Capítulo 1

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— Preciso de um cigarro. Será que encontro algum no meio do nada? — disse Jonas, medindo a pulsação da moça desfalecida.
— É mais fácil achar um maço enterrado nesse bosque, meu chapa – respondeu Abdias, bocejando sem cerimônia.
Era uma manhã frienta, após dois meses terrivelmente ensolarados. Um vento frio e aconchegante batia nas árvores, criando um clima invernal naquele bosque. Jonas usava uma camisa de manga longa, a primeira que encontrou após ouvir os gritos desesperados do pequeno Wallace, pedindo socorro. