CAPÍTULO 48
– Ele vai morder Faith Crosse – contei para Dorin.
– Não, não, não – discordou ele, e polvilhou canela em seu cappuccino. – De jeito nenhum.Não acho que nosso garoto vá fazer isso.
– Dorin, eu vi a namorada dele, Faith, no banheiro da escola. Ela disse que Lucius estáfazendo coisas estranhas no pescoço dela. Com a boca. E ela estava com arranhões. Dorin pousou a xícara, com os olhos enrugados se nublando.
– Arranhões grandes?
– Não sei. Não estava perto o suficiente para ver. Isso importa?
– Na verdade, não, eu acho. Desde que ele não afunde os dentes lá, não é? – Dorin dobrouos dedos como duas presas e os cravou no ar. – Esse tipo de coisa seria má notícia.
– Para Lucius ou para Faith?
– Para a garota é difícil saber. Bem, se ele não sugar essa tal de Faith até ela ficar seca, senão matá-la no ato, bom, então ela seria uma morta-viva. E isso é algo que algumas garotas realmente lamentam quando fazem por impulso. Não é uma coisa que deva ser apressada. Além disso, as garotas que não têm linhagem de vampiro, como você tem, são as que ficam malignas depois de uns 100 anos. Não gostam de beber sangue. Não conseguem abraçar o estilo de vida. Preferiam ter se casado com um homem comum e formado uma família normal. Vivem reclamando, arrumando encrenca. A gente passa só uns minutos perto delas e dá vontade de cravar uma estaca no coração. Lucius poderia se arrepender muito, depois de alguns milênios, caso cedesse a um momento de paixão.
– Está dizendo que eles se casariam se ele a mordesse?
Odiei a inveja, o pecado de proporções bíblicas que me consumia. Senti uma pontada nas gengivas e cocei o queixo.
– Dói, não é? – perguntou Dorin.
Esfreguei com mais força.
– É tão óbvio assim?
– Só para quem conhece os sinais. Mas, confie em mim, é uma coisa boa. Se suas presasnão doessem, aí a jovem vampira deveria se preocupar.
– Eu sei. Li o livro.
– Lucius lhe deu um exemplar de Crescendo como morto-vivo? – Dorin riu. – É um clássico!
– É, ajudou muito – concordei. – Mas quanto a Lucius e Faith...
– Ah, sim. Se Lucius fizesse a coisa honrada, como se espera dele, os dois se casariam.Não se pode simplesmente morder uma virgem que não suspeita de nada e se safar. Isso não se faz.
A dor voltou rugindo e minhas gengivas latejaram.
– Não acredito que Lucius iria se ligar a ela por toda a eternidade.
Dorin balançou a cabeça, evitando meu olhar e jogando mais canela em sua xícara.
– Não, ele não faria isso.
– Mas você acabou de dizer que ele faria a coisa honrada...
– Honra coisa nenhuma. Se Lucius violar o pacto, não importará quem ele morda. Vasilenão admitirá a insubordinação. A razão pela qual os vampiros sobreviveram esse tempo todo é a justiça implacável. Algo como violar um tratado entre clãs seria motivo para destruição imediata.
O ciúme foi banido pelo medo.
– O quê?
– Destruição. Com D maiúsculo.
Eu sabia que eles iriam castigá-lo duramente. Até mesmo Lucius tinha medo do que eles fariam. Mas eu nunca havia pensado que fossem destruí-lo.
– Mas ele é o príncipe herdeiro...
– E os príncipes são dispensáveis. Ainda não são reis.
Minha voz pareceu presa na garganta.
– Quanto tempo Vasile vai dar para que ele obedeça?
– Ele já está por um fio – admitiu Dorin. – Vasile está decidido a fazer Lucius obedecer,mas não vai esperar para sempre. – Meu tio fez uma mímica de cravar no peito algo que supus que seria uma estaca, em seguida fingiu acender um fósforo. – E depois... puf!
De repente o ar quente da cafeteria ficou úmido e gelado.
– É assim mesmo que acontece? Com uma estaca?
– É o jeito mais seguro. – Dorin confirmou a afirmativa anterior de Lucius. – Comprovadopelo tempo.
Visualizei Vasile enfiando uma estaca no coração de Lucius, de baixo para cima, logo abaixo das costelas tantas vezes quebradas. Foi quase como se sentisse a madeira afiada rasgar minha carne. Cheguei a apertar o peito. Será que ocorrera o mesmo com meus pais, em seus momentos derradeiros?
– O que vai acontecer com Lucius depois? – perguntei, tentando livrar meu cérebro daquelas imagens horríveis. – Como assim?
– Tipo... com a alma dele.
– Ah, isso. A alma dele pertence ao clã. Não é a noção típica de céu e inferno a que oshumanos estão acostumados. A alma de um vampiro é diferente. O clã dá e o clã tira. Bom, às vezes turbas furiosas é que tiram. – Dorin deu de ombros.
A ideia de um Universo sem Lucius era insuportável demais. Mas eu me sentia impotente.
– Ele continua se recusando a honrar o pacto, mesmo eu tendo dito que o amava. Que querome casar com ele.
Dorin se animou.
– Você o ama de verdade, não é? Pode admitir para mim.
– Amo – respondi.
– Então não deixe que ele morda Faith Crosse, nem que isso signifique ficar grudada nele24 horas por dia – aconselhou Dorin, tomando um gole de sua bebida. – Porque, no segundo em que ele a morder, o relógio marcará a meia-noite para Lucius Vladescu. Isso eu garanto.
Lucius destruído. Um Universo sem ele. Eu não conseguia imaginar. E ao mesmo tempo não tinha ideia de como impedir a catástrofe.
Durante toda aquela noite me revirei na cama ao me lembrar de como me senti quando pensei que Lucius tinha morrido. Aquele vento frio rasgando meu peito oco, me abrindo como uma estaca.
Se ele não honrasse o pacto, isso não iria destruir somente a ele. Iria destruir a mim também.
CAPÍTULO 49
– Ah, droga – murmurei, olhando pela janela enquanto Lucius e Faith
Crosse se esgueiravam pelo quintal sob o disfarce da escuridão, indo para o antigo apartamento dele. Eu odiava espioná-lo, mas não sabia mais o que fazer. Precisava impedir que ele mordesse aquela garota. Por isso esperei uns minutos e fui atrás dos dois. – E aí, gente? – falei, entrando sem bater. – O que vocês estão fazendo?
Como se eu não soubesse.
Faith praticamente pulou para longe de Lucius, alisando o cabelo e puxando a camiseta desalinhada.
– Meu Deus, Jenn. Você não sabe bater? Algumas pessoas têm vida sexual.
Lucius não fez qualquer esforço para se recompor. Apenas ficou sentado na cama, com os braços em volta da cintura de Faith, acariciando seu quadril.
– O que você quer, Jess?
A voz dele estava baixa, ameaçadora.
– Talvez ela queira as panelas – disse Faith, com um risinho afetado. – Você sabe, paracuidar do cabelo.
– Não sinto mais cheiro da lebre – contra-ataquei. – O fedor de água oxigenada está fortedemais. É melhor você pegar leve no clareamento, Faith, ou vai acabar careca.
– Poderia ser pior. – Ela fungou, olhando para minha cabeça. – Melhor careca do que tercabeça de bombril.
– Melhor ter cabeça de bombril do que ser uma vaca.
Acho que ninguém havia falado assim com Faith Crosse. Eu mal podia acreditar que fizera isso. Mas ela que se danasse – a sensação era boa.
Faith ficou sentada num silêncio atordoado, abraçada a Lucius, de olhos arregalados.
Depois se afastou, cutucando o peito dele com o dedo.
– Você ouviu o que ela disse, Luc? Vai deixar que ela me chame de vaca?
Lucius riu, amargo, e a puxou para perto.
– Ah, Faith. Aceite o elogio.
Ela empurrou o peito dele.
– Presta atenção, Luc.
Lucius ignorou o aviso, dirigindo-se a mim.
– Vou repetir: o que você quer, Jessica?
– Preciso de ajuda com Bela no estábulo – menti. – Acho que ela está mancando um pouco,mas quero sua opinião. Você conhece cavalos melhor do que eu.
– Chame um veterinário – disse Lucius. – Não sou tratador de cavalos.
– Qual é, Lucius – insisti. – Só vai levar um minuto. – Qualquer coisa para afastar você da Faith.
– São quase 10 da noite – observou Lucius. – A égua vai sobreviver até amanhã. E nósestamos bem ocupados aqui. – Seu rosto estava obscurecido pela penumbra do quarto, mas pensei ter vislumbrado as presas.
– Lucius, seja razoável – instiguei, abandonando a história sobre Bela.
– Estou de saco cheio desse papo furado – disse Faith, soltando-se do abraço de Lucius. –Até mais, Luc.
– Não vá embora – reagiu Lucius, puxando-a de volta.
Mas Faith soltou o pulso.
– Está ficando tarde mesmo, Lucius. Meus pais vão me matar se eu chegar tarde de novo. –
Ela pegou a bolsa vermelha de couro no chão e deu um beijo rápido na boca de Lucius. – Tchau.
Enquanto ela passava por mim batendo o pé, agarrei-a pelo braço.
– E meu nome é Jess, por sinal. Da próxima vez, trate de lembrar.
Faith se soltou da minha mão com um risinho de desprezo.
– Ah, eu vou lembrar. E você vai se arrepender.
Faith deixou a porta aberta e eu a bati com força enquanto ela descia a escada.
– O que você vê nela? – perguntei a Lucius. Minha voz estava petulante, raivosa demais,mas eu não conseguia me controlar. – Ela é a pessoa mais perversa que já conheci.
– Você conhece coisa pior, Jessica. Confie em mim. – Lucius se levantou, cruzando osbraços. – Por que está aqui, de verdade?
– Para salvar você, seu idiota. Você vai morder a Faith! Está totalmente descontrolado.
Lucius gemeu. Um gemido que quase virou um rosnado. Ele fechou os punhos e os esfregou na testa.
– Jessica, não se meta nisso.
– Mesmo que não se importe comigo, consigo mesmo ou com o pacto, já pensou no que vaiacontecer a Faith se vocês dois passarem do ponto? Está brincando com a alma dela também. Eu posso odiá-la, mas o que você está fazendo não é certo.
O rosto de Lucius se contorceu numa careta.
– A alma de Faith... Essa já está bem mais corrompida do que possa imaginar. Não sepreocupe com a garota. Ela mente, trai, rouba e provavelmente mataria para ter o que quer. Eu vi a alma de Faith por dentro e sei que é tão escura quanto a minha. Por isso nos damos tão bem. Somos iguais.
Mas não eram iguais. Eu sabia disso.
– Você não pode basear sua vida num romance.
– Que conversa é essa?
– Ela não é Catherine e você não é Heathcliff. Os dois não precisam destruir um ao outro.
– Aquilo foi uma mera encenação. Uma diversão de escola.
– Você não acha que é uma diversão. Eu te conheço você, Lucius.
– Não conhece!
As vigas praticamente tremeram quando Lucius levantou a voz, pela primeira vez. O som era assustador.
Mas eu não iria recuar.
– Conheço. Você é um vampiro honrado. É da realeza. E Faith não é do seu nível. Ela nem é vampira.
– Ah, mas você também não é. – Ele chegou mais perto e segurou um punhado dos meuscachos. – Você mudou o cabelo e as roupas, leu o guia, mas não sabe nada sobre ser um vampiro. Viu meus tios. Está preparada para aquele mundo?
– Eu nasci para governar aquele mundo. Você sabe! Você me ensinou isso!
Mas Lucius riu de mim, soltando meu cabelo.
– É mesmo? Você mal consegue pronunciar as palavras, quanto mais assumir um trono.
– Você só está magoado, Lucius – argumentei. – Não jogue fora sua... – vida? morte-vida?
– existência por causa de uma briga com seu tio.
– Saia.
Ele mostrou os dentes como um animal, ofegando, e vi suas presas.
Mas eu não estava com medo. Meus próprios dentes doíam. E minha garganta estava seca.
– Não.
– Não me teste – rosnou Lucius, agarrando meus ombros. – Você não faz ideia do que eusou capaz. Não viu o que fizeram comigo? O sangue deles está em mim.
– Você não vai me machucar.
Eu me soltei, examinando o quarto com os olhos, procurando alguma coisa. Como eu poderia provar que era a pessoa certa não somente para salvá-lo, mas para selar nosso destino? E então vi. O copo em sua cabeceira. O copo de Morango Julius que deveria conter um líquido vermelho e morno. Corri para lá, sabendo que ele era mais rápido do que eu. Mas eu tinha o elemento surpresa ao meu lado e peguei o copo, arranquei a tampa – meio enojada, meio louca de desejo.
– Jessica, não – gritou Lucius, se lançando sobre mim.
Pulei de lado e virei o copo, derramando na boca o sangue grosso, um pouco coagulado. O líquido deslizou pela língua, desceu pela garganta e eu o entornei tão depressa que encharcou meu queixo, meu pescoço e escorreu pela blusa. Era pegajoso, salgado e doce, e tinha gosto de vida à beira da morte. Bebi tudo, dominada pelo gosto, pelo cheiro pungente, agora dentro de mim, me preenchendo, me satisfazendo.
Lucius ficou hipnotizado enquanto eu terminava, passando a mão na boca. Não falou nada quando empurrei o copo contra o peito dele, obrigando-o a aceitá-lo.
– Pronto – resmunguei, me sentindo mais poderosa do que nunca. Poderosa, saciada e meioenjoada. – Nunca mais diga que não estou pronta para governar.
Mesmo assim Lucius não disse uma palavra. Só ficou imóvel e rígido como um cadáver, segurando o copo contra o peito. Passei por ele, desci a escada e saí antes que começasse a tremer. Parei no pequeno círculo de luz na entrada da garagem, deixando que o vento frio me acalmasse. Minha blusa estava encharcada, mas o sangue, no ar gelado do inverno, já começava a congelar, endurecendo para formar um gelo escarlate. Limpei o queixo outra vez com o braço pegajoso. Queria vomitar – e beber de novo. Por isso simplesmente esperei um pouco, tentando me acalmar, pensar no que faria. E se meus pais me vissem coberta de sangue?
Olhei para casa. E foi então que vi Faith Crosse parada a menos de dois metros de mim, me olhando.
– Eu estava voltando... Eu... eu... esqueci o celular – gaguejou ela, apertando a bolsa vermelha contra o peito. Ficamos parecendo imagens espelhadas, só que o tronco dela estava coberto de couro vermelho, e o meu, de sangue. Os olhos dela estavam arregalados. – Que... que diabo aconteceu com você?
Comecei a dizer alguma coisa, mas não consegui pensar em nenhuma mentira. Como se uma mentira pudesse explicar por que meu rosto, meu pescoço e meu peito estavam cobertos de sangue.
Pouco importava. Faith deu as costas e correu até seu carro. Eu ainda estava ali, parada, tremendo de frio e emoção, quando o som dos pneus cantando desapareceu na noite.
Eu sabia que havia feito algo que jamais poderia desfazer. Tinha alterado não somente a mim mesma, mas também a meu futuro. Algo fora posto em movimento no instante em que virei aquele copo e eu estava ciente de que, de agora em diante, Lucius e eu não precisávamos temer apenas Anciões velhos e furiosos. Eu derramara sangue na rede de boatos de uma escola americana – a única coisa que talvez fosse mais perigosa do que legiões de vampiros em guerra sedentos de poder.
CAPÍTULO 50
– Jess, o que aconteceu com você naquele apartamento? – perguntou Mindy,
apertando meu braço e me puxando quando comecei a subir a escada em direção à sala de química. Seus olhos estavam arregalados, implorando que eu a tranquilizasse e dissesse que tudo estava bem. – Você pode me contar. Sou sua melhor amiga.
– Não aconteceu nada – menti.
Eu queria contar tudo a Mindy. Toda aquela história maluca. Estava cansada demais de carregar sozinha um peso tão enorme. Mas não podia. Ela jamais acreditaria. E, se acreditasse, o que pensaria de mim se eu dissesse que bebi sangue? Que queria beber mais sangue? Voltei a subir a escada.
– A gente vai se atrasar para a aula.
Mindy manteve a mão no meu braço, ainda me puxando.
– Dane-se a aula. Preciso saber o que está acontecendo com você. Está correndo um papopor aí de que estava com sangue na boca, Jess. Que estava saindo do apartamento de Lucius e estava coberta de sangue.
– Essa é a coisa mais idiota que já escutei.
Mentiras se empilhando em mentiras.
Mindy deixou a mão escorregar pelo meu braço, segurou minha mão e a apertou.
– É o Lucius, Jess? Ele está maltratando você? Pode me contar. A gente consegue ajuda!
Ah, meu Deus... é isso o que ela pensa...
– Não, Min. Eu juro. Se fosse, eu contaria. Prometo. Lucius nunca encostou a mão em mim.– Não de um modo que eu não quisesse, que não desejasse... – Não é o que você está pensando.
Ela me encarou e me toquei de que havia falado demais.
– Mas é alguma coisa, Jess. Acabou de admitir.
– Não é nada – insisti, tentando sorrir. – Você está se deixando levar.
Mindy soltou minha mão bruscamente, como se eu a tivesse traído. E tinha mesmo. Havia mentido para minha melhor amiga e ela sabia disso.
– Não acredito em você, Jess. Como pode não confiar em mim? – desabafou ela, com avoz embargada. Mindy subiu a escada correndo, para longe.
Deixei-me desabar no meio da escada vazia, mais solitária do que nunca. Tinha perdido Lucius, Jake e, agora, Mindy. Até meus pais pareciam estranhos vivendo num mundo mais simples, que eu havia deixado para trás. Meu único amigo era um vampiro velho que adorava cappuccino.
E, para completar, eu estava ganhando inimigos.
– Ora, ora, ora, se não é a Pacotão.
A voz desprezível vinha de cima. Olhei por cima do ombro e vi Frank Dormand e Ethan Strausser parados no patamar.
– Vão se catar – respondi.
Eles desceram a escada batendo os pés, me cercando.
– O que você está fazendo, aberração? – zombou Frank, chutando minha canela.Levantei-me, pronta, quase ansiosa para confrontá-los.
– O que vocês querem?
– Queremos saber que aberração está acontecendo naquela garagem da fazenda dos seuspais – disse Ethan. Eu nunca havia notado como sua cabeça parecia literalmente dura sob o cabelo claro raspado.
– Vocês dois usam demais a palavra “aberração” – observei. – Deviam consultar um dicionário de sinônimos. Tem um na biblioteca. Sabem onde fica a biblioteca, não sabem?
– Uuuh, a Pacotão está respondona hoje – zombou Frank.
Tentei passar, mas eles bloquearam o caminho.
– Não tão depressa – disse Frank.
– É – grunhiu Ethan. – Queremos saber o que aquela aberração...
– Sério, arranjem um sinônimo.
– ...o que aquela aberração que mora na sua casa está fazendo com a minha namorada.
A namorada dele? Era para rir?
– Acho que Faith tem um namorado novo, caso ainda não tenha notado.
Ethan fez uma careta. Seu rosto rosado ficava bem feio quando ele sentia raiva.
– Aquele cara fez alguma coisa com a Faith. Ele não é normal. Ele... ele... tipo, hipnotizoua garota.
– Não sei do que está falando. E não seja mau perdedor. O futebol não ensinou nada avocê?
Frank deu um peteleco na minha orelha.
– Não fale assim com o Ethan.
Dei um empurrão de alerta em Frank.
– Eu falo com ele como quiser. E nunca mais encoste a mão em mim.
– Ou o quê? Vai mandar seu guarda-costas me pegar? Porque, por mim, pode vir.
