A máscara

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  A máscara (1) 

Camilla: O senhor deveria tirar a máscara.
Estranho: É mesmo?
Cassilda: É mesmo, está na hora. Todos tiramos nossos disfarces, menos o senhor.
Estranho: Eu não estou de máscara.
Camilla: (Horrorizada, em particular para Cassilda.) Não é máscara? Não é máscara! (2)

  O Rei de Amarelo, Ato I, Cena 2 (3)  


  I  

Apesar de nada saber de química, eu ouvia fascinado. Ele pegou um grande lírio-branco que Geneviève levara de Notre Dame naquela manhã e o jogou na bacia. Instantaneamente o líquido perdeu sua clareza cristalina. Por um segundo, o lírio foi envolto por uma espuma branca e leitosa, que desapareceu, deixando o fluido com uma cor opalina. Reflexos laranja e carmesim,em movimento, brincavam sobre a superfície, e então o que parecia ser um raio de pura luz do sol projetou-se do fundo, onde descansava o lírio. No mesmo instante, ele enfiou a mão na bacia e tirou a flor.
          — Não há perigo — explicou —, se você souber o momento certo. Esse raio dourado é o sinal.
          Ele estendeu o lírio na minha direção, e eu o peguei. A flor se transformara em pedra, no mármore mais puro
          — Está vendo? — disse ele. — Não tem uma só imperfeição. Que escultor poderia reproduzir isso?
          O mármore era branco como a neve, mas, em suas profundezas, os veios do lírio eram tingidos do anil mais claro, e um leve rubor permanecia no fundo de seu coração.
          — Não me pergunte a razão disso. — Ele sorriu, percebendo meu espanto. — Não tenho ideia de por que os veios e o coração ficam tingidos, mas sempre ficam. Ontem experimentei com um peixe-dourado de Geneviève. Aqui está.
          O peixe parecia ter sido esculpido em mármore. Mas, se fosse erguido contra a luz, a pedra ganhava belos veios de um azul suave, e de algum ponto em seu interior vinha uma luz rosada,como a cor que se oculta em uma opala. Olhei para a bacia. Mais uma vez, parecia cheia domais puro cristal.
          — E se eu tocasse nele agora? — perguntei.
          — Não sei. Mas acho melhor não tentar
          — Tem uma coisa que me deixou curioso. É de onde veio o raio de sol
          — É verdade que parecia um raio de sol. Não sei, isso sempre surge quando mergulho algo vivo. Talvez... — Ele continuou a sorrir. — Talvez seja a centelha vital da criatura escapando para a fonte de onde veio.
           Vi que ele estava zombando e o ameacei com um tento de pintor, mas ele apenas riu e mudou de assunto. (4)
         
— Almoce conosco. Geneviève vai ficar aqui direto,
         — Eu a vi indo para a missa hoje cedo, e ela parecia tão pura e delicada quanto aquele lírio
antes de você destruí-lo.
         — Você acha que eu o destruí? — perguntou Boris, sério.
        — Destruiu, preservou... como vamos saber?
        Ficamos sentados no canto de um estúdio perto de seu grupo inacabado das parcas (5). Ele se recostou no sofá, girando um cinzel de escultor e examinando atentamente sua obra.
         — Por falar nisso — disse ele —, terminei o acabamento daquela antiga Ariadne acadêmica, e acho que ela terá que ir para o Salão. (6) É tudo o que tenho pronto este ano, mas, depois do sucesso com a madona, sinto-me envergonhado de mandar algo assim.
          A madona, um mármore exótico para o qual Geneviève posara, tinha sido a sensação do Salão no ano anterior. Olhei para a Ariadne. Era uma magnífica obra de trabalho técnico, mas eu concordava com Boris: o mundo esperava dele algo melhor que aquilo. Mesmo assim, naquele momento era impossível pensar em terminar a tempo para o Salão aquele esplêndido e terrível grupo, semi envolto em mármore, atrás de mim. As parcas teriam que esperar.
          Tínhamos orgulho de Boris Yvain (7) . Nós o considerávamos um de nós, e ele também, pelo fato de ter nascido nos Estados Unidos, apesar de ter pai francês e mãe russa. Todo o mundo das belas-artes o chamava de Boris. E, no entanto, havia apenas duas pessoas a quem ele se dirigia da mesma forma familiar: a Jack Scott e a mim.
          Talvez o fato de eu estar apaixonado por Geneviève tivesse algo a ver com sua afeição por mim. Não que tenhamos discutido isso alguma vez. Mas, depois de tudo resolvido — e de ela me dizer com lágrimas nos olhos que amava Boris, e não a mim —, fui até a casa dele e o parabenizei. Sempre acreditei que a cordialidade perfeita daquela conversa não enganou nenhum de nós, apesar de ter sido um grande conforto para um, pelo menos. Não acredito que ele e Geneviève jamais tenham conversado sobre o assunto, mas Boris sabia.
          Geneviève era adorável. Seu rosto, com a pureza de uma madona, parecia ter sido inspirado pelo Sanctus da Missa de Gounod. Mas eu sempre gostava quando ela mudava esse estado de espírito para o que chamávamos de "Manobras de Abril". Ela era tão imprevisível quanto um dia de abril. De manhã, séria, digna e doce; ao meio-dia, risonha, caprichosa; à noite, o que menos se esperasse. Eu a preferia assim do que naquela tranquilidade de madona que agitava as profundezas do meu coração. Eu estava sonhando com Geneviève quando ele tornou a falar:
          — O que achou da minha descoberta, Alec?
          — Acho maravilhosa.
          — Não a usarei para nada além de satisfazer minha curiosidade o máximo possível, e o segredo vai morrer comigo.
          — Seria um golpe e tanto contra a escultura, não acha? Nós, pintores, perdemos mais do que jamais ganharemos com a fotografia. 
          Boris balançou a cabeça, brincando com a ponta do cinzel.
          — Essa descoberta perversa corromperia o mundo das artes. Não, eu nunca confiarei este segredo a ninguém — disse ele devagar. 
          Seria difícil achar alguém menos informado sobre o fenômeno do que eu. Mas é claro que eu tinha ouvido falar em fontes minerais tão saturadas de sílica que folhas e gravetos que caíam nelas se transformavam em pedra após algum tempo. Compreendia o processo de forma superficial, como a sílica substituía a matéria vegetal, átomo por átomo, e o resultado era uma
duplicata do objeto em pedra. Isso, confesso, nunca havia me interessado muito, e, em relação aos fósseis antigos produzidos dessa forma, eu os considerava repugnantes. Parece que Boris,sentindo curiosidade em vez de repulsa, tinha investigado o assunto e acidentalmente descobrira uma solução que atacava o objeto submerso com uma ferocidade desconhecida e em um segundo fazia o trabalho de anos. Isso era tudo o que eu conseguia entender da esquisita história que tinha acabado de me contar. Ele tornou a falar, após uma longa pausa:
          — Eu quase sinto medo quando penso no que descobri. Cientistas ficariam loucos com isso. E foi tão simples... O processo se descobriu sozinho. Quando penso na fórmula e naquele elemento novo precipitado em escalas metálicas...
          — Que elemento novo? 
          — Ah, não pensei em dar nome a ele, e acho que nunca farei isso. Já existem metais preciosos suficientes no mundo para as pessoas se matarem por eles.
          Isso chamou ainda mais a minha atenção.
          — Você fez ouro, Boris?
          — Não, melhor. Mas veja, Alec... — Ele riu e começou a se levantar. — Você e eu já temos tudo de que precisamos neste mundo. Ah! Como você já parece sinistro e ávido!
         Eu também ri e disse a ele que era consumido pelo desejo por ouro e que era melhor mudarmos de assunto. Por isso, quando Geneviève chegou, logo depois, já não estávamos mais falando de alquimia.
         Geneviève estava vestida de prateado dos pés à cabeça. A luz refletiu nas ondas suaves de seu cabelo claro quando ela ofereceu o rosto a Boris. Depois, ela me viu e devolveu meu cumprimento. Nunca antes ela deixara de me mandar um beijo da ponta de seus dedos brancos,e eu imediatamente reclamei da omissão. Ela sorriu e estendeu a mão, que caiu pouco antes de tocar a minha. Então, olhando para Boris, disse:
          — Você tem que convidar Alec para ficar para o almoço. 
          Isso também era novidade. Era sempre ela quem me convidava.
          — Já convidei — disse Boris sucintamente.
          — E você aceitou, espero.
          Ela se virou para mim com um sorriso charmoso e convencional. Eu poderia muito bem ser uma pessoa que Geneviève havia conhecido dois dias antes. Fiz uma grande reverência para ela.  
          — J'avais bien l'honneur, madame.
          Mas, recusando-se a assumir nosso habitual tom amistoso e brincalhão, ela murmurou um lugar-comum acolhedor e desapareceu. Boris e eu nos entreolhamos.
          — É melhor eu ir para casa, não acha?
          — Quem dera eu soubesse — respondeu ele com franqueza.
          Enquanto discutíamos se minha partida era conveniente, Geneviève reapareceu na porta sem sua touca. Ela estava maravilhosamente linda, mas sua cor estava muito intensa, e seus lindos olhos brilhavam muito. Ela foi direto até mim e tomou-me pelo braço.
          — O almoço está pronto. Fui indelicada, Alec? Achei que estivesse com dor de cabeça, mas não estou. Venha aqui, Boris. — E ela estendeu o outro braço para ele. — Alec sabe que, depois de você, não há mais ninguém no mundo de quem eu goste tanto quanto dele; então, se às vezes ele se sentir ignorado, isso não vai magoá-lo.
          — À la bonheur! — exclamei. — Quem diz que não há tempestades em abril?
          — Estão prontos? — cantarolou Boris.
          — Sim, prontos.E, de braços dados, corremos até a sala de jantar, escandalizando os criados. Afinal, não tínhamos tanta culpa assim. Geneviève tinha 18 anos; Boris, 23; e eu ainda não tinha feito 21.

O Rei de Amarelo - Richard W. ChambersOnde histórias criam vida. Descubra agora