A vida é solúvel...

41 3 1
                                    

A minha vida compete a mim? Vivo correndo sem saber por que corro e fugindo sem saber do que fujo. Vivo como alguém que, porventura, se enfiou na cena de um crime que não cometeu e que, assim, não é culpado nem ileso. Alguém que lida com as consequências pela infelicidade de estar onde não deveria e que se sente culpado sem ter culpa, que até já não sabe mais se é totalmente inocente ou se é cúmplice passivo.

Na sexta-feira, eu me enfiei na cena do crime que não cometi quando notei que havia uma nova frase pichada no muro do ponto de ônibus em frente ao prédio em que moro: "piroca torta". E aí foi só eu botar um pé na calçada que um senhor escarrou ao meu lado, quase em mim. Então eu quis chorar, pois naquele instante eu tive a certeza abrupta que tudo o que eu olhava, me olhava de volta com pena. A frase pichada no muro. O escarro reluzente no chão. Tudo foi posto para me humilhar.

Sei que a gente não deve questionar o destino dos nossos passos, mas é injusto pensar que o instante passa. O instante passa, menino, e alguns instantes são trocados por outros. Sem rodeios. Parece filosofia cafona de bar, eu sei, mas são esses lirismos dos bêbados que fazem o mundo girar. O instante passa, entende o que digo? Passa depois do primeiro beijo, o beijo esquisito, poderia ter sido o último de tão estranho. Como se fosse o primeiro da vida de ambos. O instante passou e foi trocado por novos instantes. Injustos.

No ônibus, avistei uma moça que sorriu e eu sorri de volta. E aquele sorriso me lembrou o teu, pois foi o primeiro primeiro-sorriso-de-alguém que gravei depois do seu. É assim que a gente se lembra de outros instantes que já não se lembrava, do rosto que tentou recompor sem sucesso, dos comentários sobre a mancha de batom no papel, de que nada encaixava naquela cidade, nada. Como a vida é solúvel: em um dia a gente está em uma cidade desconhecida, noutro, no ônibus vendo uma moça bonita com cabelo platinado e vestido azul que sorri. Que sorri como você ou como eu quero que seja.

Ainda no ônibus, um casal zombava de mim. Aqueles apelidinhos, aquele amor bobo e grotesco. Eu temia o amor bobo, de apelidos idiotas, o amor quase carente, dependente. E assim lembrei-me de outro instante: eu, você, ninguém suportava mais aquela conversa morna de quem não quer perder o contato e apenas isso, como o beijo, era incompatível, uma incompatibilidade que não tinha beleza, a gente não se completava, era quase como um pecado.

Desviei o olhar do casal e dos pensamentos e tentei me concentrar em cada detalhe da cidade, cada canto pichado, cada palavra que eu nunca tinha me dado conta: "doutorado não é a prova de balas!", "Malandragem também não é". E já me vieram os novos pensamentos: "você acha que farei doutorado?", "eu acho que sim, você não conseguiria parar por aqui!". Percebi que, na verdade, tudo o que eu olhava era uma procura por algo que denunciasse a minha solidão. Minha solidão depois de ter voltado para a casa. Quanta insanidade. A procura por algo não mostrava apenas o quanto estava sozinha, mas o peso da tua ausência. E a tua ausência é gritante.

À tarde, fui ao sebo perto de casa, ignorando a "piroca torta" e o sinal do escarro que ainda estava no chão. Entrei, procurando teus livros preferidos, aqueles que quis ler os grifos e que quis trazer comigo. E foi então que me rendi e ali deixei que me derramasse. Eu quis falar, mas ninguém poderia ouvir. Era muita dor, muita. Fingi o dia todo que estava tudo bem, mas enfim podia admitir que doía. Nunca imaginei que os livros da Virgínia Woolf significariam algo. Livros nunca lidos, doeram. Como me doeram.

Aquele instante foi um dualismo. Eu quis escolher o meu próprio exílio. Foi um álibi para não ser coadjuvante na cena do crime, ser errada e certa ao mesmo tempo, entrar num labirinto embolando todos os meus instantes do dia todo que culminaram num instante só. Aquele. Já não sabia mais correr atrás de um pensamento enquanto estava perdendo todos os outros, ou se esperava passivamente que todos eles se fossem de uma vez. Já não sabia se corria ou me escondia enquanto me perdi por completo.

Não sabia mais e ainda não sei, mas só queria te falar que aceito como for, porque dói e porque eu me rendi. Um amor absurdo e submisso. Um amor cafona e bobo, como aquele do casal no ônibus, que tanto temi. Não me imporia em admitir ser mais uma dessas mulheres idiotas e maltratadas, me vestiria de qualquer uma delas para sermos mais comuns. Só queria que esse amor, ou qualquer coisa que seja ou que nome tenha, fosse mais que palavra escrita em papel, mais que frase desconexa no bar, bilhete esquecido dentro da caixa, que fosse mais que isso aqui e agora. Que fosse mais comum. Pois somos comuns.

Mas nada é tão ruim a ponto de não ser dito, nem porque corro ou fujo, ou porque fui pega na cena do crime que não cometi. Nada é tão ruim ou esquisito que não valha a pena um susto de línguas que se encontraram pela primeira vez e que se encontraram pela última.

Sobre o Labirinto Sem Parede e Sobre MimWhere stories live. Discover now