– Nós sabemos sobre ele – acrescentou Ethan, querendo me intimidar.
– Vocês não sabem nada.
– Sabemos sobre o sangue em você – disse Frank. – E sabemos tudo sobre o Vladescu.Nós pesquisamos na internet. O cara acha que é um vampiro.
Era a primeira vez que eu ouvia alguém, além de Lucius e da minha família, usar aquela palavra. Meu sangue congelou.
– O quê?
– Um vampiro – repetiu Ethan.
– E você sabe disso – declarou Frank, cutucando meu ombro.
– Vocês dois são malucos. Prestem atenção no que estão falando.
– Existe um site só sobre a família do Luc, os tais da Romênia – disse Ethan.
Frank deu um risinho.
– E sabe o que fazem na Romênia, com os vampiros?
Engoli em seco. É, eu sei.
Frank fez um gesto como se cravasse uma estaca no peito.
– Eles já fizeram isso. De verdade. Fizeram com a família do Luc. Com os pais dele.
– E a gente não gosta de gente esquisita por aqui – afirmou Dormand.
Havia algo realmente ameaçador no modo como ele disse aquilo. Eu me forcei a rir. Mas meu riso pareceu superficial e medroso.
– Vocês dois são sem-noção.
– Ah, acho que não...
Frank foi interrompido pela batida de uma porta acima de nós e o som de tênis correndo na escada.
– Você está aí – gritou Faith Crosse, jogando-se nos braços de Ethan, quase me derrubandonos últimos degraus.
Ela começou a soluçar, agarrando Ethan. Ele a segurava frouxamente, com a confusão estampada no rosto apático e idiota.
– O que foi, gata?
– Ele terminou comigo – choramingou ela. – Aquela aberração...
Pronto. Eu ia ter que comprar um dicionário de sinônimos para dar a cada um deles na formatura.
– ...terminou comigo – repetiu ela, afastando-se e apontando para o peito com o polegar. –Deu o fora em mim! Faith Crosse!
De repente ela percebeu que eu estava ali e voltou sua ira para mim, apontando o dedo na minha direção.
– Você... vocês dois... vocês são...
– Aberrações? – sugeri.
– É! Odeio vocês dois. – Em seguida se virou para Ethan, abraçando-o. – Nem sei por querompi com você. É como se ele tivesse me enfeitiçado. Mas agora tudo parece esquisito demais.
Ela começou a chorar, grudada no Ethan. A coisa me pareceu um pouco exagerada, mas o cara estava engolindo. Deu um tapinha nas costas dela com a mão grandalhona.
– Senti tanto sua falta! – disse Faith, soluçando. – Por que fui me ligar naquele cara?
Parte de mim estava imensamente aliviada. Lucius tinha voltado a si. Tinha mandado Faith passear. Talvez, apenas talvez, fosse um sinal de que iria honrar o pacto...
Minha alegria durou pouco. Soltando-se de Ethan, Faith voltou a me encarar, os olhos estreitados em fendas, a boca retorcida de fúria. Apontou aquele dedo para mim de novo, falando por entre os dentes trincados e as lágrimas.
– Diga ao seu precioso Lucius Vladescu que ninguém, ninguém, dá o fora em Faith Crosse.Ele vai se arrepender.
Faith ainda estava me encarando furiosa quando cheguei ao topo da escada e olhei para ela.
– Ele me paga – gritou Faith para mim.
Acreditei nela.
Tudo o que eu havia posto em movimento com aquele copo de sangue derramado estava fugindo ao controle mais depressa ainda do que eu poderia supor.
Eu nunca tinha acreditado que Frank Dormand conseguiria ligar Lucius à palavra vampiro. Mas ele conseguiu. E agora Faith estava furiosa com Lucius.
Por mais idiota que fosse, Frank descobrira a verdade. E Faith era a pessoa certa para usála sem misericórdia.
Eu tinha subestimado meus inimigos.
Lucius diria que eu havia cometido um erro de principiante. O erro de uma garota que não estava pronta para comandar legiões de vampiros. Eu tinha muito a aprender e não havia tempo suficiente para isso.
51
– Lucius? – chamei. Minha voz ecoou no ginásio quase vazio.
O amplo espaço estava praticamente escuro, com apenas uma fileira de luzes acesas. Na outra ponta da quadra, Lucius treinava arremessos sozinho, daquele modo repetitivo, ritualístico, que eu tinha visto antes: quicar, arremessar, recuperar... de novo e de novo e de novo, jamais errando. Jamais hesitando. Ele não se virou ao escutar minha voz e, sem saber se ele tinha ouvido, fui andando em sua direção pelo vasto piso de madeira.
– Lucius? – tentei de novo quando cheguei ao garrafão.
Ele passou a bola pelo aro e deixou-a quicar para longe, virando-se para mim, perplexo. Nada satisfeito.
– Jessica... como me achou?
– Vi você sair com a bola e está frio demais para jogar lá fora – respondi. Olhei o ginásiovazio. – Resolvi ver se você estava aqui.
– Como entrou? A escola está trancada.
– Do mesmo modo que você. Bati na janela onde o zelador estava trabalhando. Ele disseonde eu podia encontrar você.
– Ele costuma deixar a porta que fica mais perto do ginásio aberta para mim. Garanti queviolar as regras valesse a pena para ele, é claro.
Parte da raiva parecia ter se esvaído de Lucius, como se houvesse se curado junto com os ferimentos. Mas o antigo Lucius não estava de volta. O vampiro à minha frente parecia uma encarnação novinha em folha.
– Você está bem? – perguntei. – Ouvi falar sobre a Faith. Que você terminou com ela.
– É. Já havia rendido o suficiente, como acontece com esse tipo de coisa.
Percebi que Lucius e eu estávamos muito perto do lugar onde havíamos dançado, no baile de Natal, que parecia ter rolado numa vida anterior, apesar de apenas algumas semanas haverem se passado. Por mais que tivéssemos ficado próximos naquela noite – nosso sangue quase se misturando –, parecíamos completamente distantes no ginásio vazio. Era como se eu estivesse parada do outro lado da quadra. Em outro planeta.
– Eu cometi um erro, Lucius, bebendo o sangue e deixando que Faith me visse.
– Já cometi erros piores, Jessica. Não se preocupe desnecessariamente.
– Mas agora Frank está falando que você é um vampiro, Faith está revoltada e todo mundoestá fofocando. Até Mindy se afastou de mim, com medo dos boatos.
– É, muitas coisas parecem estar convergindo.
Lucius não deu um sorriso torto, como eu esperava. Estava estranhamente silencioso. Numa calma quase sobrenatural.
– O que vai fazer, Lucius?
Ele me deu as costas e arremessou a bola, convertendo uma cesta com facilidade. – Jogar basquete, Jessica. E esperar.
– Lucius...
– Boa noite, Jessica – disse ele, abafando qualquer resposta que eu pudesse ter dado como som da bola quicando no piso de madeira, o guincho do tênis na quadra e o chiado da bola passando pela borda. De novo, de novo e de novo.
52
– Oi, Mindy.
Apoiei as costas na parede de ladrilhos do ginásio e me sentei ao lado da minha amiga, que tinha sido eliminada pouco antes de mim.
– Parece que isso doeu. Mindy evitou meu olhar. Ficou observando o jogo de queimadocomo se tivesse feito uma aposta de um milhão de dólares em quem venceria.
– Foi só uma bolada.
– Mas aquela idiota da Dane mirou bem na sua cabeça.
Mindy se afastou só um pouco. Continuava sem me olhar.
– Não doeu tanto assim.
– Ainda está com raiva de mim? Ou só assustada? – perguntei.
Mindy deu de ombros.
– Um pouco dos dois, eu acho.
– Ah. Porque primeiro parecia que você sempre tinha uma desculpa para a gente não almoçar juntas. Depois desaprendeu a retornar telefonemas... Está me evitando há duas semanas, Mindy.
Mindy remexeu nos cadarços do tênis, amarrando-os de novo com o tipo de concentração empregada por crianças de 5 anos.
– Estou ocupada, só isso.
– Você não está tão ocupada.
Finalmente Mindy me olhou.
– Desculpa, Jess, mas...
– Mas o quê?
– A coisa ficou esquisita demais para mim.
– Então você acredita nos boatos.
Ela voltou a acompanhar o jogo de queimada.
– Não sei no que acreditar. E você não me conta nada.
– É complicado. Mas se puder confiar em mim por enquanto, até eu resolver...
Mindy se virou para mim de novo e dessa vez havia medo em seus olhos. – Não é só com relação a você, Jess.
– Então o que é?
– É... ele. Foi ele que mudou você. Ele fez alguma coisa com você. E fez com Faith também. Ela mostrou os arranhões para as pessoas...
Mindy não precisava esclarecer quem era “ele”: Lucius.
– Tudo estava normal até que ele chegou e mudou você – disse Mindy, com sofrimento navoz, como se Lucius tivesse roubado alguma coisa dela. E acho que, segundo o ponto de vista de minha amiga, tinha mesmo.
– Não é culpa do Lucius. Quero dizer, não é culpa de ninguém, porque tudo está tranquilo.
– Não está, Jess. – O controle de Mindy foi se desfazendo. – Você sabe que gosto doLukey... eu gostava do Lukey. Mas estão dizendo que ele não é normal. As pessoas estão com medo.
– Você não tem do que ter medo.
Mindy tentou sorrir mas não conseguiu.
– Se você diz, Jess...
– Você vai ao meu aniversário, não vai? – perguntei.
Faltavam poucas semanas para eu completar 18 anos. Mindy e eu sempre havíamos comemorado os aniversários juntas. Trocávamos presentes, comíamos bolo e fazíamos pedidos, lado a lado, desde os 4 anos. Sacudi a mão dela.
– Vai estar lá?
Mas a força com que Mindy puxou a mão de volta e o modo como olhou ao redor para ver se alguém teria visto aquilo me revelou que a tradição chegara ao fim.
– Foi mal, Jess – disse Mindy, a garganta parecendo apertada. – Não posso. Não se ele estiver lá.
– Por favor, Mindy...
Mas não tive a chance de convencê-la, porque uma bola perdida acertou a parede logo acima da minha cabeça. Meu grito involuntário alertou a professora Larson para o fato de que Mindy e eu estávamos ali, à toa, e ela soprou seu apito.
– Tragam esse rabo de volta para cá ou vão correr em volta da quadra – berrou ela,batendo palmas com força. – Não fiquem aí paradas engordando, suas preguiçosas!
Levantei-me lentamente, com as costas deslizando pela parede, sempre procurando gastar o máximo de tempo possível da aula de educação física. Mas Mindy ficou de pé num instante, entrando na confusão, pegando a bola e arremessando-a contra nossas colegas com uma violência que me deixou pasma. Eu nunca tinha visto Mindy Stankowicz participar de verdade da aula de educação física. Ela sempre se esforçava ao máximo para ser a primeira a ser eliminada de um jogo ou fingir que havia se machucado. E era a atriz mais convincente que já conheci para representar uma crise de cólica. Num só mês conseguiu ficar menstruada durante três semanas seguidas. Mas agora Mindy corria pela quadra, pegando cada bola perdida em que conseguia pôr as mãos, disparando como uma metralhadora num filme de gângster. E talvez me imaginasse lá, encolhida contra a parede.
– Venha para cá também, Packwood! – gritou a professora Larson, soprando o apito denovo. – Agora!
Mas achei melhor ignorá-la. Fiquei só olhando para Mindy durante alguns instantes, depois fui para o vestiário, pedindo licença com uma dignidade decidida que minha professora de educação física pareceu incapaz de contradizer, pois nem tentou dar a ordem outra vez.
53
– Sra. Wilhelm?
Levantei o olhar de um rabisco elaborado que estivera fazendo no caderno e vi Frank Dormand balançando sua mão gorda, tentando atrair a atenção da professora. Eu nunca tinha visto Frank levantar a mão para nada, então achei que ele estivesse com diarreia e precisasse de permissão para ir ao banheiro ou... na verdade não consegui pensar em nenhum outro motivo para um imbecil como Frank chamar a atenção para si mesmo numa sala de aula. Por isso o que ele disse em seguida me surpreendeu totalmente.
– Diga, Frank – respondeu a Sra. Wilhelm, parecendo tão perplexa quanto eu.
– Fiz um relatório sobre um livro.
O quê?
– Nossa! – A Sra. Wilhelm não sabia se deveria ficar feliz, aterrorizada ou as duas coisas.
– Fez? Bom, você não tinha sido escolhido...
– Eu sei – disse Frank. – Mas estava tão interessado no livro que o li antes do tempo.
Dava para ver que a Sra. Wilhelm estava um pouco intrigada, apesar de suas dúvidas óbvias. Ouvir que um aluno – especialmente um péssimo aluno como Frank – tinha lido um livro antes do tempo... bom, devia ser o mesmo que ganhar na loteria e encontrar o amor verdadeiro num dia só.
– Leu? – repetiu ela, com um sutil brilho nos olhos.
Algo naquela situação me deu a impressão de estar muito errado. Virei-me para Lucius, um pouco alarmada, mas ele apenas observava, os olhos plácidos, com aquela calma nova e estranha que havia cultivado.
– E o que você leu? – indagou nossa professora.
– Drácula – anunciou Frank. – E estou preparado para falar sobre ele.
Ah, não. Ah, por favor, não. Agora estávamos numa espécie de terreno perigoso. Frank e Faith haviam tramado alguma coisa. Por favor, Sra. Wilhelm, diga a ele para calar a boca.
– Bem, Frank, ainda faltam alguma semanas para lermos Bram Stoker – ponderou ela.
– Eu sei, mas fiquei empolgado com o livro. Me fez pensar em muitas coisas. Quero falarsobre ele para a turma.
A Sra. Wilhelm hesitou por mais um segundo, mas a ideia de um aluno medíocre ter descoberto coisas em que pensar era de mais para ela.
– Então, por favor, Frank. Compartilhe seu relatório conosco.
Ela se sentou enquanto Frank se espremia para sair de sua carteira e andava pesadamente até a frente da sala.
Meu coração havia disparado. Olhei para Mindy, mas ela manteve a cabeça voltada para a frente. Que diabo iria acontecer? Será que minha ex-melhor amiga sabia?
Frank sacudiu uma folha de caderno e pigarreou. Então leu, daquele seu jeito monótono e desajeitado:
– O que surpreende no Drácula de Bram Stoker é o fato de ele se basear na história real de um vampiro que viveu na Romênia. O nome desse vampiro era Vlad, o Empalador, que é meio parecido com o sobrenome Vladescu.
Cala a boca, Frank...
Atrás de mim, Faith riu baixinho e sussurrou “Ops!” de modo que apenas Lucius e eu escutássemos.
– Algumas pessoas dizem que os vampiros ainda existem – continuou Frank. – Se vocêprocurar na internet vai ver que há um monte de informações sobre pessoas que bebem sangue, sangue humano, e se dizem vampiros. Muitos desses malucos vivem na Romênia, onde costumam ser mortos porque as pessoas normais não querem conviver com eles.
Frank parou e olhou para um ponto atrás de mim. Para Lucius. Não.
– Franklin, não sei se isso é apropriado – interveio a Sra. Wilhelm, colocando-se de pé.
Mas Frank retomou a leitura, mais depressa, antes que alguém pudesse impedi-lo.
– Encontrei até nomes de pessoas que bebem sangue. Um monte de gente que diz que évampiro tem o sobrenome Vladescu, como Lucius. É uma coincidência estranha.
– Frank, sente-se agora! – ordenou a professora.
Mas era tarde demais. Os murmúrios haviam começado e todo mundo se virou boquiaberto para Lucius. Todo mundo menos eu. Eu apenas olhei direto para a frente, talvez porque meu coração houvesse parado e eu estivesse tecnicamente morta. Meus dedos, que apertavam a mesa, estavam frios e rígidos.
– Vocês podem checar na internet – concluiu Frank, ignorando a professora. – Vampiros.
Iguais aos do livro. – Ele fez uma pausa. – E esse é o meu relatório.
Frank dobrou seu papel e o enfiou no bolso de trás, com um sorriso presunçoso. Um sorriso que sumiu mais ou menos no mesmo instante em que uma sombra foi lançada sobre a minha mesa.
Lucius, não entra nessa.
Mas é claro que um príncipe vampiro não ficaria parado deixando que brincassem com ele. Lucius foi até a frente da sala e o sorriso de Frank desapareceu por completo.
– Queria apresentar algum argumento com seu “relatório” incoerente e mal concebido, Sr.Dormand? – perguntou Lucius, parado diante de Frank. Suas costas estavam viradas para a turma, mas dava para ver a tensão nos ombros largos. Como um gato musculoso pronto para atacar um rato gordo.
– Lucius – disse a Sra. Wilhelm, avançando rapidamente.
Lucius a ignorou. Ele se inclinou sobre Frank, cutucando o peito do valentão com o dedo indicador, empurrando-o contra o quadro branco.
– Porque se tinha alguma coisa a dizer, deveria ser mais direto. Você não é inteligente o
bastante para ser sutil.
– Chame a segurança – ordenou a Sra. Wilhelm a Dirk Bryce, que estava sentado maisperto da porta. – Corra!
Dirk hesitou por um instante, como se estivesse com medo de perder a ação, depois disparou como uma bala pelo corredor.
Desviando-se do dedo de Lucius, Frank engoliu em seco, olhando os colegas de turma. Pareceu reunir alguma coragem com a presença deles.
– O que estou dizendo é que seus pais foram mortos porque eram vampiros sugadores desangue. Está claro o bastante?
– Franklin Dormand, pare com isso agora! – berrou a Sra. Wilhelm, puxando os ombros deFrank e levando-o para mais longe de Lucius.
– Você está me acusando de ser um vampiro? – perguntou Lucius, acompanhando passo apasso o recuo de Frank. – Por que eu sou mesmo...
– Não! – berrei, me levantando da cadeira e correndo até Lucius. Agarrei seu braço e opuxei com o máximo de força que pude. – Não deixa o Frank provocar você.
Lucius se virou, furioso, como se fosse me empurrar, mas nossos olhares se encontraram e ele recuperou o autocontrole. A nova resignação fez seus olhos ficarem vítreos de novo. Ele soltou meus dedos do seu braço com delicadeza. Comecei a segurá-lo outra vez, como se pudesse silenciá-lo com minhas mãos, mas, no último segundo, deixei o braço tombar ao lado do corpo. Não havia nada que eu pudesse fazer.
Toda a turma mergulhou num silêncio fantasmagórico enquanto eu e Lucius nos encarávamos. Eu implorava em silêncio para ele não dizer mais nada que o prejudicasse. Para não provocar uma briga de verdade. Lucius me desafiava com um não dito “Por que não agora? Por que não deixar que o fim comece?”.
Dava para ouvir a respiração ofegante de Frank, Lucius e a Sra. Wilhelm enquanto todos esperávamos o que poderia acontecer em seguida. Atingíramos o ponto crítico. Estávamos nos equilibrando à beira do caos – ou da tranquilidade.
Lucius encontrou um modo de optar pela tranquilidade.
Virou-se lentamente de volta para Frank.
– Da próxima vez que tiver algo a me dizer, seja direto. E esteja preparado para umaresposta que vai deixá-lo com vontade de ter tido o bom senso de permanecer calado.
– Isso é uma ameaça? – Frank se virou para a Sra. Wilhelm. – Ele não pode fazer ameaças!
Isso é motivo para expulsão!
– Pare, Frank – disse a Sra. Wilhelm. – Pare agora.
Então a segurança chegou, invadiu a sala e nos encontrou de pé, tensos mas controlados.
– O que está acontecendo aqui? – perguntou o policial da escola, ansioso para exercer umpouco de abuso de autoridade.
Esperei que o mundo caísse, mas, para minha surpresa, a Sra. Wilhelm não entregou a história toda. Sua voz estava um pouco trêmula, embora ela tenha permanecido firme enquanto dizia:
– Não está acontecendo nada. Foi só um pequeno desentendimento. Está tudo bem agora.Os olhos de Frank se arregalaram e ele apontou para Lucius.
– Mas ele acabou de me ameaçar...
– SILÊNCIO! – trovejou a Sra. Wilhelm, com mais força do que eu jamais a ouvira usar. –SILÊNCIO, FRANK!
Demorei alguns segundos para deduzir o que ela estava fazendo. Protegendo Lucius. Seu favorito. O único aluno que amava a literatura tanto quanto ela. Ele poderia ser um sugador de sangue, mas, para a Sra. Wilhelm, Lucius Vladescu sempre seria o cara da fileira dos fundos que entendia metáforas ocultas, simbolismos obscuros e as paixões sombrias que consumiam um personagem fictício chamado Heathcliff. A boa e velha Sra. Wilhelm protegeria Lucius dos ventos uivantes enquanto ele estivesse em sua sala de aula.
Infelizmente, Lucius não poderia passar a vida inteira na aula de literatura inglesa.
Enquanto a turma saía da sala, olhei para Faith Crosse. A sugestão de um sorriso presunçoso, divertido e satisfeito reluzia em seus lábios rosa- -algodão-doce, com excesso de brilho.
CAPÍTULO 54
– Jess, apague as velas.
Meu aniversário de 18 anos. Deveria ser um dos pontos altos da minha vida, mas foi horrível. Deprimente. Eu não tinha amigos e, portanto, não tinha festa. Meu único convidado, claro, era o tio Dorin, cuja presença contínua havíamos finalmente revelado a Lucius e a meus pais.
Meu tio estava sentado à mesa, observando tudo com seus olhinhos brilhantes.
– Isso é adorável – ficava dizendo ele. – É o máximo.
– A cera está pingando – avisou mamãe, dando-me um cutucão. Ela havia feito um bolovegano com xarope de arroz, leite de soja e suco de maçã sem açúcar. Mas que delícia. Mesmo assim soprei, para deixá-la feliz. As velas estremeceram e se apagaram. Não perdi tempo fazendo um pedido.
– Parabéns! – disse mamãe, tentando animar a festinha.
Lucius me olhou do outro lado da mesa enquanto mamãe cortava o pseudobolo. Se existe uma coisa pior do que um vampiro furioso é sua versão impenetrável. Ninguém pode exibir um olhar vazio como um vampiro. Devolvi o olhar. Eu sentia sua falta. Se pelo menos ele falasse comigo... Lucius devia estar solitário. Todo mundo o evitava na escola, sussurrando pelas suas costas, enquanto a história do relatório de Frank se espalhava nos corredores, dando mais força aos boatos que já circulavam. O fato de Lucius ter praticamente admitido que era um morto-vivo, bem na frente da turma, não havia ajudado a acalmar a situação.
De repente não era incomum ouvir a palavra “vampiro” sussurrada nos corredores da Escola Woodrow Wilson.
– Ei, isso está uma delícia – disse papai, comendo sua fatia de bolo.
Ele acredita mesmo nisso?
– Temos um presente para você.
Mamãe sorriu, me entregando uma caixa embrulhada no papel alegre e amarrotado, rosa e amarelo, que vínhamos reutilizando desde que eu tinha uns 10 anos.
– Ah, presentes! – exclamou Dorin, batendo palmas. – Adoro presentes.
Tirei com cuidado o papel de embrulho para que mamãe pudesse guardá-lo para mais um ano. Dentro da caixa havia uma calculadora bem moderna e um cartão anunciando que eu tinha renovado a assinatura da revista Mago da Matemática. Lancei um olhar perplexo aos meus pais. Eles sabiam que eu havia saído da equipe de matemática.
– Talvez um dia você recupere o interesse – explicou mamãe.
Eu sabia o que ela queria dizer de verdade: talvez possa ser você mesma de novo. Vai superar Lucius e sua vida vai continuar.
– Obrigada, mamãe e papai. É um presente maravilhoso.
– Lucius, você também não tem um presente para Antanasia? – cutucou Dorin.Lucius voltou bruscamente de algum devaneio particular.
– Ah, é. Claro.
Ele estivera tão distante, tão trancado em si mesmo que eu não esperava que fosse comprar algo para mim.
Olhei com ansiedade enquanto ele enfiava a mão no bolso da calça jeans, tirando uma caixa. Uma caixa minúscula. De veludo vermelho. Como aquelas em que se colocam anéis.
Anéis de noivado.
Meus pais prenderam a respiração. De repente meu coração estava disparado.
Lucius empurrou a caixa por cima da mesa.
– Aqui. Feliz aniversário. Muitos anos de vida.
– Minha nossa – disse mamãe. – Não sei se...
Forcei meus dedos a não tremerem enquanto pegava a caixa e abria a tampa. É agora? Será que Lucius mudou de ideia? Vamos em frente com o pacto?
Mas não.
Dentro, num pequeno quadrado de veludo branco puríssimo, não estava um anel, e sim um colar, com uma pedra de um vermelho tão fechado que chegava a ser quase preto. Era lindo.
E eu odiei.
Quase saí correndo por conta da decepção que apertou meu peito, tornando difícil respirar. Ao ver a caixa que serviria para um anel, eu acreditara mesmo que Lucius havia voltado atrás. Por um breve momento eu tinha visualizado nós dois juntos. Todo o nosso futuro passou diante dos meus olhos. Eu. Lucius. Paz entre os vampiros. A segurança nos braços um do outro, imunes às ameaças dos Anciões ou dos nossos colegas de escola. Por um breve momento, eu havia pensado que a caixinha guardava a promessa de tudo isso.
Olhando para Lucius do outro lado da mesa, percebi que minhas esperanças haviam sido absurdas. Ele não tinha a postura de um homem pedindo alguém em casamento. Estava sentado empertigado, os olhos vazios, contido em seu novo estado, serenamente desinteressado. Lucius Vladescu não era um pretendente prestes a se casar. Era um vampiro prestes a ser destruído. Esperando o que se abateria sobre ele.
Senti vontade de gritar e jogar o colar do outro lado da sala, como uma criança mimada que não tivesse ganhado o brinquedo que queria. Mas eu não era uma criança mimada. Era uma jovem mulher arrasada e precisava demonstrar uma elegância que não possuía.
– Obrigada – consegui dizer. – É lindo. – Então fechei a tampa e deixei a caixa de lado. –Estou cansada. Se vocês não se importarem, acho que vou subir.
Meus pais pareceram tristes e esgotados e percebi que eles também estavam sendo arrastados para baixo por meu sofrimento aparente demais e pela preocupação comigo e com Lucius. Empurrando a cadeira para trás, fui até mamãe e lhe dei um abraço apertado.
– Muito obrigada pela festa. Você é a melhor mãe do mundo.
Fui até meu pai.
– E você é o melhor pai. De todos os tempos.
– Você é uma jovem linda, Jessica – disse papai, a voz embargada. – Nós dois temosorgulho de você.
Soltando-me do abraço de papai, cumprimentei Dorin e Lucius com a cabeça.
– Boa noite e obrigada – falei.
– Boa noite, Antanasia – cantarolou Dorin. – Muitos anos de vida!
Lucius não disse uma palavra. Só ficou lá parado, olhando o presente rejeitado.
Mantive a compostura por todo o caminho até o quarto, mesmo depois de estar fora do alcance da audição da minha família. Enquanto me despia e vestia a camisola, não cedi às lágrimas. Segurei os soluços até me deitar na cama. Enterrei o rosto no travesseiro e os abafei, para que ninguém ouvisse. Não deixaria meus pais mais preocupados do que já estavam.
– Jessica.
A voz dele veio da porta.
Através das lágrimas, vi a forma ondulante de Lucius parado na entrada. Enxuguei os olhos, sem graça por ter sido surpreendida chorando.
Ele entrou no quarto, fechou a porta em silêncio e veio até mim, sentando-se na cama.
– Por favor, não chore – disse ele, me tranquilizando. – Não há nada que valha suas lágrimas. É seu aniversário.
– Está tudo errado – protestei, esmagando o choro com as palmas das mãos.
– Não, Jessica. – Lucius puxou minhas mãos. Passou gentilmente os polegares sob meusolhos, primeiro um e depois o outro, enxugando as lágrimas. – Para você as coisas vão ficar bem. Este é um dia feliz. Seus 18 anos são um marco importante. Por favor, não suporto ver suas lágrimas.
– Um dia feliz?
Eu estava incrédula.
– A caixa... você pensou que era outra coisa. Eu vi seu rosto. Você ficou desapontada.Pensou que eu tivesse mudado de ideia...
– Pensei – respondi, ainda fungando.
– Não, Jessica. – Ele balançou a cabeça. – Nunca. Você precisa esquecer aquilo tudo.
– Não posso – respondi, estendendo a mão para ele. Mas Lucius se levantou depressa,quase como se tivesse medo de me tocar, e eu sabia que, apesar do seu distanciamento e da sua frieza, uma parte dele ainda se sentia atraída por mim. Sempre soube que ele se sentira atraído por mim, como eu me sentira atraída por ele.
– Você não me deu a chance de explicar meu presente – declarou ele, enfiando a mão denovo no bolso e pegando a caixa. Em seguida a entregou a mim. – É melhor do que um anel.
Melhor do que a promessa de... o quê? A eternidade com um vampiro condenado?
– Nada me deixaria mais feliz do que você concordar com o pacto – falei, recusando-me apegar a caixa.
– Ah, Jessica, abandone essas ideias em favor do que eu posso oferecer. – Ele estendeu a mão de novo, com a caixa na palma. – Você não reconheceu o conteúdo? Eu estava confusa, mas me levantei, curiosa, pegando a caixa.
– De onde?
– Da foto. Sei que olhou para ela, Jessica. Eu sabia que você iria olhar, na hora certa.
Quando estivesse preparada.
Minha mãe. Era o colar da foto que ele havia enfiado no livro. Abri a tampa de novo.
– Ah, Lucius. Onde conseguiu?
– Ele foi guardado para você, na Romênia. Para lhe ser dado nesta ocasião. Era o pertencepreferido de sua mãe e é uma honra para mim lhe entregar uma recordação tão importante. Espero que você o use durante muitos anos, com boa saúde e boa sorte.
Fui até a mesa e peguei a foto na moldura de prata, olhando o jaspe-sanguíneo que enfeitava o pescoço da minha mãe. A pedra que agora eu segurava na outra mão era uma prova palpável da existência de Mihaela Dragomir. Uma ligação verdadeira com ela. A pedra se destacava sobre o veludo branco e era de um vermelho fechado, como um coração de verdade. Um coração transplantado da minha mãe para mim.
Lucius veio por trás, pondo as mãos nos meus ombros.
– Ela não é linda, poderosa, majestosa... como você? – perguntou ele.
– Acredita mesmo nisso?
– Acredito. E acho que você também passou a acreditar.
– Então...
– Não. – Lucius nem me permitiu falar do pacto.
Pus a foto novamente sobre a mesa e me virei para o espelho. Tirando o colar da caixa, encostei-o diante do pescoço.
Lucius me acompanhou pelo reflexo da minha imagem.
– Permita-me, por favor.
Outra vez ele parou atrás de mim, tirando o cordão delicado dos meus dedos. Afastei o cabelo do pescoço e Lucius passou o cordão em volta e prendeu o fecho.
A pedra era fria ao encostar na pele, como devia ser o toque de vampira da minha mãe. Enquanto eu me olhava no espelho, o poder que eu havia sentido crescendo dentro de mim – o poder dela – surgiu com uma força ainda maior. A conexão que eu viera estabelecendo com Mihaela Dragomir finalmente estava soldada junto ao fecho daquele frágil cordão e eu quase podia ouvi-la sussurrar no meu ouvido: “Não o considere perdido ainda, Antanasia. Esse não é o nosso estilo. Sua vontade é tão forte quanto a dele e o amor de Lucius é tão forte quanto o seu.”
Virei-me para encarar Lucius e não esperei que ele se afastasse, me puxasse para perto ou fizesse qualquer movimento. Pus as mãos em seu peito, deslizei-as para cima e envolvi seu pescoço com os braços.
– Antanasia, isso não pode acontecer...
Lucius agarrou meus pulsos com as mãos fortes, como se quisesse me empurrar.
– Pode acontecer – garanti, segurando-o com firmeza, os dedos se cruzando atrás do pescoço dele, afagando seu cabelo preto.
– Por que não sou capaz de fazer o que deveria? – gemeu ele, cedendo com facilidade, nãosó aceitando meu abraço mas correspondendo a ele. – Eu já deveria ter ido embora... Acho que desperdiço tempo só de estar perto de você. E em troca de quê? De alguns momentos que em breve não serão nada além de lembranças para você? Uma anotação trágica no diário de uma garota?
– Você ficou por causa deste momento – respondi, permitindo, agora, que ele assumisse ocontrole, como sabia que ele iria querer. Eu exercera todo o poder de que precisava. Tinha atraído Lucius de volta, resgatando-o daquela distância fria. Agora eu queria que ele me beijasse. Que mordesse meu pescoço. Que realizasse o que nós dois queríamos havia tanto tempo. Desde que ele tinha se inclinado sobre mim na cozinha, no dia em que chegou à minha casa, a mão roçando no meu rosto. Desde que havia me encarado e dito: “Seria realmente tão repugnante, Antanasia, ficar comigo?”
Mesmo naquela época eu sabia, bem no fundo, que não seria nem um pouco repugnante. Que seria algo quilômetros e quilômetros além de legal. Que poderia ser simplesmente a glória.
Lucius hesitou por só mais um instante, olhando-me nos olhos.
– Não sou menos perigoso para você, Antanasia – sussurrou ele. – O que quer que façamosserá apenas por esta noite. Não muda nada. Vou partir para encontrar meu destino e você ficará aqui para seguir adiante com o seu.
– Não pense nisso agora – implorei. Eu não acreditava que o que faríamos naquela noitenão mudaria nada. Acreditava que poderia mudar tudo. – Só esqueça o futuro por enquanto.
– Como quiser, minha princesa – disse Lucius, fechando os olhos, se entregando a mim.Em seguida se inclinou para roçar os lábios frios, duros, contra os meus, primeiro com delicadeza, depois com mais insistência.
Enfiei os dedos mais fundo em seus cabelos, puxando-o contra mim, e, quando fiz isso, Lucius soltou um gemido faminto, passando as mãos por meus cachos escuros, e nos beijamos com mais força, como se estivéssemos famintos um pelo outro. Como se estivéssemos devorando um ao outro.
E enquanto nos beijávamos, nos beijávamos de verdade, algo dentro de mim foi esmagado, como um átomo se partindo, irrompendo com toda a força de um núcleo despedaçado. Mas eu também estava em paz. Era como se tivesse encontrado meu lugar no Universo, no caos, e Lucius e eu pudéssemos seguir juntos por todo o tempo sem fim, como pi, existindo infinitamente, irracionalmente, girando para sempre.
Seus lábios deslizaram em direção ao meu pescoço e meus incisivos começaram a doer ao toque de suas presas, que roçaram minha pele, afiadas. Ele passou os dentes por toda a extensão do pescoço, até onde o jaspe- -sanguíneo repousava, perto do esterno.
– Lucius, sim – insisti, mostrando o pescoço o máximo que podia, oferecendo e implorando. – Não pare... por favor, não pare desta vez...
Se ele me morder, será meu... Para sempre...
– Não, Antanasia. – Ele lutou contra si mesmo, mas o apertei de novo, sentindo suas presasmorderem minha carne, quase o bastante para rasgar a pele, e meus dentes se afiaram contra as gengivas, perto de atravessá-las.
– Sim, Lucius... minhas presas... estou sentindo...
– Não.
Lucius recuperou o controle, mas era um controle tênue, e ele deslizou as mãos envolvendo meu rosto, afastando-se, me olhando nos olhos de novo.
– Chegamos perto demais, Antanasia... O beijo deve bastar. Não serei eu a condená-la,mesmo que você deseje isso. Não vou arrastá-la para a destruição também.
– Não entendo... – Nós chegamos tão perto...
– Por favor, nunca lamente isso, Antanasia – implorou ele, e seus olhos eram o oposto defrios e distanciados. De repente ele parecia abalado, quase desesperado. – Não fique com raiva quando eu for embora ou mudar. Por favor, só se lembre disso como foi de verdade e foi tudo para mim. Para o homem que sou agora.
– Você não vai mudar, Lucius – garanti, segurando seus pulsos, sem entender. O que nóstínhamos acabado de compartilhar... Com certeza nós dois, juntos, poderíamos selar pactos, acabar com guerras e reagir a qualquer desafio. Éramos da realeza vampírica. E estávamos juntos. – Você não vai a lugar nenhum. Agora está tudo bem. Vai ficar bem.
– Não, Antanasia. Não está bem. Não vai ficar bem.
Até aquele momento eu não havia notado que meu quarto tinha sido rasgado por um clarão de luz vermelha, que produzia uma imitação bizarra de sangue nas paredes.
– Lucius? O que está acontecendo?
Ele não respondeu. E ainda me segurava quando papai entrou bruscamente no quarto.
– Lucius, a polícia está aqui – disse papai. Ele estava controlado, ainda que de maneiraestranha. – Uma garota disse que foi mordida por um vampiro e identificou você.
– Lucius?
Olhei-o desesperada, esperando por uma resposta. Mas Lucius apenas me beijou mais uma vez, de leve, nos lábios, e se virou para o meu pai.
– É melhor que eu enfrente isso sozinho, Sr. Packwood – disse ele. – Por favor, deixe-melidar com isso sem sua ajuda dessa vez.
Papai hesitou, depois ficou de lado e permitiu que Lucius saísse, me segurando enquanto eu tentava ir atrás.
CAPÍTULO 55
– Ela está armando contra o Lucius – falei para os meus pais. – Faith jurou
que iria se vingar por ele ter terminado o namoro. Ela inventou tudo.
Os dois trocaram um olhar de dúvida.
– Lucius terminou com Faith há dias – acrescentei, defendendo-o. – E tenho quase certezade que foi porque tinha medo de acabar mordendo aquela garota. Ele sabia que estava perdendo o controle, mas se conteve.
Mamãe lavava a louça da minha festa frustrada.
– Jessica, Lucius está passando por algo muito difícil, lutando consigo mesmo. Não podemos ter certeza do que aconteceu.
– Não aconteceu nada!
– E “nada” estava acontecendo no seu quarto? – perguntou papai. – Você está envolvidademais com Lucius para ser imparcial, Jessica.
– Ele é um Vladescu – argumentou mamãe, mergulhando os pratos na pia. Parecia muitochateada. – Ele deseja não ser assim, mas pode não conseguir lutar contra esse seu lado. Talvez tenha sido até perigoso deixá-lo morar aqui. Nem sei mais se fizemos a coisa certa.
– Vocês estão sendo injustos. Só porque os tios dele são horríveis não significa que Luciusseja um monstro! Ele não mordeu Faith. Por favor, vamos até a delegacia!
Meus pais trocaram outro olhar inseguro. Então papai disse:
– Jessica, independentemente de como a gente se sinta, Lucius pediu para cuidar dissosozinho. Vamos respeitar o desejo dele. E você também vai.
– Agora eu tenho 18 anos – observei. – Não preciso da permissão de vocês para fazernada.
– Mas precisa de um carro – observou mamãe.
