua postura, geralmente calma, desabou.
– E o que ele disse?
Sua voz estava baixa. Ela tentava se controlar, mas dava para sentir que estava apavorada.
– Ele disse não. Que preferiria ser destruído a suportar que eu me case com ele pelo quejulga ser pena.
Minha mãe soltou um grande suspiro. Em seguida, fechou os olhos, juntou as mãos levando as pontas dos dedos aos lábios e eu a ouvi sussurrar. – Você é um bom homem, Lucius. Um bom homem. 
CAPÍTULO 47
– Jess, a gente vai se atrasar para a aula de cálculo – disse Mindy,
praticamente me arrastando pelo corredor.
Fiz força no sentido contrário.
– Acho que vou matar aula.
– De novo? – Havia preocupação na voz de Mindy. – Jess, você nunca matava aula. Agoraquase não assiste. E é matemática, Jess. Sua matéria favorita!
– Não estou a fim, Mindy.
– Qual é a sua, Jessica? É o Lucius? Porque vocês dois mudaram. E ele estava todo machucado... O que está acontecendo na sua casa?
– Nada, Mindy. Eu juro.
– Você está matando aula, Jake já era, Lucius parece sempre prestes a cometer um assassinato e não está acontecendo nada?
Fui em direção ao banheiro.
– Pode ir pra aula, beleza? Vou ficar por aqui até os corredores esvaziarem para eu dar ofora.
– Estou preocupada com você, Jess – disse Mindy, segurando os livros contra o peito. –Preocupada de verdade.
– Não é nada – garanti. Nada além de um coração partido, um pacto desfeito e uma guerra que se aproxima. Como eu poderia me concentrar em livros didáticos chatos, deveres de casa sem sentido e aulas maçantes quando tudo estava desmoronando? Quando vidas estavam em jogo? – Te ligo mais tarde.
Mindy ainda estava ali, com cara de assustada, quando entrei no banheiro e me tranquei numa das cabines. Mas o sofrimento não me deixava em paz nem no banheiro. Enquanto estava ali, sentada, esperando o sinal tocar, Faith Crosse entrou com sua amiga Lisa Clay. Pela fresta entre a parede e a porta da cabine vi as duas assumindo os lugares diante do altar do espelho, prontas para a autoadoração.
– E aí? Como vão as coisas entre você e o Lucius Luxuriante? – perguntou Lisa, remexendona bolsa e pegando um brilho labial. Passou uma camada gosmenta na boca. – E quem deixou o cara com aquele olho roxo?
– Ele não quer dizer. – Faith deu de ombros, escovando o cabelo. – Você conhece oLucius. É cheio de segredos. Mas desde que isso aconteceu ele ficou, tipo, totalmente doido. Lisa passou um pouco de blush cremoso nas bochechas.
– Doido bom ou doido ruim?
– Doido por mim – reclamou Faith, revirando os grandes olhos azuis. – Tipo, não me deixa sozinha. Quer me dar uns amassos o tempo todo. E é uma coisa intensa demais.
Lisa virou a cabeça para um lado e para o outro, verificando se havia alguma mancha nas bochechas.
– Homens. São tão cheios de tesão!
– É, mas isso é, tipo, supertesão. Nunca fica satisfeito. A gente vai para o apartamento deleatrás da casa dos Packwood e ele praticamente me arrasta para a cama.
Ele está transando com a Faith.
Meus dentes doíam tanto, tanto, que por um segundo achei que minhas presas iriam rasgar as gengivas e tive que segurar um grito, apertando a boca com a mão e dobrando-me de dor. E a sede... eu precisava de sangue, desesperadamente... Lucius está transando com Faith Crosse atrás da minha casa. Meu noivo está me traindo, traindo sua princesa...
– Mas eu vivo dizendo a ele – continuou Faith, sem perceber meu tormento silencioso nacabine do canto – que não vou jogar fora todo o meu futuro por causa de sexo, pelo menos até minha mãe me deixar tomar pílula. Cara, eu não vou engravidar antes de ir para Stanford.
Então não é sexo. Não vão até o fim. Tentei aplacar o ciúme e a fúria. Mas meus dentes continuavam a pulsar de dor ao pensar em Lucius no cobertor de veludo com Faith. Encostei a mão na parede fria de azulejos, abalada e sofrendo, e tentei me acalmar.
– É – concordou Lisa. – Não sei por que os caras não conseguem se contentar com um... –Ela pôs a mão em concha no ouvido de Faith e sussurrou alguma coisa que não pude ouvir.
Mas deu para adivinhar, pelos risinhos.
– Pois é – disse Faith, rindo. – Tipo, é quase a mesma coisa que ir até o fim. E o Lucius fazuma coisa que é praticamente melhor do que... – Ela parou, como se percebesse que tinha revelado demais.
Meu coração parou e eu deixei de sentir até mesmo minha boca latejar e meu desejo desesperado.
Que coisa? QUE COISA?
– Ei, não me mata de curiosidade! – exclamou Lisa, sacudindo o braço da amiga. – O queele faz?
– É só... – Faith hesitou mais um segundo, depois não conseguiu se conter mais. Virou-separa Lisa. – Uma coisa com a boca. No meu pescoço.
Meu coração não apenas parou. Foi como se uma mão gigantesca tivesse apertado meu coração, tentando arrancá-lo. Não, Lucius. Não faça isso. Não nos traia mais do que já fez.
E não se arrisque a mais punições violando o pacto de maneira irreparável. Ainda não. Preciso de tempo para consertar as coisas.
– O quê? – guinchou Lisa. – Tipo um chupão? Isso é tão ensino fundamental! Quem liga prachupão?
– Não. – Faith balançou a cabeça, virando-se de volta para seu reflexo. Ficou um poucopensativa, observando os próprios olhos. – Não é um chupão. É... ai, não dá para descrever. Mas é incrível. Tipo, perigoso ou sei lá o quê. Como se a gente estivesse fazendo alguma coisa muito sinistra. – Enfiando a mão na bolsa, ela pegou um elástico de cabelo e prendeu a cascata loura num rabo de cavalo alto. – Tipo, eu gosto, mas sei que não deveria.
– Hum, queria que Lucius ensinasse isso ao meu namorado. Allen não faz nada de especial.
– Não sei se é uma coisa que dá para ensinar. É só uma coisa que o Luc faz.
Lisa apontou para o pescoço da amiga, franzindo a testa.
– Bom, seja o que for, deixou uns arranhões. Quer um pouco de maquiagem para cobrir?
Faith se virou para olhar a lateral do pescoço, perto do ouvido. Passou os dedos pela marcas vermelhas e finas, sorrindo ao se lembrar de algo.
– Ah, Lisa. Se você pudesse sentir como é...
– Você tem tanta sorte de ter um cara europeu... – Lisa fez beicinho.
Quando elas saíram, caí de lado e bati na parede da cabine, ofegante, esperando que as dores e o apetite diminuíssem. Esperando que meu lado vampiro, tão desesperado por emergir completamente, se acalmasse e se escondesse de novo.
Lucius, o que você está fazendo? 

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