Corri até o gancho perto da porta dos fundos, onde meus pais guardavam as chaves. Tinham sumido.
– Cadê as chaves?
– Isso é para o seu próprio bem, Jess – disse papai. – Você foi muito a fundo com Lucius.
Precisa recuar.
– E é nossa responsabilidade protegê-la – acrescentou mamãe. – Queremos ajudar Luciustambém, é claro. Mas você é nossa maior prioridade.
Encarei os dois, me sentindo traída.
– Ele não nos quer agora, filha. Fizemos tudo o que podíamos – disse papai.O telefone tocou e eu agarrei o aparelho.
– Lucius?
– Não, é a Mindy.
– Não posso falar agora...
– É sobre o Lucius – disse ela. Havia pânico em sua voz.
– O que é? O que está acontecendo?
– Não sei se devo contar.
– Diga logo, Mindy. Por favor.
– Eles estão fora de controle. Estão falando em espancar o cara pelo que ele fez com aFaith. Frank incitou todo mundo com aquele papo de vampiro. Eles estão malucos!
Meus dedos apertaram o fone.
– O que você ouviu exatamente?
– Tem uns caras... esperando o Lucius. Vão levá-lo para o celeiro do Jake e “dar umalição nele”. – Ela fez uma pausa. – Estou com medo por ele, Jess. Não sei o que ele fez com você...
– Nada!
– Mas estou com medo por ele. Estão falando do sangue em você e dos arranhões em Faithe de como a perna dele se curou tão depressa... e de todas as coisas que acharam no site sobre a família do Lucius, Jess. – Ela fez outra pausa. – E Faith ouviu você chamar o cara de vampiro também. No estábulo.
Aquele dia no estábulo, há milênios. Mais uma vez eu piorei as coisas para o Lucius.
Pelo jeito, eu é que sou perigosa...
– Eles ficam falando sobre vampiros e estacas – gritou Mindy.
– Estacas? – perguntei. O fone quase caiu da minha mão.
– É, Jess. Estão levando estacas, como se estivessem na Idade Média ou sei lá o quê! Para o caso de ele ser um vampiro de verdade! Eles piraram!
Estacas. Pessoas fora de controle. Turbas. Meus pais biológicos foram destruídos dessa maneira...
Lutei para permanecer calma.
– Eles disseram quando isso vai acontecer?
– Esta noite. Mais tarde. Vão pegar o Luc quando ele sair da delegacia. Todo mundo jásoube que ele foi preso.
É claro. A rede de boatos devia estar frenética.
– Obrigada, Mindy.
– Eu... eu sei que a gente não tem sido amiga ultimamente... mas isso... isso é loucura.Achei que você deveria saber.
– Preciso desligar.
– Jess?
– O quê?
– Feliz aniversário.
– Tchau, Mindy.
Desliguei o telefone, escancarei a porta antes que meus pais pudessem me impedir e corri para selar Bela.
CAPÍTULO 56
CARO VASILE,
Desculpe o papel timbrado barato da Delegacia de Polícia de Mount Gretna. Tenho sorte de possuir ao menos isso para escrever a você.
Parece que fui acusado de “atacar” uma garota local, Faith Crosse, e de morder seu pescoço. Eles vão terminar de me “fichar” logo, portanto vou tentar ir “direto ao ponto”, como dizem por aqui. Mais importante: eu NÃO cravei as presas naquela garota insuportável. Ela inventou o ferimento. Os policiais enfiaram uma série de fotos “chocantes” debaixo do meu nariz, observando minha reação. Não pude deixar de rir. Marcas de mordidas, sim. Mas de um vampiro? Não. Mas foi uma falsificação hábil. Faith sem dúvida é esperta. E aparenta ser imune à dor. As marcas pareciam bastante profundas. E havia uns bons hematomas. Bravo. Trabalho excelente.
Durante um período particularmente sombrio, cheguei a desfrutar da natureza tortuosa de Faith. Agora meu flerte retorna para me morder. Irônico, não?
Fora isso, sinto que o humor neste pequeno povoado está bastante implacável no momento. Ainda que eu deva ser liberado “com o compromisso de ficar à disposição” até que seja acusado formalmente, tenho uma forte suspeita – intuição de vampiro – de que “a coisa tá preta”.
Ou, para usar termos que você terá mais facilidade de entender, a turba está se reunindo, como previ já há algum tempo.
Escrevo porque sei que você ansiou pelo prazer de me destruir pessoalmente por tê-lo desafiado – por violar o pacto e arruinar seu plano. Ah, como deve ter ansiado por cravar fundo a estaca. Mas agora a tarefa será feita por um bando de adolescentes americanos ridículos. De certo modo eles foram melhores do que você, Vasile. É cruel da minha parte ficar feliz em privá-lo do que tanto quis? Sinto mesmo alguma alegria em saber que sempre lamentará que não tenha sido por suas mãos...
Dito isso, vou de boa vontade ao encontro do meu destino no humilde condado de Lebanon, na Pensilvânia. E, assim, a história se repete. Mais um Vladescu destruído. Lutarei para partir de modo tão corajoso e estoico quanto meus pais. Para manter a honra do clã – que é mais do que você fez, Vasile, segundo meu ponto de vista.
Também escrevo em favor de Jessica. Eu não a mordi, Vasile. Ela permanece sendo uma adolescente americana. Deixe-a assim. O sonho de uma princesa Dragomir acabou.
Há mais alguma coisa a dizer? Parece estranho, dada a minha queda pelas missivas cheias de divagações, que minha última carta seja tão breve. Mas, na verdade, estou morto – em mais de um sentido. (Quem pode resistir ao humor negro? Não é sinal de coragem rir da própria extinção?)
Confio esta carta ao Serviço Postal dos Estados Unidos. Uma organização muito confiável. É rara a burocracia à qual podemos confiar nossas últimas palavras. Acredito que esta vá encontrá-lo em curto tempo.
Seu sobrinho em sangue e memória,
Lucius
CAPÍTULO 57
Os cascos de Bela trovejavam na noite chuvosa. Eu estava congelando na
sela. Era o fim do inverno e a noite continuava gelada, a chuva misturada com neve batia no meu rosto, derretendo através da blusa fina. Não tive tempo de pegar um casaco.
– Anda, Bela – instiguei, batendo os calcanhares nos flancos, desejando que a égua seguisse mais depressa. Parecia que ela entendia minha urgência, porque voava pelo campo congelado. Rezei para que não caísse na toca de um bicho e quebrasse uma pata, porque a noite estava escura demais e nós corríamos de maneira imprudente pelo terreno irregular.
Salvar Lucius... Salvar Lucius... Era o que martelava nos meus ouvidos a cada batida de cascos.
À minha frente, o celeiro dos Zinn surgiu, cinza-claro e em arco, como uma lápide contra o céu. Um gritinho escapou dos meus lábios. Já havia carros ali. Mas não posso estar atrasada demais. Não posso. Quando saltei de cima de Bela antes mesmo de ela parar, escutei vozes dentro do celeiro. Vozes raivosas, masculinas, e um ruído de briga. Corri até o celeiro e abri a porta pesada, puxando-a para trás em seu trilho enferrujado.
Lá dentro, um pandemônio. A briga já estava acontecendo. A turba estava solta.
– Jake, não – gritei, vendo meu ex-namorado no meio da balbúrdia. Mas ele não prestouatenção. Ninguém sequer me notou quando corri para o meio da confusão, tentando tirar os garotos de cima do Lucius. Havia sangue por toda parte e punhos voando enquanto Lucius lutava sozinho contra eles. Ele era muito forte, mas não o bastante para aguentar aquilo...
– Vou matar você pelo que fez com ela – gritava Ethan Strausser ao socar Lucius. Tenteiagarrar os punhos de Ethan, mas alguém me puxou para longe, lançando-me contra uma parede. Voltei gritando para eles pararem, mas ninguém prestou atenção. Estavam embriagados de vingança, medo e ódio, ódio de alguém diferente deles.
– Parem – implorei. – Deixem ele em paz!
Lucius deve ter ouvido minha voz, porque se virou para mim, só por um segundo, e vi surpresa em seus olhos. Surpresa e resignação.
– Lucius, não – gritei, sabendo o que ele iria fazer.
Iria se destruir.
E então ele fez um movimento fatal. Virou-se para os garotos já furiosos e mostrou as presas.
A bravata de machão foi abandonada pelos agressores.
– Vampiro! – gritou Ethan, com terror e choque se misturando na voz.
– Filho da mãe... – xingou Frank Dormand, recuando, parecendo petrificado, como se derepente tivesse percebido que aquilo não era mais apenas um jogo. Ele havia liberado um poder que jamais esperara realmente, apesar de todas as suas histórias de vampiros, sites e estacas.
Ethan também se afastou cambaleando pelo piso coberto de feno, mas ainda tentando pegar algo atrás, às cegas.
Eu vi antes que ele a localizasse. A estaca. Feita em casa. Grosseira, porém fatal. Parcialmente enterrada no feno. Mergulhei para pegá-la, mas Jake também a viu e foi mais rápido. Agarrou-a e foi na direção de Lucius, que lutava para ficar de pé, pronto para se defender do lutador mais baixo, mas mesmo assim muito forte.
– Não, Jake! – gemi, me ajoelhando com dificuldade, e tentei agarrar as pernas dele, semconseguir. Lucius rosnou e avançou também.
E então, como se fosse em câmera lenta, vi meu ex-namorado levantar o braço, saltar para a frente e enfiar a estaca no peito de Lucius.
– Jake... não! – gritei. Ou pensei ter gritado. Não me lembro de ter ouvido as palavras saírem de minha boca.
E numa fração de segundo tudo estava acabado.
Jake – o garoto legal – estava junto ao corpo de Lucius. O corpo totalmente imóvel de Lucius.
– O que você fez? – esbravejei no silêncio súbito.
Jake recuou, com o pedaço de madeira pesado, afiado e sangrento na mão.
– Tinha que ser eu – disse ele, me olhando com expressão arrasada. – Desculpa.
Eu não sabia o que ele queria dizer. Não me importava.
– Lucius – gemi, cambaleando pelo feno. Desmoronei ao lado dele, tentando sentir suapulsação. Ela estava lá, porém mais fraca do que o normal. O sangue escorria por um buraco na sua camisa. Um buraco enorme. Olhei para o círculo de rostos. Rostos familiares. Garotos que eu conhecia da escola. Agora a raiva havia sumido e a consciência do que tinham feito parecia se assentar. Como puderam ter feito isso? – Chamem alguém para ajudar – implorei.
– Não, Antanasia – disse Lucius, baixinho.
Eu me curvei sobre ele, apertando gentilmente a mão no buraco em seu peito, como se pudesse parar o sangramento.
– Lucius...
– Acabou, Jessica – ele conseguiu dizer, com a voz suave. – Deixe para lá.
Uma voz forte e poderosa veio do canto mais escuro do celeiro.
– Saiam. Todos vocês. E nunca falem sobre isso. Nunca. Nada aconteceu aqui.
Dorin. Meu tio havia abandonado sua postura alegre e falava com uma autoridade inesperada enquanto emergia das sombras, caminhando com passos firmes, assumindo o controle.
Pés se arrastaram depressa no feno enquanto o grupo de adolescentes obedecia e se dispersava, correndo como se as palavras do vampiro fossem um estilingue lançando-os na noite.
De onde Dorin tinha vindo? Por que não havia chegado a tempo? Corri até ele, batendo os punhos manchados de sangue em seu peito.
– Você deixou isso acontecer! Devia ter protegido o Lucius!
– Saia, Jessica – insistiu Dorin, segurando minhas mãos. Ele era surpreendentemente forte.
A tristeza enchia seus olhos. – Esse é o destino de Lucius. É o que ele deseja.
Não. Não pode ser. Nós acabamos de nos beijar...
– Como assim, “o que ele deseja”? – choraminguei, correndo de volta para Lucius, caindode joelhos. – Nosso destino é ficarmos juntos, certo? Diga, Lucius.
– Não, Antanasia – respondeu ele, a voz fraca e sumindo. – Seu lugar é aqui. Tenha umavida feliz. Uma vida longa. Uma vida humana.
– Não, Lucius. – Solucei, implorando que ele vivesse. Ele não podia desistir. – Queroviver com você.
– Não é para ser, Antanasia.
Juro que vi lágrimas em seus olhos negros, logo antes de eles se fecharem. Comecei a gritar e depois só me lembro das mãos de meu pai me levantando, puxando-me para longe, carregando-me – lutando contra nada e contra tudo – até a Kombi. Eu não sabia quando eles haviam chegado nem como tinham me encontrado.
Não importava.
Lucius havia morrido.
Fora destruído.
O corpo desapareceu. Dorin desapareceu. E, seguindo a instrução do vampiro, ninguém mencionou o que acontecera. Era como se a coisa toda tivesse sido um sonho. Não fosse o cordão no meu pescoço, o modo como o fecho parecia queimar no ponto onde os dedos dele o haviam lacrado, talvez eu mesma não acreditasse.
CAPÍTULO 58
– E o prêmio de espírito escolar da Escola Woodrow Wilson vai para...
Faith Crosse.
Meus dedos seguraram a cerca de arame enquanto a garota responsável pela destruição de Lucius caminhava até o tablado como uma espécie de heroína, subindo os degraus sob um coro de assobios e aplausos de um mar de formandos que usavam capelos e becas azulmarinho. Sob o capelo, os cabelos louros de Faith se agitavam como uma bandeira ao vento enquanto ela recebia o prêmio e acenava para a multidão.
O entorpecimento que eu havia alimentado cuidadosamente como estratégia para enfrentar a dor, a fúria e a perda quase se despedaçou ao ver Faith ser aplaudida e não sei como me contive para não soltar um grito.
Por que vim assistir à formatura? Eu havia me recusado a participar da cerimônia, mas alguma coisa perversa dentro de mim tinha me atraído para o campo de futebol. Eu estava ali para testemunhar meus colegas de escola receberem seus diplomas. A maior parte deles eu conhecia desde o jardim de infância. Alguns haviam participado do extermínio da pessoa que eu mais amara nesse mundo. Acho que queria ver o rosto deles. Haveria algum vestígio do ato maligno cometido no celeiro? Ou teriam se convencido de que nada acontecera, como Dorin aconselhara? O que me deixava mais arrasada era pensar que um ou dois deles acreditavam que tinham feito uma coisa boa. Será que Jake sentia isso? Ele dissera naquela noite: “Tinha que ser eu.” O que isso significava?
– Antanasia. – A voz era baixa porém nítida. – Não adianta se torturar. Ainda que sonharcom vingança seja um comportamento muito típico de um vampiro.
Eu me virei e o vi.
Um vampiro ligeiramente gorducho, meio careca, a poucos metros de mim, encostado na parede de um quiosque. Usava uma camiseta azul- -marinho com o mascote da Wilson – um cachorro de aparência durona, com papada, chamado Woody – bordado no peito.
Encontrando meu olhar, o vampiro acenou.
Só de ver Dorin, alguém ligado a Lucius e àquela noite, senti vontade de vomitar. Quando meu estômago parou com os espasmos, comecei a andar feito uma zumbi.
Atrás de mim, ouvi mais aplausos enquanto Ethan Strausser ganhava o prêmio de melhor atleta.
Os aplausos pareciam vir de quilômetros de distância à medida que eu caminhava pela grama na direção de Dorin. Na direção de um passado breve porém intenso que ainda me consumia.
– Ora, ora, ora. Você está tão pálida e séria! – Dorin riu enquanto eu me aproximava. –Quase como uma vampira de verdade. – Ele me abraçou, mas fiquei rígida. Eu ainda não o perdoara por fracassar em proteger Lucius. – Por que não está se formando hoje, com os outros?
– Eles não significam nada para mim – respondi, me afastando dele.
– E no entanto está aqui!
– Dorin, esquece isso. O que você está fazendo aqui?
– Hum. – Ele franziu a testa. – É um negócio muito complicado. Muito difícil de explicar.Eu não estava a fim de nada desafiador, mas perguntei assim mesmo:
– Que tipo de negócio complicado?
– Está havendo uma disputa ferrenha na Romênia. – Dorin suspirou, evitando meu olhar. –Na verdade é uma tremenda confusão. Você não deveria saber disso, é claro. Mas não achei justo mantê-la no escuro. Provavelmente fizemos isso por mais tempo que o recomendável.
Foi ideia do Lucius. Não me culpe. Se ele soubesse que estou aqui...
Meus joelhos quase se dobraram e Dorin avançou depressa para segurar meu cotovelo.
– Firme, aí!
– Você disse... Lucius? Se Lucius soubesse que você está aqui? – Mas isso é impossível...
Lucius tinha sido destruído...
Dorin pigarreou, parecendo culpado e nervoso.
– Ele achou que seria melhor fazer a coisa ao modo dele. Mas Lucius está arrasado e ascoisas estão desmoronando na Romênia.
Agarrei Dorin pelos ombros, sacudindo-o com mais força do que jamais havia sacudido qualquer coisa na vida.
– LUCIUS... ESTÁ... VIVO?
– Ah, sim, bastante – admitiu Dorin, tentando se soltar. – Mas do jeito que as coisas vão...
É estranho como o alívio, a alegria e a fúria podem se misturar totalmente e, em circunstâncias como essas, a próxima coisa que a gente percebe é que está soluçando, gargalhando, dando socos no peito de um vampiro e empurrando-o de costas contra um quiosque.
Quando recuperei um nível mínimo de compostura fomos para casa pegar meu passaporte.
Eu estava indo para a Romênia. Para casa. Encontrar Lucius.
CAPÍTULO 59
– Então Jake se mostrou à altura do desafio, por assim dizer.
Concordou com a trama toda. Disse que até admirava Lucius, apesar de tudo. Tinha algo a ver com Lucius defender você do valentão do Frank Dormand.
– E isso bastou para convencê-lo a cravar uma estaca no peito de Lucius?
Eu estava cética.
– Bom, eu posso tê-lo ameaçado também. Só um pouquinho – confirmou Dorin. – Mas Jakeé um garoto legal. Foi uma coisa boa Lucius ter falado dele nas cartas para casa.
– Lucius tinha falado dele?
– Ah, claro – respondeu Dorin. – Ele vivia reclamando do garoto “atarracado e legal” queestava estragando toda a corte.
Legal. Aquela palavra de novo. Dessa vez me fez sorrir.
– É, Jake é um cara legal.
Se algum dia eu voltasse ao condado de Lebanon, iria agradecer a ele.
– Quer uma rosquinha?
– Não, obrigada. – Estávamos voando a uns 35 mil pés, em direção à Romênia, de volta àterra em que nasci, e Dorin me colocava a par de toda a história. Contava como havia atraído Jake num plano de última hora para cravar a estaca em Lucius, certificando-se de que Ethan Strausser ou algum outro fanático não tivesse uma chance.
Acabou que Jake quase havia ido longe demais.
– O garoto não conhece a própria força. – Dorin suspirou, sacudindo as rosquinhas queestava segurando. De algum modo tinha conseguido uns 10 sacos com a comissária de bordo. – O jovem Sr. Zinn ficou bastante apreensivo durante um bom tempo. Mas a encenação precisava ser realista. Eu disse a ele para que não se preocupasse. Tudo correu bem.
– Por que Lucius não fugiu, simplesmente?
Assim que fiz a pergunta, percebi como a ideia era absurda. Um príncipe vampiro dar as costas? Bem improvável.
– Não seja ridícula – disse Dorin, ecoando meus pensamentos. – Lucius nem gostaria desaber que meti Jake no negócio. Ele queria mesmo ser destruído naquela noite. Ficou bastante surpreso e um pouco irritado quando acordou ainda vivo. Mas superou isso.
Olhei as nuvens que passavam.
– Como Lucius pôde fazer isso comigo? Fiquei pensando que ele havia morrido! Por quenão entrou em contato?
Dorin deu um tapinha no meu braço.
– Ele achou que era melhor que você acreditasse que ele havia morrido. Lucius enxerga opróprio lado sombrio. Com muita clareza.
– Lucius é capaz de controlar esse lado dele. Só não acredita nisso.
– É – concordou Dorin. – Você e eu temos certeza de que Lucius é honrado. Qualquer umpode ver isso. Na verdade, a luta interminável de Lucius com a própria consciência é prova da força de seu lado bom. Mas Vasile tentou desviá-lo, fazer dele um peão em seus planos cruéis. Por isso Lucius aparenta desconhecer sua verdadeira natureza. Príncipe nobre ou vilão maligno? Os dois? Ele é um vampiro em guerra consigo mesmo.
Depois de um tempo, Dorin acrescentou:
– Ter comprado aquela égua, Fera, não ajudou. Lucius ficou obcecado por ela. Sentia umaligação com o animal e começou a pensar que talvez também estivesse corrompido demais para viver. Que mais cedo ou mais tarde ele faria mal...
– A mim.
– É. Ele não queria que você precisasse passar a eternidade com um monstro, no sentidomais técnico do termo. Você sabe, alguém capaz de terríveis crueldades... – Dorin deixou a frase no ar. – Mas agora ele sofre.
Olhei meu companheiro de viagem.
– Como assim?
– Lucius precisa de você. Ele sofre por você. Ele a ama. Isso é muito raro. Alguns dizem que o amor verdadeiro entre vampiros é um mito. Que somos malignos demais por natureza.
Mas Lucius ama. E ele ama você... como você o ama.
Mais do que qualquer coisa, eu queria que Lucius me amasse. Mas ainda estava magoada.
– Ele não percebeu que a coisa mais cruel que poderia fazer era me abandonar?
– Lucius achou que você se recuperaria depressa, seguiria sua vida. É isso o que os adolescentes fazem, não é?
– Mas eu não sou uma adolescente normal.
– Claro que não. – Dorin fez uma pausa. – Mas Lucius achou que lhe fez um favor. A umgrande custo para o coração dele.
Meus olhos se encheram de lágrimas, como sempre acontecia quando pensava em Lucius.
– Sinto muita falta dele.
– Claro. Mas você deve se preparar para quando o vir. O lado sombrio dele está ficandomais poderoso a cada dia. Ele destruiu Vasile, sabia?
– O quê?
Achei que não tinha escutado direito.
– Ah, sim. Quando Vasile descobriu que Lucius ainda estava conosco, e na Romênia, ordenou que ele fosse destruído por desobediência, por abandonar o pacto que deveria cumprir. Bem, Lucius entrou no castelo e disse: “Faça você mesmo, velho”, ou alguma coisa do tipo. E Vasile disse: “Seu moleque impertinente” e partiu para cima de Lucius como um lobo que avança em um cervo.
Lucius lutando com Vasile? Não parecia justo. Lucius era forte, mas Vasile era mais do que forte. Era como uma força da natureza.
– O que aconteceu?
– Lucius venceu. E, numa luta até a morte, alguém acaba morrendo.
– Ah.
Ainda que Vasile tivesse sido absurdamente cruel, era difícil imaginar Lucius mergulhando uma estaca no peito de alguém...
Dorin leu meus pensamentos.
– Lucius não tinha opção. Mas ficou quase destroçado quando a luta terminou. Não quiscomer durante dias. Mesmo assim, o que poderia ter feito? Ficar parado e deixar que Vasile o destruísse? Acho até que o garoto já havia suportado demais. O mundo é um lugar melhor com Vasile fora do caminho.
– Mas Lucius não consegue aceitar isso, não é?
– Não. Claro que não. Lucius foi criado e doutrinado para honrar a família acima de tudo.Foi ensinado desde a infância a respeitar Vasile e protegê-lo, como seu mentor e superior. Claro que Lucius vê a desobediência e, em última instância, a destruição de Vasile como mais uma prova de que é irrecuperável. Por isso age como tal.
– O que, exatamente, ele está fazendo?
Eu estava morrendo de medo de ouvir a resposta.
– Está precipitando uma guerra.
– Como?
– Nosso povo, o clã Dragomir, está furioso com o pacto. Acha que Lucius deixou vocêpara trás de propósito, com o objetivo expresso de nos negar nossa princesa e o poder compartilhado. Lucius não apenas permite que essa interpretação equivocada cresça de modo infeccioso como ele a alimenta. Ele nos incita à guerra. Já acontecem escaramuças entre os Vladescu e os Dragomir. Vampiros têm sido destruídos por outros vampiros em fúria. Milícias estão sendo formadas. Logo será uma guerra geral.
– Vampiros são destruídos porque eu não voltei com Lucius? Enquanto eu estava perdendo tempo limpando baias, meus parentes tinham o peito cravado por estacas? Por que você não foi me buscar?
Dorin se remexeu, sem jeito.
– Não sou forte como você, Antanasia. Temi a fúria de Lucius. Ele me disse que você nãodeveria ir para a Romênia, não deveria saber que ele estava vivo. Mas a situação foi longe demais. Não posso permitir que outros Dragomir sejam perdidos só porque tenho medo de desafiar o decreto dele. Precisava buscá-la.
Apertei a mão do meu tio, quase como se eu fosse o vampiro mais velho, mais experiente.
– Bem, pelo menos você fez a coisa certa no final. Prometo que farei o máximo paraprotegê-lo da “fúria” de Lucius.
– Acho mesmo que você é a única força capaz de trazer de volta o lado bom de Lucius.
Minha existência depende disso e o destino de nosso povo também. Porque numa guerra com os Vladescu... Bem, no período de paz, que começou com sua cerimônia de noivado, nós, os Dragomir, nos permitimos ficar mais brandos. Se essa guerra não puder ser evitada, temo que, apesar de toda a nossa revolta, não seremos páreo para os Vladescu.
– Até que ponto isso seria ruim para nossa família?
– Ela seria aniquilada – respondeu Dorin, em tom sinistro.
– Então, se eu não puder convencer Lucius, num último esforço, a admitir que me ama ehonrar o pacto...
– Acho que em pouco tempo os Dragomir não existirão mais. Não podemos esperar queLucius, do jeito que está agora, demonstre muita misericórdia.
Apoiei a cabeça no encosto da poltrona, procurando absorver tudo isso. Minha nova lista de coisas a fazer: controlar vampiros Dragomir furiosos. Recuperar um noivo não mais destruído porém relutante e violento. Impedir a guerra iminente.
Segurei o jaspe-sanguíneo que estava em meu pescoço. Eu enfrentaria o desafio. Não tinha escolha.
O avião encontrou um pouco de turbulência e fomos sacudidos com força várias vezes. Alguns passageiros gritaram.
Dorin segurou minha mão e sorriu.
– Bem-vinda de volta à Romênia, princesa Antanasia.
CAPÍTULO 60
Depois de tudo o que Lucius havia me contado sobre morar em castelos,
comer as melhores comidas e ter roupas feitas sob medida, fiquei meio surpresa ao me ver chacoalhando nas estradas esburacadas da região rural da Romênia num velho Fiat Panda.
– Ah, Dorin – falei, segurando o painel enquanto meu tio forçava as engrenagens a obedecê-lo mais uma vez. – Achei que fôssemos da realeza vampírica.
Dorin assentiu.
– Somos mesmo. Excelente linhagem de sangue.
– Como explica este carro, então?
– Ah. Isso. Não pense que este veículo representa nossa herança. É apenas uma manifestação temporária de nossas... é... circunstâncias reduzidas.
Ele lutou com a direção não hidráulica, tentando evitar um buraco enquanto subíamos os Cárpatos.
As montanhas da Romênia formavam um contraste violento com os Apalaches, que se erguiam delicadamente na Pensilvânia. Na verdade, os Cárpatos, íngremes, rochosos, serrilhados, fariam os Apalaches sentir vergonha de serem chamados de montanhas. De vez em quando, a estrada se dobrava sobre precipícios de tirar o fôlego e depois serpenteava em florestas densas e sombreadas – nas quais, segundo garantiu Dorin, ursos e lobos ainda viviam. Em seguida, ela emergia na claridade, cortando cidadezinhas que pareciam esculpidas em pedra e datadas da Idade Média. Cabanas tortas, pequenas capelas e tavernas movimentadas surgiam nas ruas estreitas. Eu vislumbrava essas coisas e depois, num piscar de olhos, mergulhávamos de novo na floresta.
Dava para ver por que Lucius sentia saudade de sua terra natal: as aldeias de contos de fadas; a sensação de que o tempo havia parado; a impressão penetrante de estarmos dentro de um mistério oculto; um enclave secreto, indomável, esquecido num mundo moderno.
– Segure-se – avisou Dorin, saindo da estrada principal que vinha de Bucareste e entrandonuma pista ainda mais estreita.
Fomos chacoalhando e minha cabeça bateu no teto baixo do Panda.
– Ai. Isso é mesmo o melhor que podemos ter?
– Bem, eu lhe disse. O clã andou atravessando um período difícil nos últimos anos. Vendemos a Mercedes há anos. Mas o Fiat é bastante confiável. Não tenho reclamações.
Nenhuma.
Eu tinha algumas. Como deveria assumir meu lugar de direito como princesa vampira quando meu meio de transporte era do tamanho de um carrinho de golfe, com um motor que parecia pertencer a um ventilador de mesa?
Seguimos em silêncio por um bom tempo, até chegarmos à crista de uma encosta que revelou, abaixo de nós, a distância, um grande agrupamento de telhados de terracota reluzindo ao pôr do sol.
– Sighişoara – anunciou Dorin.
Inclinei-me para a frente, espiando pelo para-brisa com olhos ansiosos. Então tínhamos chegado, finalmente, à terra natal de Lucius. Era aqui que ele havia crescido, se tornado o homem que eu tinha aprendido a amar.
– Vamos passar por lá?
– Vamos – disse Dorin. – Como quiser.
Eu havia notado que a postura do meu tio tinha mudado um pouco desde o pouso em Bucareste. Ele estava mais formal comigo. Com mais deferência. Pensei em dizer a ele que não precisava me tratar como uma princesa só porque não estávamos mais nos Estados Unidos. Então percebi que era melhor deixar quieto: eu iria assumir meu posto. Precisaria de deferência, precisaria emanar autoridade se quisesse alcançar o que pretendia. Estava num Fiat Panda, mas mesmo assim era uma princesa.
– Por favor, mostre-me – insisti.
– Claro.
Dorin nos levou ao coração da cidade e fiquei olhando, encantada, para passagens em arcos de pedra que levavam a becos sinuosos e lojas atulhadas cujos produtos – pães, queijos, frutas e legumes – chegavam até as calçadas. Reparei na torre do relógio, do século XVII, que soou enquanto passávamos: seis horas.
A cada ponto que captava minha atenção, eu ficava pensando: será que Lucius teria caminhado por essa rua? Comprado naquela loja? Ouvido o toque profundo do relógio, percebendo que precisava estar em algum lugar, passando o corpo alto sob um daqueles arcos de pedra para chegar a um compromisso num caminho oculto? Este era um lugar onde Lucius não pareceria deslocado, nem mesmo com seu sobretudo de veludo e sua calça bem cortada.
– Está com fome? – perguntou Dorin. – Poderíamos dar uma paradinha, antes que todos oscomerciantes fechem para o fim do dia.
– São só seis horas – observei. – É, tipo, um costume local fechar tão cedo?
Dorin parou o carro junto ao meio-fio.
– Não. Nem sempre é assim. Mas o povo desta região viveu na companhia de vampirospor muitas gerações. Eles estão sempre atentos aos clãs. Ouviram boatos da proximidade de uma guerra e sabem que haverá vampiros sedentos e furiosos, procurando o combustível do sangue e recrutas para nossos exércitos de mortos-vivos. Eles não ficarão nas ruas depois de anoitecer sem que haja um bom motivo.
Senti arrepios. Ainda que agora eu também fosse membro do clã dos vampiros, com certeza era capaz de simpatizar com os temores dos residentes.
– Então até o povo comum é afetado pela tensão...
– É, sim. Eles lamentam o fim de quase duas décadas de paz. Durante um tempo parecíamos ter alcançado uma trégua com os humanos também. Isso foi em grande parte graças a Lucius. Ele era um bom embaixador para nós. Tão charmoso... Mesmo os que faziam o sinal da cruz ao ouvir o nome Vladescu eram incapazes de não gostar dele. Mas agora, é claro, sabem que ele mudou.
Dorin me levou para um pequeno restaurante, abrindo a porta e apontando uma sala apertada e estreita. A decoração era simples – algumas mesas velhas espalhadas sobre o piso de madeira –, mas o cheiro era maravilhoso.
– Vamos pedir papanaşi: bolinhos de queijo cobertos de açúcar. Uma iguaria local.
– Queijo com açúcar?
– Eu comi o bolo de aniversário vegano – observou Dorin. – Confie em mim, esses daquiganham de lavada.
Eu não podia questionar.
Chegamos ao balcão e o velho proprietário se levantou de um banco com esforço, cumprimentando Dorin.
– Bună.
– Bună – assentiu Dorin. E levantou dois dedos. – Doi papanaşi.
– Da, da – disse o velho, começando a se afastar arrastando os pés.
Então ele me notou e parou abruptamente, com o rosto moreno e desgastado pelo tempo ficando pálido. Apontou para mim com a mão trêmula, os olhos arregalados virando-se para Dorin.
– Ea e o fantoma...
– Nu e! – Dorin balançou a cabeça. – Não é um fantasma!
– Ea a Dragomir! – insistiu o velho. – Mihaela!
Entendi as palavras Mihaela Dragomir e o assunto da conversa, por mais que a língua fosse desconhecida.
– Da, da – concordou Dorin, parecendo ficar impaciente com o homem, dispensando-o. – Comanda, vărog. Nossa comida, por favor.
O homem saiu cambaleando, mas continuou a olhar para mim por cima do ombro enquanto preparava nossos papanaşi.
– Ele se lembra da sua mãe – sussurrou Dorin. – Acha que você é o fantasma dela. O fantoma. É melhor se acostumar com isso.
Fiquei ao mesmo tempo lisonjeada e um tanto incomodada em ser confundida com minha mãe biológica. Percebi, com um tremor, que aquele sujeito acreditava, sem qualquer dúvida, que eu era uma vampira. Ele fora criado na realidade vampiresca. Era vivo quando meus pais foram destruídos. Talvez tivesse participado... Por meio do olhar cheio de suspeita do homem, eu soube que eu não era apenas uma curiosidade, mas uma ameaça potencial. De repente me senti vulnerável, no alto dos Cárpatos, longe da proteção de mamãe e papai, sozinha num restaurante claustrofóbico com um tio que eu mal conhecia e um estranho que me considerava um monstro sugador de sangue que merecia ser exterminado.
O velho entregou nossa comida a Dorin e meu tio pagou com algumas moedas. O proprietário continuou a me olhar cauteloso.
– Venha – disse Dorin, guiando-me para a porta. – Tente não se abalar com isso. É claroque algumas pessoas mais velhas vão reconhecê-la. É igualzinha a ela. Vai demorar um tempo até que eles entendam que você é a filha e que voltou para casa.
Saímos do restaurante e olhei para a rua, tentando pensar naquele local desconhecido como se fosse “casa”.
– Precisamos ir – disse Dorin. – Está escurecendo e a estrada é perigosa.
Acomodei-me no carro e experimentei o papanaşi, mordendo o bolinho com a crosta de açúcar para liberar o queijo quente, derretido.
– Hummmmm...
Fechei os olhos e saboreei aquela delícia, mais corajosa e reconfortada com a comida quente no estômago.
– Gostou?
Dorin pareceu satisfeito. Engrenou o carro e saiu para a rua, que agora estava quase vazia.
– Muito bom – respondi, enfiando a mão no saco de papel para pegar outro. – Bem melhordo que bolo vegano.
– É o doce predileto de Lucius, sabia? E ele prefere o daquela loja, em particular.
Lambi devagar o açúcar dos dedos, olhando a cidade passar pela janela. Lucius poderia estar lá. Eu poderia ter entrado naquela loja e visto o homem por quem eu tinha ficado de luto.
– Lucius mora aqui perto? – perguntei. – A que distância estamos, exatamente? Minutos?Meia hora?
– Estamos muito perto – disse Dorin, me olhando. Ele parecia meio nervoso. – Você...você não está pensando em passar por lá, está?
– Só para ver a casa dele. – Uma apreensão súbita tomou conta de mim. Apreensão eempolgação. – Acha que ele vai estar lá? – Eu quero que ele esteja lá? Estou pronta?
– Não creio – supôs Dorin, e senti uma pequena onda de alívio. Por mais que quisessemuito ver Lucius, sabia que primeiro deveria me preparar. Precisava não apenas tomar um banho depois da viagem, mas tinha que me preparar mentalmente. Ficar firme para encarar o Lucius que Dorin havia descrito no avião. O Lucius que tinha destruído o tio, que estava precipitando uma guerra e apavorando os moradores do local. O Lucius que se acreditava capaz de aniquilar minha família sem piedade.
– Ultimamente ele tem saído muito com suas tropas – acrescentou Dorin. – Para o campo.
– Nós estamos nos preparando? – indaguei, preocupada com essa última revelação.
– Um pouco... Não, na verdade, não. Não de um modo organizado, como Lucius. Ele é umguerreiro que está criando um exército. Nós somos mais como os colonizadores americanos: vampiros dedicados, ainda que despreparados, formando milícias informais.
Admirei a paisagem áspera. Quanto mais penetrávamos nos Cárpatos, mais eu reconhecia as montanhas dos meus sonhos. Podia escutar a voz da minha mãe biológica, cantando para mim. Sendo silenciada. Era um lugar lindo, mas também era um lugar duro, indomado.
– Vamos precisar de mais do que “milícias informais” – murmurei, olhando para a escuridão que crescia do lado de fora da janela. – Devemos nos preparar também. – Se pelo menos eu soubesse o que isso significava. Se tivesse sido criada como guerreira e não como uma vegetariana numa fazenda cheia de gatos desgarrados. Será que posso mesmo ajudar meus parentes Dragomir?
– Olhe para cá – sugeriu Dorin, parando o Fiat no acostamento.
Virei-me no banco e prendi o fôlego, surpreendida por uma enorme construção de pedra. O edifício fantasmagórico onde Lucius havia crescido, onde fora ensinado por meio da violência, criado com histórias de sua linhagem de vampiros e onde ganhara uma consciência feroz do local orgulhoso ocupado pelos Vladescu no mundo.
– Uau!
Estávamos na beira de um precipício, acima de um vale tão íngreme, profundo e estreito a ponto de parecer que um gigante o havia criado com um golpe feroz de uma foice com uma lâmina de um quilômetro. O castelo de Lucius, negro contra o pôr do sol laranja, agarrava-se à encosta do lado oposto, parecendo gadanhar em direção ao céu. Torres parecendo lanças enormes querendo furar as nuvens, janelas góticas abobadadas. Era uma casa furiosa. Uma casa em guerra contra o Universo.
Lucius morava mesmo ali?
Estacionamos o carro e fomos andando até a beira do penhasco para examinar melhor aquela expressão arquitetônica de raiva, que mais parecia os dentes tortos de uma fera.
– Impressionante, hein? – perguntou Dorin.
– É. – A palavra apertou minha garganta. Olhando para aquela casa, fiquei apavorada. Eraridículo sentir medo de uma construção, no entanto, a visão daquele castelo me provocou um temor intenso.
Estou com medo da casa ou da pessoa que aguenta morar nela?
Enquanto Dorin e eu olhávamos, uma luz se acendeu atrás de uma das janelas. Uma única luz numa janela do alto.
Meu tio e eu trocamos olhares.
– Podem ser serviçais – concluiu Dorin. – Ou talvez o garoto tenha vindo passar a noite emcasa.
– Vamos embora – pedi, agarrando o braço do meu tio. Vamos antes que eu faça algumacoisa idiota. Tipo correr para aquele castelo e bater à porta. Ou fugir direto para o condado de Lebanon sem olhar para trás. – Por favor, eu quero ir.
– Estou logo atrás de você – concordou Dorin, indo depressa para o carro.
CAPÍTULO 61
A boa notícia era que o clã Dragomir também tinha sua propriedade bem
impressionante. A má notícia era que ela estava aberta aos turistas quatro dias por semana. Essa era outra manifestação de nossas “circunstâncias reduzidas”, como Dorin gostava de chamar o que, aparentemente, era uma dificuldade econômica grave.
– As visitas só começam às 10 da manhã – tranquilizou-me Dorin, ajudando a levar minhamala para nossa mansão úmida. Ele desviou de uma placa de metal que instruía aos visitantes: “PROIBIDO FUMAR! PROIBIDO TIRAR FOTOS COM FLASH!” numas sete línguas. – Estamos muito populares este ano – acrescentou Dorin, como se isso fosse algo ótimo. – As autoridades do turismo da Romênia aumentaram bem a publicidade. O tráfego de carros aumentou 67 por cento.
Minha nossa.
– Claro que há áreas privativas – acrescentou ele, vendo meu desapontamento. – Os quartos e banheiros estão quase todos fora do circuito de visitas. Se bem que alguns americanos conseguem achar os toaletes privativos. Acho que estranham a comida. De qualquer modo, não se assuste se abrir uma porta e encontrar um dos seus conterrâneos empoleirado por lá.
Turistas? Entrando no meu castelo? Aposto que ninguém entrava sem autorização na propriedade dos Vladescu.
– Dorin?
– Sim?
Ele arrastava minha mala por uma escada alta e curva, feita de pedra. A lâmpada numa tocha falsa tremeluzia na parede, imitação barata do fogo de verdade que eu tinha quase certeza de que ardia na casa de Lucius. Ele não aceitaria nada menos do que a coisa de verdade. De novo acariciei o jaspe-sanguíneo em meu pescoço e a palavra inaceitável relampejou na minha mente. Isso era inaceitável. Se as coisas acontecessem como eu esperava e se eu vinha mesmo para liderar essa família, iria reivindicar nosso castelo para os Dragomir e não para turistas. A ideia me empolgou de forma surpreendente. Quando chegamos ao patamar mais elevado, examinei os tetos abobadados, os corredores que já haviam sido majestosos. É, poderíamos dar uma melhorada.
– O que acontece agora? – perguntei a Dorin, acompanhando-o pelo corredor e entrandonum quarto gigantesco.
Dorin largou a mala no chão.
– Você precisa conhecer a família. Todos estão muito ansiosos para jantar com você. Elesvão chegar logo.
Imagens da “família” de Lucius me vieram à mente.
– Quantos virão? – perguntei, esperando não ter que confrontar um número muito grande demeus parentes vampiros de uma vez.
– Ah, só uns 20 parentes mais próximos. Achamos que não seria sensato sufocar você emseu primeiro dia aqui, mas, todo mundo está curioso para ver nossa herdeira há muito esperada. Acho que vai querer tomar banho, não é? Trocar de roupa? – sugeriu Dorin.
– Vou – respondi, aproveitando a oportunidade para ficar sozinha por um momento. Pararefletir. Para me concentrar. Isso tudo estava acontecendo depressa demais. Eu precisava pensar.
Dorin andou pelo quarto acendendo luzes. O espaço era empoeirado, datado e frio, mas habitável. Não estava distante demais de sua glória anterior.
– Espero que se sinta confortável aqui – disse Dorin, jogando minha mala na cama dedossel. – Vou voltar para buscá-la dentro de uma hora. Tire um cochilo, se quiser.
– Obrigada.
– Ah! Quase esqueci. – Dorin foi até um grande guarda-roupa, abriu a porta e tirou umvestido pendurado num cabide. Estava um pouco desbotado mas ainda era lindo. A seda que sem dúvida já reluzira carmim havia se suavizado num vermelho mais fechado. – Isso era da sua mãe. Achei que talvez você quisesse usá-lo para o jantar. É de fato uma ocasião importante e nós partimos tão depressa que não lhe dei chance de pôr na mala um traje formal.
Como se estivesse num transe, fui até Dorin e passei as pontas dos dedos pelo tecido.
– Reconheço isso. Da fotografia.
– Ah, sim, do retrato. – Dorin sorriu. – Mihaela tinha muitos vestidos, mas este era seufavorito. Ela adorava a cor intensa, tão parecida com sua personalidade. Usou-o em muitas reuniões adoráveis, numa época diferente, antes do expurgo... – Por um momento ele pareceu a ponto de chorar, mas depois se animou. – Você fará justiça a ele, Antanasia, e trará uma nova era para nós. Talvez todos sejamos felizes outra vez, em breve. E talvez o maior sonho de sua mãe, a paz entre os Vladescu e os Dragomir, se concretize afinal.
Acariciei o tecido de novo.
– Mas não tem problema eu usar esse vestido?
– É mais do que apropriado – garantiu Dorin. – É perfeito.
Então ele me deixou sozinha e coloquei o vestido na cama com delicadeza. Eu usava o colar dela, ia pôr seu vestido e estava em sua casa. Mas como poderia me mostrar à altura do legado de Mihaela Dragomir? Será que eu era uma princesa de verdade ou somente um fantasma – uma sombra pálida e superficial dela –, como acreditara o homem do restaurante?
Dúvidas não vão ajudar agora, Jess. Lucius acreditava que você era exatamente como ela, em todos os sentidos...
Encontrei o banheiro, tirei a calça jeans e a blusa que havia usado na viagem e tomei um banho de chuveiro longo e quente. Depois de me secar, peguei o vestido do cabide, abri a fileira de botões de madrepérola que descia pelas costas e o vesti, puxando-o em volta do corpo como um abraço do passado. Um abraço que ficara da minha mãe.
Servia perfeitamente. Como se tivesse sido feito para mim.
Eu me olhei num espelho dourado que ficava no canto do quarto, vendo o reflexo à luz de uma lua cheia, clara, que brilhava como um farol através de uma série de janelas de vitral.
Era assim que Mihaela se via? À luz desta lua? Neste mesmo espelho?
A gola do vestido era alta, chegando quase a roçar no queixo, mas o decote mergulhava fundo, emoldurando o jaspe-sanguíneo no pescoço. O vestido se curvava sobre os seios, depois caía abruptamente como uma cachoeira despencando num penhasco dos Cárpatos, terminando numa enorme cauda de seda que farfalhava como um sussurro quando eu andava. Sussurros que sem dúvida seguiam qualquer mulher que ousasse usar aquele vestido imponente.
Esse era um vestido que dizia muito sobre a mulher que o usasse. Dizia a todo mundo que a visse: “Sou poderosa e linda e é impossível alguém não olhar para mim. Eu serei notada.”
Eu não tinha nenhuma tiara de prata, por isso juntei os cachos frouxamente atrás do pescoço e deixei que caíssem livres pelas costas, preto lustroso sobre o tecido vermelho lustroso, declarando minha posse mais jovem, mas ainda dramática, sobre o vestido.
A jovem que eu via refletida no espelho, com olhos escuros brilhando ao luar, parecia mesmo uma princesa.
Forte. Decidida. Destemida.
Houve uma batida à porta e Dorin me chamou.
– Seus convidados chegaram. Você está pronta?
– Pode entrar – convidei.
Dorin enfiou a cabeça no quarto e seus olhos alegres e enrugados se arregalaram. Por um longo momento ele apenas me encarou, dizendo por fim:
– É. Você está pronta.
Depois ficou de lado, permitindo que eu passasse pela porta. Notei que ele fez uma pequena reverência.
CAPÍTULO 62
Eles estavam me esperando ao pé da escadaria curva, todos os rostos
voltados na minha direção enquanto eu descia, e vi seus olhares mudando de ceticismo e preocupação para admiração e espanto – e esperança. E o fato de estarem começando a acreditar em mim me deixou confiante, ainda que também me aterrorizasse.
Quem sou eu para ser a salvação de alguém? A princesa de alguém?
Você é filha de Mihaela Dragomir. Linda, poderosa, majestosa... As afirmações de Dorin e de Lucius ecoaram de novo na minha mente, me dando coragem.
Um a um, meus parentes vampiros se aproximaram para me conhecer depois que parei ao pé da escada. Dorin os apresentou e, enquanto cada um dos Dragomir – primos próximos e distantes – chegava perto para fazer reverências, vi traços meus na curva de um nariz, no arco de uma sobrancelha, nas maçãs do rosto. Eles usavam roupas de qualidade, mas notei que os vestidos eram um pouco ultrapassados e os ternos, às vezes mal ajustados. O que foi feito de nós desde a destruição dos meus pais?
– Venham – chamou Dorin quando todos havíamos sido apresentados. – Vamos jantar.
Fui à frente de um pequeno cortejo até uma sala de jantar comprida e de pé-direito alto, gélida apesar de um fogo que ardia numa lareira gigantesca, e, seguindo a indicação de Dorin, reivindiquei meu lugar à cabeceira de uma mesa reluzente de pratarias e velas. Nós, os Dragomir, estávamos em grandes dificuldades econômicas, mas todos os cofres pareciam ter sido abertos para o meu retorno.
– Sente-se, sente-se – disse Dorin, baixinho, puxando minha cadeira. – Devo dizer queprecisarei servi-la. Estamos com poucos serviçais e é difícil atrair alguém do povoado na situação atual. Ninguém quer trabalhar até tarde na propriedade dos Dragomir.
– Tudo bem – tranquilizei-o, ocupando meu lugar.
Brindes eram feitos a mim, em romeno, e Dorin os traduzia. À minha saúde... ao meu retorno... ao pacto... à paz.
Um murmúrio circulou ao redor da mesa quando o último brinde foi feito e Dorin se inclinou para falar comigo.
– Querem ouvir você falar. Estão ansiosos demais para comer. Deve contar seus planos aeles.
Pela primeira vez desde que tinha posto o vestido de seda vermelho e começado a assumir meu novo papel na realeza, senti um choque de pânico genuíno. Não preparei um discurso. Deveria ter preparado alguma coisa. O que posso dizer a eles? Meu Deus, o que planejo fazer?
– Não posso – sussurrei a Dorin, inclinando-me para perto dele. – Não sei o que dizer.
– Você deve falar, Antanasia – implorou Dorin. – Eles esperam por isso. Vão perder aconfiança se você não disser nada.
Confiança. Não posso me dar ao luxo de perder a confiança deles. Assim, fiquei de pé, encarei minha família e comecei:
– É uma honra estar com vocês esta noite, de volta ao nosso lar ancestral... – O que mais posso dizer? – Faz muito tempo.
Dorin traduzia para os que não falavam inglês, olhando-me de vez em quando com algo mais do que consternação nos olhos. Sabia que eu lutava. Ao olhar para meus parentes em volta da mesa, vi a dúvida se esgueirar de volta para a mente deles também. Eu estava perdendo sua confiança tão depressa quanto a havia adquirido.
– Pretendo garantir que o pacto seja honrado – acrescentei. – Como sua princesa, prometoque não irei decepcioná-los.
– Diga-me, Jessica – começou alguém. Uma voz profunda.
Ah, graças a Deus... uma pergunta.
– Sim?
Examinei os rostos à minha frente, tentando encontrar quem falava à luz fraca das velas.
– Como você pretende manter o pacto? Impedir a guerra? Porque, pelo que sei, os Vladescu não têm mais interesse no que foi acordado.
A voz vinha por trás de mim. A voz familiar.
Eu me virei, derrubando a cadeira, e vi Lucius Vladescu parado junto à porta, encostado no portal, braços cruzados diante do peito, um sorriso amargo no rosto.
– Lucius.
Meu coração parou no peito e todo o sangue sumiu do meu rosto. Era Lucius. Vivo. Parado a menos de cinco metros de mim. Quantas vezes eu tinha sonhado em vê-lo de novo? Sonhado em tocá-lo? Quantas vezes esses sonhos quase haviam me devastado com sua impossibilidade? Mas agora ele estava tão perto...
Seu sorriso sumiu, como se ele não conseguisse manter a postura friamente irônica ao me ver, e eu o ouvi murmurar:
– Antanasia...
Nessa única palavra percebi saudade, alívio, ternura e ânsia. As mesmas emoções que eu estava experimentando. Ele hesitou, inseguro, com uma das mãos estendida como se fosse se aproximar de mim.
– Lucius – repeti, olhando para ele, como se a realidade de sua existência fosse penetrandodevagar. – É você mesmo.
Quando falei isso, a mão de Lucius baixou ao lado do corpo e ele recuperou o sorriso irônico.
– De fato, só existe um – disse em tom azedo, com todos os traços de ternura sumindo. – Eo mundo é melhor assim.
Comecei a correr para ele, quase tropeçando na cauda do vestido. Quis me lançar contra ele, derrubá-lo e beijá-lo de novo pela pura alegria de vê--lo. E depois gritar com ele por ter mentido e me abandonado. Mas então vi seu rosto de perto e parei, no meio do caminho.
– Lucius?
Parecia que ele havia envelhecido anos naqueles poucos meses em que ficamos longe um do outro. Todos os vestígios do adolescente americano haviam desaparecido – e não apenas porque ele tinha voltado a usar a calça feita sob medida e o sobretudo de veludo. O cabelo preto estava mais comprido, puxado num rabo de cavalo descuidado. A boca estava mais contraída. Os ombros haviam se alargado. Uma sombra de barba cobria o queixo geralmente bem raspado. E os olhos estavam mais negros do que nunca, quase como se não tivessem alma por trás, animando-os.
Atrás de mim, os Dragomir pareceram congelados por encontrarem o inimigo em seu próprio território.
– A segurança é um tanto relapsa – observou Lucius. Em seguida se afastou do portal epassou por mim, entrando na sala, sem me encarar, avaliando os móveis desgastados pelo tempo com o mesmo desdém que havia exibido meses antes na cozinha de nossa fazenda. Só que dessa vez não parecia apenas arrogante, à maneira inocente de alguém que não conhece nada além de privilégios, e sim deliberadamente desdenhoso. – Eu ia me inscrever para a visita turística – acrescentou. – Mas não podia esperar até as 10 da manhã para vê-la, Jessica.
Encarei-o com uma mistura de consternação e fúria. Ele sabia que usar meu nome americano era um insulto nesse lugar.
– Não fale desse jeito comigo – avisei. – Isso é cruel e você não é assim.Ele continuou se recusando a me encarar.
– Não sou?
– Não.
Fui em sua direção, sem querer aceitar que ele controlasse cada instante de nosso encontro. Isso não era um baile de escola, onde ele poderia assumir a liderança. Ele estava na casa da minha família. Por mais abalada que eu estivesse por vê-lo de forma tão inesperada, por encontrá-lo tão alterado, eu não seria acovardada, como meus parentes atrás de mim, que tremiam nas cadeiras.
– Você não é cruel, Lucius.
Agora estávamos parados perto um do outro, próximos o suficiente para que eu sentisse o cheiro daquele perfume exótico que ele havia parado de usar em algum momento de sua transformação em estudante americano. Lucius, o príncipe guerreiro, estava de volta, em todos os aspectos. Ou pelo menos ele queria que eu acreditasse nisso.
– Por que você veio? – perguntou Lucius, baixinho, de modo que meus parentes não ouvissem. Continuou sem me encarar. – Deve ir embora, Jessica.
– Não. Não, Lucius. Eu não vou embora.
Então ele se virou para mim e houve um clarão de sofrimento, de humanidade em seus olhos, porém foi momentâneo, e ele andou ao meu redor, colocando outra vez distância emocional e física entre nós. Dava para ver que ele lutava para manter as emoções sob controle. Para me manter longe. Pelo menos eu esperava que ele estivesse lutando.
– Você esteve observando minha casa – disse ele, andando em volta da mesa como umfalcão procurando o coelho que não teve o bom senso de ficar imóvel. Enquanto passava atrás de cada um dos meus parentes vampiros, eles se encolhiam visivelmente. Desejei que parassem de fazer aquilo.
– Como você soube?
– Na véspera de um conflito é sensato ficar alerta – aconselhou Lucius, a voz ainda maisdura enquanto falava de guerra, assumindo seu papel de general. Afastando-se de mim. – É óbvio que tenho guardas no perímetro da minha propriedade. Sua família me incomoda o tempo todo, reclamando do pacto não realizado, afirmando que nunca desejei compartilhar o poder. E quanto mais eles se queixam, mais eu percebo: por que dividir o que posso tomar à força? Não sou avesso a um pouco de derramamento de sangue, se isso levar aos meus objetivos.
– Lucius, você não está falando sério.
– Estou – respondeu Lucius, com as mãos nas costas da cadeira de Dorin. Meu tio tremeupor inteiro. Eu sabia que ele estava aterrorizado com a possibilidade de Lucius destruí-lo, ali mesmo, por ter me trazido à Romênia. – Você já me viu brincar com algo relacionado ao poder alguma vez, Dorin?
Meu tio não disse nada.
Lucius se inclinou, falando no ouvido dele.
– Vou cuidar de você mais tarde, por ter me desafiado e trazido-a para cá.
– Fique longe dele – ordenei. – Você veio aqui para me ver. Não atormente minha famíliaem nossa casa.
Lucius examinou a sala de novo.
– Quando tudo isso for meu, precisarei fazer algumas mudanças sérias. Permitir visitasturísticas?! Isso envergonha todos os vampiros!
Encarei-o, recusando-me a parecer perturbada ou até mesmo lacrimosa pelo modo insensível como ele agia. O Lucius à minha frente estava ainda mais gelado e inacessível do que havia ficado depois que Vasile ordenou que ele fosse espancado. Lucius... onde está o meu Lucius?
– Quero que saia agora, Lucius – exigi, deliberadamente calma. – Não falarei com vocêenquanto estiver assim.
Ele arqueou as sobrancelhas.
– Este não foi o encontro que você esperava, Jessica? Não foi para isso que viajou milhares de quilômetros? Está desapontada ao descobrir que sua família é fraca e que seu ex-noivo está mais desprezível do que nunca?
– Você não vai me fazer odiá-lo. Não importa quanto se esforce. Sei o que está fazendo.
Sei que está tentando me afastar. Acha que não tem mais redenção porque destruiu Vasile. Está convencido de que é igual a ele ou pior, porque traiu sua família. Mas você não é como Vasile. – Ousei acariciar seu braço. – Eu conheço você.
Lucius se afastou.
– Não me toque desse jeito, Antanasia!
– Por que não? – perguntei, baixando a voz para que minha família não ouvisse. – Porquetem medo de perder o controle, como aconteceu no meu quarto, lá em casa?
– Não – reagiu ele. – Porque tenho medo de perder o controle como aconteceu com meutio.
– Lucius, você precisou fazer aquilo.
Quando falei isso, seus olhos se modificaram e ele encarou meus parentes, que, ainda sentados num silêncio inquieto, observavam nossa conversa.
– Venha comigo. – Ele agarrou meu cotovelo com a mão firme e me conduziu pela sala,para longe do alcance da audição da minha família. – Estamos falando de coisas particulares na frente dos outros. Não está certo.
Paramos diante da lareira e a luz lançava sombras suaves e trêmulas na face de Lucius, fazendo-o parecer mais jovem de novo. Quase toquei seu rosto. Mas seus olhos continuavam distantes demais. Negros demais.
– Vou lhe dizer uma coisa e depois você vai fazer as malas e ir para casa, Jessica.
– Não vou...
– Você acha que me conhece – disse ele, passando por cima da minha objeção, aindasegurando meu braço. – Por algum motivo, apesar de eu tê--la abandonado, apesar de obviamente eu querer que pensasse que eu havia partido, você se agarra a alguma esperança inútil de que haja um futuro para nós. É hora de acabar com isso, de uma vez por todas, porque não estamos mais na civilizada Pensilvânia, frequentando o ensino médio, brincando de guerra numa quadra de basquete. Isto aqui é uma guerra, Jessica.
– Não precisa ser, Lucius. Eu sei que você me ama.
– Os Vladescu jamais agiram de boa-fé, Jessica – continuou Lucius, a boca numa expressão séria. – Nós tínhamos um plano. Para você.
– Um... plano?
– É. Eu deveria conquistá-la, casar-me com você, uma garota inocente, uma adolescenteamericana ignorante da cultura dos vampiros, e trazê-la de volta para a Romênia. Com o pacto realizado, nós esperaríamos um tempo razoável até que ninguém pudesse acusar os Vladescu de violar nossa parte da obrigação...
– E então?
Eu já sabia.
Lucius me encarou com intensidade.
– E então teríamos despachado você com discrição. Em segredo. Agindo como se lamentássemos sua perda, porém silenciosamente satisfeitos por termos a última e inconveniente princesa Dragomir fora do caminho.
– Não, Lucius. – Balancei a cabeça, horrorizada. Eu não iria acreditar naquilo. – Você nãofaria isso.
– Ah, Antanasia. Você ainda é tão ingênua! Acha que os Vladescu algum dia pretenderampartilhar a soberania com um inimigo?
Não. Claro que não pretenderam.
– Como... como isso deveria acontecer?
– Não fui informado desses detalhes. Mas talvez pela minha mão. Eu teria muitas oportunidades, sozinho com você em nosso castelo.
Não, Lucius. Você, não.
Ele olhou para o fogo.
– Para nós era perfeito demais o fato de você haver sido criada nos Estados Unidos. Natentativa de mantê-la em segurança, os Dragomir acabaram condenando-a. Uma verdadeira princesa vampira teria entendido os riscos de se casar comigo. Poderia ter se protegido, permanecendo sempre alerta. Mas você teria vindo para mim de boa vontade, sem suspeitar de nada.
Respirei com dificuldade, obrigando-me a não gritar, sabendo que meus parentes não estavam longe. Eu precisava manter a compostura, ainda que a traição me partisse ao meio.
– Você sabia de tudo isso quando foi para a casa dos meus pais? Quando estava morandocom a gente? Quando me beijou?
Lucius também tinha consciência da plateia. O sofrimento que penetrou seus olhos não se refletia na postura régia.
– Ah, Antanasia... quando eu soube? Desde o início? Ou perto do fim? Não tenho certeza.Talvez eu fosse ingênuo no início. Ou talvez só me enganasse, recusando-me a enxergar a verdade. Mas chegou um momento, antes de eu beijar você, em que eu soube que era cúmplice.
Contive um soluço, engolindo em seco e mantendo a postura.
– Não acredito em você.
– Não faz sentido, Antanasia? – Ele olhou para minha família. – Olhe para eles. Os Dragomir estão reduzidos. Vasile poderia tê-los enganado e controlado com facilidade, sem perder um único Vladescu. Sem uma guerra. O único sangue derramado seria o seu. Você seria sacrificada no interesse do golpezinho de Vasile.
– Essa era a ideia de Vasile – observei, desesperada para não acreditar que Lucius seriacapaz de me destruir. Ele gostava de mim. Eu senti isso em seu beijo, vi em seus olhos. Mas ele é perigoso, Jessica. Ele não deseja ser um Vladescu, mas talvez não consiga deixar de sê-lo. – Esse era o plano de Vasile – repeti. – Não o seu.
– E quando vi a trama em sua totalidade, fiquei empolgado com a genialidade simples. Issoa deixa revoltada, Jessica? Porque deveria.
– Você não teria me destruído, Lucius – insisti. – Você me ama. Sei que ama.
Lucius balançou a cabeça.
– Só o bastante para lhe dizer que eu a teria destruído. Isso é o máximo que posso oferecer. Agora vá para casa, Jessica. Vá para casa e me despreze. Tive esperança de deixála com uma lembrança mais feliz de mim. Mas você veio para cá e agora não posso fazer nem mesmo isso.
– Não vou embora, Lucius. Nem que seja por minha família. Os Dragomir precisam demim.
– Não, Antanasia. Você não lhes dá nada além de falsas esperanças. Olhe para você. – Seuolhar viajou por toda a extensão do meu corpo e de novo seus olhos voltaram à vida, dessa vez com admiração profunda. Admiração que eu tinha visto antes. – Você é linda. Impressionante. Inspiradora. Eles vão lutar com mais força, achando que fazem isso por sua princesa que voltou. Pensando que você foi prejudicada pelo fracasso do pacto, quando, na verdade, eu salvei sua vida ao violar o pacto. Eles continuarão a acreditar que foram enganados pela falsa promessa de paz e poder compartilhado e vão se unir para lutar por você. Mas, no fim, os Vladescu vencerão. Não prolongue a agonia nem aumente as perdas deles.
– Eles já estão com raiva – observei. – Não posso mudar isso. Eles também querem umaguerra, a não ser que o pacto seja cumprido.
– Se disser para se renderem a mim, eles farão isso. Você é a líder. Diga para se submeterem a mim e depois vá para casa.
Hesitei por um momento, pensando naquela barganha que só teria vantagem para um dos lados. Se eu mandasse os Dragomir cederem, talvez eles cedessem mesmo. Eu era a líder deles. Poderia salvar vidas. Passei os dedos no jaspe-sanguíneo no pescoço, ouvindo minha mãe biológica. Não faça isso, Antanasia... Não permita que seu primeiro ato seja de submissão, nem mesmo a Lucius.
– Não – respondi com firmeza. – Você destruiu o pacto. Você será responsabilizado porarruinar a paz e os Dragomir não vão se ajoelhar diante de um... de um valentão de escola.
Lucius riu disso, uma pequena sombra de seu antigo sorriso de zombaria.
– É o que você pensa a meu respeito, Jessica? Que sou um valentão, como o patético FrankDormand?
– Você é pior.
Seu sorriso ficou triste.
– Sou mesmo. Frank, apesar de todos os defeitos, apesar de todas as crueldades, nuncasequer sonhou em destruir uma mulher tão magnífica quanto você.
Eu ainda lutava para encontrar as palavras certas quando Lucius me deu as costas e nos deixou.
CAPÍTULO 63
Depois de minha família ter ido embora, sem que nenhum de nós tivesse
sequer tocado no banquete preparado com capricho para comemorar meu retorno, fui para o meu quarto, onde fiquei sentada por várias horas numa cadeira ao lado das janelas de vitral, apenas observando a escuridão. Não conseguia nem pensar em dormir.
O que posso fazer para salvar minha família? Para salvar Lucius? Ainda posso salvar Lucius ou ele está realmente além da possibilidade de redenção, como acredita?
Lá fora um lobo uivou nas montanhas. Eu nunca tinha escutado um lobo de verdade uivar, só nos filmes ou na TV, e o som, atravessando a vastidão, era tão triste que quase me fez chorar. Tudo na minha viagem foi resumido por aquele som sofrido, lindo, lancinante. Lucius estava vivo – mas era como se não existisse mais. Meu coração ainda doía, talvez até mais, porque eu havia alimentado esperanças muito grandes para nosso reencontro. Lucius estava certo. A coisa não aconteceu conforme o planejado. Eu estava arrasada por vê-lo tão diferente.
E a revelação sobre a trama para me destruir tinha me abalado profundamente. Mas eu não acreditava que Lucius houvesse sido cúmplice, como dissera. O plano era uma estratégia de Vasile. Talvez tivesse havido um tempo em que Lucius, corrompido e quase esmagado sob o poder de Vasile, fosse capaz de pensar na possibilidade de um ato tão sombrio. Mas ele havia mudado nos Estados Unidos. Como ele próprio disse, vislumbrara um novo caminho. Ele havia me dito: “Para os meus filhos, poderia ter sido diferente...”
Também me lembrei de suas palavras mais cedo, naquela mesma noite. “Eu salvei sua vida ao violar o pacto.”
Ao se recusar a honrar o acordo dos clãs, Lucius lutara ativamente para me salvar da trama de Vasile, arriscando-se. Ele sabia que Vasile tentaria destruí-lo por causa da insubordinação.
Lucius sempre me protegeria.
Apesar de todos os alertas dos meus pais sobre a crueldade dos Vladescu, apesar de todas as declarações veementes do próprio Lucius, de que ele era perigoso para mim, eu sabia que a realidade era outra.
Mas como poderia fazer com que Lucius acreditasse que nunca me faria mal? Que ainda éramos um do outro e sempre seríamos?
Não havia respostas no negrume do lado de fora da janela, por isso me levantei e fui desfazer a mala. Pelo menos, não vou fugir para casa, como Lucius desejava.
Enquanto desdobrava as roupas, meu exemplar de Crescendo como morto-vivo, que eu havia posto dentro da mala no último minuto, caiu no chão. Peguei-o, pensando no dia em que tinha descoberto aquele livro junto à porta do meu quarto, com o marcador de Lucius brilhando ao sol da manhã. Na hora, odiei o presente. Mas Lucius estava certo. Apesar do tom superficial, o livro tinha sido um bom guia durante uma época confusa. Uma fonte precisa. Quase como um confidente, quando não havia mais ninguém com quem eu pudesse conversar sobre mudanças que ocorriam no meu corpo, na minha vida. Sentada na cama, abri o último capítulo, que eu havia deixado de ler propositalmente enquanto meus sentimentos por Lucius ficavam cada vez mais fortes.
Capítulo 13: “O amor entre os vampiros: mito ou realidade?”
É claro que os vampiros podem amar. Dorin acreditava que Lucius era capaz de me amar.
No entanto, meu coração se apertou quando comecei a ler o conselho ajuizado do guia.
“É melhor não abrigar ideias fantasiosas sobre o amor entre vampiros. Os vampiros são românticos, até mesmo afetuosos, ocasionalmente. Mas, no final das contas, somos uma raça implacável! Tente aceitar que os relacionamentos entre vampiros são baseados no poder e na paixão – mas não no conceito humano de “amor”. Começar a confiar no “amor” – como muitos vampiros jovens e tolos tendem a fazer – é se colocar em grave perigo!” Não.
Fechei o livro com força e joguei-o de lado, sabendo que ele havia servido ao seu propósito. Eu não precisava mais de conselhos. Dessa vez o guia – ainda que respeitado, ainda que venerável – estava errado. Eu sabia a verdade. Lucius me amava.
Percebi, num momento de clareza, que estava disposta a arriscar a vida por essa convicção. Que arriscaria a vida por isso naquela mesma noite.
CAPÍTULO 64
Incapaz de localizar um papel de carta mais adequadamente pomposo no
meio da noite, redigi meu bilhete de abdicação no verso de um panfleto de turismo que descrevia as belezas de nosso lar ancestral – VEJA UMA MASMORRA DE VERDADE!
CONHEÇA A VISTA DAS TORRES! – que encontrei perto da porta da frente. Escrevi:
Querida família,
É inútil travar uma guerra contra os Vladescu. Decidi que é do nosso interesse que eu retorne aos Estados Unidos, que abdique do posto de princesa. Porém, meu último ato como sua soberana é ordenar que todo Dragomir se submeta sem luta ao domínio dos Vladescu. Estou colocando nosso clã sob o poder de Lucius Vladescu para que possamos ter paz. Daqui em diante, vocês serão súditos dele.
Esta é a minha ordem, dada à meia-noite de 9 de junho e efetiva a partir das 6h30 deste mesmo dia.
Antanasia Dragomir
Pus o bilhete na comprida mesa de jantar, ainda cheia de pratos e taças do festim arruinado, onde tinha quase certeza de que Dorin iria encontrá--lo na hora do café da manhã. O panfleto parecia ridículo apoiado num candelabro de prata manchado e eu esperava que ao menos minhas palavras soassem oficiais.
De qualquer maneira, se alguém lesse minha diretriz, eu já estaria morta. O destino dos clãs não seria mais problema meu.
Isso não vai acontecer, Jessica.
Eu desejava me apresentar a Lucius de modo majestoso e poderoso, por isso não havia tirado o vestido, o que tornava difícil mudar de marcha no apertado Panda. A cauda se prendia na embreagem, mas consegui manobrar para fora do estacionamento e sair para a estrada estreita e tortuosa que se retorcia como uma trepadeira venenosa em direção ao castelo de Lucius.
Felizmente eu havia gravado o local da casa dele – sua proximidade da minha propriedade ancestral, sua grandiosidade horrível – na vinda com Dorin, porque pude refazer o caminho, mesmo sendo uma rota confusa nas montanhas escuras. Ou talvez eu tenha me perdido algumas vezes, porque a viagem pareceu durar uma eternidade. Por fim, vi as torres pontudas do castelo tentando esfaquear a lua cheia e peguei a trilha que seguia para lá, quase vertical, interrompida por curvas fechadas que brotavam da escuridão como bonecos de caixas de surpresa e me obrigavam a apertar o freio várias vezes para não voar pelos penhascos íngremes que apareciam à esquerda e à direita, nas aberturas da floresta densa.
– Vai! – Eu encorajava o Panda, dando tapinhas no volante, instigando o motor que lutava, certa de que ele estava prestes a desistir.
O asfalto terminou, mudando para terra batida, e continuávamos a subir.
Finalmente, quando começara a acreditar que a montanha não acabaria nunca, um portão de ferro surgiu diante de mim, com pelo menos dois metros e meio de altura. Por que não pensei nisso? Parei o carro e puxei o freio de mão com o máximo de força que pude, tendo visões do pobre Panda desaparecendo pela estrada vertical e mergulhando na ribanceira, para jamais ser visto de novo. Levantando o vestido para que a cauda não se arrastasse na estrada de terra, fui até o portão e me aventurei a puxar a pesada argola de ferro que servia de maçaneta, certa de que seria uma tentativa inútil.
Porém, para minha surpresa, o portão se moveu uns dois centímetros. Puxei com mais força, lutando contra o peso, e consegui abri-lo apenas o bastante para me esgueirar para dentro. Grande sistema de segurança de Lucius!
Dei alguns passos na terra dos Vladescu e o portão se fechou atrás de mim, com um baque alto, metálico, como um gongo de mau agouro na floresta silenciosa. Olhei para trás me sentindo imediatamente vulnerável, longe do carro e trancada com o quê? Vampiros, com certeza, e talvez coisas mais apavorantes ainda. Pensei no uivo do lobo. E em cachorros. E se Lucius tivesse cães de guarda?
Será que devo empurrar o portão de novo, tentar abri-lo e voltar para o carro?
Mas tive uma sensação terrível de que estava trancada do lado de dentro. Além disso, não tinha intenção verdadeira de voltar.
Eu mal conseguia discernir o caminho à minha frente, mesmo com o luar atravessando as árvores densas. Não tinha escolha a não ser seguir adiante, então ajeitei os ombros e comecei a andar. A cada passo minha consciência dos sons da floresta aumentava: o estalar de galhos a distância, o farfalhar de folhas enquanto algum animal – por favor, que seja algum roedor da Romênia – se afastava correndo, espantado pelos meus passos.
Havia coisas maiores por lá também. Dava para ouvi-las por perto. Apressei o passo, a princípio só andando mais depressa, depois começando quase a correr o mais rápido que conseguia no caminho irregular, de terra e pedras. Por favor, por favor, que o castelo apareça. Minha respiração começou a sair tão ruidosa que os outros sons foram abafados, mas os monstros estavam tão ativos na minha imaginação que eu não precisava escutá-los para saber que estavam lá, mordiscando meus calcanhares. E então, tropecei.
Antes que pudesse cair de joelhos, porém, dois pares de mãos seguraram meus braços e me puxaram para cima, me erguendo bruscamente.
Nem tive tempo de gritar. Enquanto tentava ver quem me agarrava, vi Lucius diante de mim, banhado pelo luar. Estava parado, braços cruzados, bloqueando o caminho. Meus braços ainda estavam contidos com força e olhei para os lados. Dois rapazes – vampiros, presumi – me seguravam.
– Me soltem! – gritei, tentando afastá-los.
– Eliberaţi-o! – ordenou Lucius em romeno. – Soltem-na!
A ordem foi cumprida e eu fiquei de pé sozinha, espanando-me, como se eles tivessem me sujado com seu toque.
Os jovens vampiros esperaram as determinações de Lucius, ansiosos para me recapturar.
Mas seriam frustrados, para meu alívio.
– Mergeţi. Lăsaţi-ne în pace – disse Lucius, aparentemente dispensando seus guardas, porque eles desapareceram na noite.
Ouvir Lucius se comunicar numa língua familiar para ele mas não para mim, muito depois da meia-noite, numa floresta remota e sinistra, só enfatizou como Lucius havia se tornado um completo estranho, e parte da minha decisão desmoronou.
Estávamos nos encarando em silêncio, o corpo dele fechando o caminho para seu castelo.
– Há quanto tempo você estava me seguindo? – perguntei.
– Os faróis do seu carro de brinquedo são fracos, mas mesmo assim visíveis a muitosquilômetros de distância. Poucas pessoas pegam esse caminho à noite. A estrada é traiçoeira demais e o destino, mais perigoso ainda.
– Então é por isso que o portão estava aberto. Você sabia que eu vinha.
– Sabia mesmo. Queria ver até onde levaria essa visita imprudente. – Ele andou na minhadireção, as mãos cruzadas às costas. – Devo admitir que você chegou muito mais longe do que eu previa. Está praticamente na minha casa.
– Não tenho medo do escuro – menti.
Lucius chegou mais perto, erguendo-se diante de mim.
– Há lobos nessa floresta – alertou, inclinando-se para olhar meu rosto. – E eles achariamdifícil resistir a uma mulher tão tentadora quanto você. Ainda mais nesse magnífico vestido vermelho-sangue.
Olhei para meu vestido enquanto Lucius andava ao meu redor, examinando-me, numa paródia do que havia feito meses antes no estábulo dos meus pais, no dia em que nos conhecemos. Ele havia mudado desde então – e eu também. Nada de botas sujas, camisetas rasgadas. A seda vermelha cintilava ao luar.
– Você nunca leu Chapeuzinho Vermelho, Jessica? – perguntou Lucius, ainda me rodeando devagar, chegando perto e me cercando. – Não sabe o que acontece com inocentes que andam sozinhas em florestas escuras?
Fui atravessada por uma estranha onda de terror misturada com ansiedade. Lucius estava perto demais – e ao mesmo tempo não o suficiente. Eu não podia ver direito seus olhos negros na escuridão. Não podia avaliar seu humor. Ele estaria brincando comigo como prelúdio de um beijo... ou de um golpe de estaca no peito?
Você está apostando sua vida na primeira opção, Jess.
– Esqueci a história, Lucius. É só um conto para criancinhas.
– Ah, é uma das minhas histórias prediletas – disse ele, fazendo uma pausa atrás de mim.Fiquei tensa, me sentindo vulnerável com ele às costas. – As origens estão perdidas no tempo. E há muitas adaptações. Em algumas a menina é salva. Mas eu adoro o final relatado por Perrault na versão clássica.
– Como... como termina? – perguntei sem me mexer.
– “Vovó, que DENTES grandes você tem!” – recitou Lucius, tão perto dos meus ombrosque seus lábios roçaram minha orelha, quase me mordendo. – “‘São para comê-la!’ E, dizendo essas palavras, o Lobo Mau saltou sobre Chapeuzinho Vermelho e a devorou.”
Estremeci enquanto ele contava a história, em parte por causa de sua proximidade, em parte pelo prazer evidente com que ele relatava a conclusão medonha. – Não é um final simples e satisfatório, Jessica?
Ele riu baixinho.
– Eu gosto mais dos finais felizes – afirmei.
Lucius riu com mais intensidade.
– O que poderia ser mais feliz... para o lobo? Por que os humanos sempre olham essascoisas pela perspectiva errada? Os predadores também merecem nossa simpatia.
– Não vim aqui para escutar contos de fadas – respondi, quebrando o feitiço. Ele estavacomeçando a me irritar.
– Então corra para casa, Chapeuzinho Vermelho – disse Lucius, segurando meus ombros evirando-me de volta para o carro. – É tarde e você corre o risco de virar comida de lobo. O que eu diria na carta para os seus pais? Que deixei Jessica ser devorada, ter os membros arrancados, depois de eles terem sido tão hospitaleiros comigo?
Estremeci de novo, desta vez principalmente de frio, e me virei, desvencilhando-me de suas mãos.
– Quero entrar e conversar. Vim aqui propor um trato a você.
Lucius fez uma pausa, inclinando a cabeça e achando divertido.
– Um trato? Comigo? Mas você não tem com que negociar. – Mesmo assim dava para verque ele estava intrigado. – Tem?
– Acho que sim.
– E esse trato termina com você retornando à Pensilvânia, que é o seu lugar?
– Pode terminar com minha partida – respondi. Deste mundo. Para sempre.
– Você despertou meu interesse – admitiu Lucius, tocando meu ombro de novo. – E estátremendo de frio. Sou um anfitrião grosseiro, provocando-a no ar gelado, quando você não está acostumada à primavera nos Cárpatos. Vamos entrar, onde posso enfurecê-la e inspirar ódio com todo o conforto.
Começamos a andar lado a lado pelo caminho. Os pés de Lucius seguiam seguros no terreno familiar para ele, enquanto eu tentava me equilibrar usando trajes inadequados para aquela caminhada noturna. Oscilei ligeiramente e Lucius estendeu a mão para me firmar. Depois de eu recuperar o equilíbrio, ele manteve a mão no meu cotovelo e senti que com aquele gesto simples eu tinha avançado mais um passo para ganhar a guerra entre os Vladescu e os Dragomir.
Ou talvez não. Porque quando a enorme porta de madeira de seu castelo se fechou atrás de nós, lacrando-nos num imponente salão gótico de pedra, que desaparecia sobre mim numa escuridão alta demais para ser penetrada por um círculo de 20 tochas de verdade, Lucius observou:
– Você sabe que declarou guerra esta noite. E agora é minha primeira prisioneira.
Eu me virei a tempo de vê-lo fechar um comprido trinco de ferro, trancando-nos em sua mansão monstruosa.
– Você está brincando, não é, Lucius?
Era a coisa errada a dizer. Seus olhos estavam duros quando me encararam.
– O mais triste, Jessica, é que esta noite quase pensei que você finalmente havia aprendidoa não confiar em mim.
Enquanto eu olhava horrorizada, Lucius levou a mão às costas e pegou uma coisa que aparentemente estivera escondida, enfiada em seu cinto, o tempo todo em que estivéramos juntos numa escura floresta dos Cárpatos.
Uma estaca manchada e afiada.
CAPÍTULO 65
Lucius bateu na palma da mão com aquele instrumento rudimentar, mas
mesmo assim potencialmente mortal.
– Fiz tudo o que pude para impedir que chegássemos a esse ponto, mas você se recusa acooperar. Vou lhe oferecer uma última chance, Antanasia. Eu vou abrir o trinco, você vai sair para a noite e meus guardas garantirão seu retorno em segurança ao carro. De lá, você viajará para casa e esquecerá todo esse episódio. Essa é a minha oferta, que está sobre a mesa.
Enquanto Lucius falava, seus olhos tinham ficado completamente pretos, as íris consumindo a parte branca, como se ele fosse algum exótico animal noturno. A transformação era tão cativante e aterrorizante quanto fora na primeira vez em que eu a vira, na sala de jantar dos meus pais, quando Lucius sentiu sede do sangue que iria curá-lo. Foi necessário cada grama da minha coragem para que eu não implorasse para ele abrir o trinco, deixando que eu fugisse em segurança. Mas eu não podia fazer isso. Nosso relacionamento curto, intenso e confuso chegaria ao clímax naquela noite, para o bem ou para o mal. Eu não iria esperar nem mais um dia.
Dominei a voz com esforço.
– Não estou interessada em sua oferta de fuga. – Apontei para a estaca. – É exatamente poristo que estou aqui. Isto, na sua mão, é o ponto crucial do meu trato também.
Lucius me observou atento, sem dúvida apanhado desprevenido.
– Você esperava que eu sentisse medo, Lucius? – perguntei, desejando que meus olhos ouminha voz não traíssem meu pavor.
– Esperava.
– Pela primeira vez, acho que você é quem foi ingênuo. Subestimou minha capacidade.
Lucius hesitou e o silêncio naquele salão quase fúnebre foi ensurdecedor, a não ser pelos estalos esparsos das tochas.
– Vamos conversar – disse ele por fim.
Andando à minha frente, sem esperar para ver se eu o seguia, ele me guiou por um labirinto de corredores que se abriam em aposentos amplos, como uma série de túneis ligando cavernas – às vezes se abaixando sob alguns lintéis construídos numa época em que os homens eram muito mais baixos do que Lucius Vladescu, às vezes subindo rápidos lances de escada que pareciam não ter propósito. Aquele não era um castelo destinado a dar as boasvindas aos visitantes, e sim a confundir inimigos. Não era um lar. Era um covil. Uma teia de aranha feita de pedras. Enquanto penetrávamos mais fundo no imponente palácio, as curvas pareceram ficar mais fechadas; os corredores, mais estreitos; as escadas, mais íngremes.
Percebi, sentindo algum pânico, que estava completamente perdida. Inteiramente à mercê de Lucius. Se as coisas não acontecessem como eu esperava, eu jamais escaparia. Meu corpo jamais seria encontrado.
Ele parou tão de repente que trombei em seu ombro enquanto ele estendia a mão para abrir uma porta que eu nem tinha percebido na parede. Virando a maçaneta e empurrando-a, Lucius ficou de lado.
– Primeiro, as damas.
Observei-o com cautela. Seus olhos não estavam mais totalmente negros, mas continuavam frios. Passei por ele.
– Obrigada.
Enquanto Lucius fechava a porta, olhei para o aposento, depois para Lucius.
– Lucius... isso é lindo.
No coração do labirinto dos Vladescu havia uma biblioteca ricamente decorada, uma versão magnífica do cenário que Lucius havia montado em nossa garagem. Um gigantesco e antigo tapete turco cobria o chão de pedras e as paredes eram forradas com estantes cheias de livros – como eu esperaria de Lucius. Poltronas de couro rasgado e gasto, testamento das horas que sem dúvida ele havia passado com as obras de Brontë, Shakespeare e Melville. Enfiado no meio dos livros havia um troféu vermelho, com um jogador de basquete arremessando uma bola que saía das pontas dos dedos dourados. O prêmio de Lucius por ter vencido um torneio de lance livre em dezembro. Virei-me para ele, sorrindo, animada porque ele guardara um pedacinho de sua vida de adolescente americano.
– Você trouxe o seu troféu.
Lucius sorriu também, mas com sarcasmo.
– Aquilo? Foi Dorin que resgatou. Guardei para me lembrar de nunca ser idiota de novo,entregando-me a jogos ridículos quando há negócios a fazer.
Não acreditei nele, mas deixei pra lá.
Tirando o sobretudo, Lucius se abaixou para pegar um pedaço de lenha e o jogou numa lareira meio apagada. Fagulhas subiram em profusão e o fogo voltou à vida. Ele havia enfiado a estaca de volta no cinto e eu poderia tê-la apanhado naquele momento em que ele ficou de costas para mim e atirado-a nas chamas...
– Nem pense que você seria rápida o bastante – avisou Lucius sem sequer se virar, cutucando os pedaços de lenha com a bota, instigando-os a reviver.
– Isso nem me passou pela cabeça – respondi.
Lucius se virou com um sorriso de quem sabe das coisas.
– Claro que não.
Em seguida, pegou a estaca de novo, passando a mão ao longo dela, testando a ponta com o dedo.
– Lucius, você não acha mesmo que vai me destruir esta noite, acha?
Em vez de responder, Lucius veio até mim, pegando-me pelo pulso, e me puxou até o centro da sala, onde o complicado desenho do tapete culminava num círculo mais claro, gasto.
– Olhe para baixo – ordenou, a voz muito áspera de repente, apertando meu braço comforça demais para ser confortável.
Obedeci e vi uma mancha escura que se espalhava pelas fibras. Sangue... Não parecia que alguém tivesse tentado limpar.
– Isso é...?
– Vasile. Foi onde o matei. É aqui que eu destruo.
Quando levantei a cabeça de novo, afastando o olhar daquela mancha para examinar o rosto de Lucius, vi que seus olhos estavam estreitados e eram puro negrume outra vez. Estávamos tão perto que eu podia espiar fundo suas íris grandes, quase como se pudesse enxergar seus pensamentos verdadeiros, ler sua mente através dos olhos, como os vampiros de verdade supostamente seriam capazes de fazer. E os pensamentos que giravam no cérebro de Lucius eram tão sombrios que me encolhi. Em seus olhos vi minha destruição.
– Lucius, não – comecei a protestar, mas, numa fração de segundo, ele estava atrás de mim,um dos braços envolvendo meu peito com firmeza, minhas mãos presas na dele, e a estaca firmada de baixo para cima sob meu esterno, quase furando a pele, penetrando na seda vermelha do meu vestido, parando bem a tempo. Prendi a respiração, com medo de me mexer.
– Você disse que tinha um trato a propor – rosnou ele. – Fale agora.
– É isso – consegui dizer, pressionando meu corpo contra o peito dele, para longe daquelaponta afiada. – Deixei um bilhete dizendo à minha família que abdiquei. Mas meu último ato foi ordenar que eles se submetessem à sua liderança sem lutar.
– Isso não é um trato. – Lucius gargalhou. – Isso é submissão.
– Não. – Balancei a cabeça, sentindo meus cachos roçarem seu queixo com a barba porfazer. Seu braço estava pesado e tenso sobre o meu peito. Em outro tempo, em circunstâncias diferentes, seria o paraíso estar tão apertada contra ele, de modo protetor. Exceto pela estaca no meu peito. – Se você não me destruir esta noite, como parece disposto a fazer, eu vou para casa antes de Dorin acordar e jogo fora o bilhete. A guerra vai continuar.
Lucius parou, pensativo.
– Você sabe que não tenho problemas quanto a continuar a guerra.
– E diz que não tem problemas quanto a me destruir. A me sacrificar. Então faça isso. Façae impeça a guerra. Eu estou me sacrificando, Lucius. – Ouvi minha voz subir de volume juntamente com minhas emoções. – Faça isso, se você está tão endurecido! Tão maligno! Faça o que disse que ia fazer o tempo todo!
O medo, a frustração e a raiva contra sua obstinação, suas mudanças e sua recusa em aceitar nosso amor – sentimentos que tinham sido reprimidos em mim por tanto tempo – explodiram, me deixando imprudente, e me peguei pressionando-o com intensidade, mesmo sabendo que os riscos eram gigantescos.
– Vá em frente, Lucius! Faça isso!
– Vou fazer – disse ele, com convicção na voz, e eu o senti ofegar, o peito arfando contraminhas costas. A estaca se apertou um pouco mais em minha carne, afiada, e arqueei o corpo tentando me afastar dela. – Não me teste! – gritou ele.
– É exatamente o que estou fazendo – respondi, arquejando. Quando falei, a estaca mefurou, fazendo minha respiração sair curta e entrecortada. Soltei um grito e torci a cabeça contra o ombro dele, tentando me afastar da arma, e ele cedeu um pouco.
– Estou testando você, Lucius – continuei, lutando para dominá-lo enquanto ele mostrava o mínimo de vulnerabilidade. – Estou arriscando minha vida para provar que você não é Vasile. Que você não está perdido. Que me ama demais para me destruir em qualquer momento, quanto mais agora. Estou apostando tudo no fato de que você vai me poupar.
– Não posso poupar ninguém! – rugiu Lucius, perdendo a frieza. Sua mão sob minhas costelas tremeu. – Todas as minhas opções são cruéis, Antanasia! Eu destruí meu próprio tio. Coloquei seus pais em perigo, mesmo quando eles tentaram me salvar. Minha égua foi destruída. Minha mãe foi destruída. Meu pai foi destruído. Você, não importa o que eu faça, está destruída. Não posso deixá-la para trás, você não vai permitir. E não posso arrastá-la para esse... esse meu mundo. Tudo... tudo à minha volta é destruição!
Então ele enterrou o rosto no meu cabelo, exausto, e sua mão se afastou do meu peito. A estaca tombou no chão, rolando pelo tapete, e eu soube que tinha vencido. Tinha apostado e vencido.
Girei lentamente, ainda encostada em Lucius, presa por seu braço, e envolvi seu pescoço com minhas mãos, puxando sua cabeça para meu ombro, confortando-o. Ele permitiu que eu o segurasse desse jeito, acariciasse seu cabelo preto e seu queixo com a barba por fazer, acompanhando a cicatriz que não me amedrontava mais.
– Antanasia – disse ele com a voz insegura. – E se eu tivesse sido capaz...
– Mas não é. Eu sabia que você não seria capaz.
– E se algum dia...
– Nunca, Lucius.
– Não, nunca – concordou ele, levantando a cabeça do meu ombro e aninhando meu rostonas mãos, enxugando meus olhos com os dedos. Eu nem tinha percebido que estava chorando. – Nunca faria mal a você.
Ele me puxou, pousando a cabeça de volta no meu ombro, enquanto nós dois nos recuperávamos. Ficamos assim por um longo tempo, até que Lucius sussurrou:
– Sempre haverá uma parte de mim que é traiçoeira, Antanasia. Isso nunca vai mudar. Eusou um vampiro, um príncipe vampiro. Governante de uma raça perigosa. Se você quer fazer isso, deverá entender...
– Não quero que você mude, Lucius – garanti, recuando para olhar em seus olhos.
– E esse mundo... – disse ele. – Eu me preocupo com você nesse mundo. Você terá inimigos. Uma princesa vampira sempre enfrenta adversários implacáveis. Outras pessoas vão querer seu poder e não hesitarão em fazer o que eu não consegui.
– Você me protegerá. E eu sou mais forte do que pensa.
– É mesmo. É mais forte do que eu – admitiu Lucius, conseguindo dar um meio sorrisorelutante, apesar de ainda estar claramente abalado, como eu. – Fiz tudo o que pude para ter o que desejava, mantê-la longe de mim e de nossa espécie, mas você consegue o que quer, como uma princesa de verdade.
– Eu queria você, Lucius. Tinha que conseguir.
Abraçamo-nos no meio da sala, de pé sobre a mancha de sangue que marcava a destruição do vampiro que havia tentado fazer de Lucius um verdadeiro monstro. Atrás de nós o fogo estalava e eu pensei no baile de Natal, quando fui transportada para essa cena, enquanto dançávamos. Esse era o lugar que eu havia imaginado.
Lucius inclinou a cabeça e encostou os lábios nos meus, ainda segurando meu rosto, e no coração daquele labirinto de pedra nós nos beijamos, a princípio com ternura, os lábios mal se encostando, de novo e de novo. Então Lucius levou uma das mãos à minha nuca e outra à minha cintura, um gesto ao mesmo tempo protetor e possessivo, e me beijou com mais ferocidade, e eu soube que ele finalmente estava me tomando para si, como sua parceira prometida, de uma vez por todas. Eu soube que cumpriríamos o pacto.
Ele se afastou, examinando meu rosto. Toda a suavidade estava de volta em seus olhos. Eu sabia que tornaria a ver o príncipe guerreiro muitas vezes. Ele ainda era Lucius Vladescu. Mas a dureza, a aspereza que havia dentro dele jamais seria direcionada de novo contra mim. Na verdade nunca tinha sido. Só na imaginação e nos temores dele.
– Isso é a eternidade, Antanasia – disse ele, ao mesmo tempo alertando e implorando. – Aeternidade.
Ele me dava uma última chance de ir embora – e suplicava que eu não fosse.
Eu não tinha intenção de ir a lugar algum longe daquela sala ou de seu abraço. Inclinei a cabeça para trás, cedendo sem palavras, e fechei os olhos enquanto Lucius encontrava de novo o ponto em que minha pulsação batia mais forte no pescoço. Dessa vez não houve hesitação, além de algumas respirações brevíssimas em que ambos saboreávamos o momento que nos reuniria para sempre. Então seus dentes se cravaram no meu pescoço e eu gritei baixinho, sentindo-o mergulhar, com força e segurança, mas também com delicadeza infinita, na minha veia, me devorando.
– Eu te amo, Lucius. – Ofeguei, sentindo-me atraída para o seu corpo, tornando-me partedele. – Sempre amei.
Minhas presas foram liberadas, acabando com a dor, e, quando Lucius terminou, minha garganta ardia com um prazer inimaginável. Ele me levou até um dos sofás, puxando-me de modo que eu pudesse alcançar sua garganta com facilidade, e pareceu natural demais encostar os dentes no pescoço dele.
– Aqui, Antanasia – sussurrou Lucius, pondo as pontas dos dedos suavemente sob meuqueixo, me guiando ao lugar certo, e, no momento em que senti sua pulsação latejar logo abaixo da pele, não pude esperar mais. Cravei os dentes fundo, sentindo seu gosto, tornandoo parte de mim.
Lucius gemeu, me apertando para mais perto, e assim meus dentes penetraram mais fundo e o sangue correu mais depressa, escorrendo fresco e intenso em minha boca. Seu sangue tinha gosto de poder e paixão com um toque de doçura... exatamente como Lucius.
– Ah, Antanasia – sussurrou ele, acariciando meu rosto e me ajudando a soltar com relutância os dentes ainda pouco familiares enquanto eu terminava de beber. – Também sempre te amei.
Dormimos nos braços um do outro no sofá diante da lareira, exaustos, satisfeitos e felizes. Pelo menos eu dormi durante toda a noite. Lucius, num determinado momento, se levantou e saiu, porque, quando acordei, logo antes do amanhecer, percebendo que precisava correr de volta para casa e destruir o bilhete – antes que abdicasse – Lucius me avisou que os jovens guardas vampiros já haviam sido despachados na madrugada, para garantir que meu reinado não terminasse inesperadamente cedo.
E enquanto eu ficava aninhada junto a Lucius, com a cabeça em seu peito, protegida por seus braços fortes, os dedos tateando as feridas sensíveis no meu pescoço, percebi que ele havia feito mais do que ordenar que seus lacaios cumprissem a ordem.
A estaca que havia caído no tapete desaparecera.
Lucius nunca me contou o que foi feito dela. Não disse se jogou no fogo – que foi realimentado durante a noite – a lembrança de seu feito mais violento e de nosso momento mais sombrio ou se escondeu a estaca em algum lugar no castelo, para o caso de querer usála outra vez. E eu nunca perguntei.
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Apaixonado
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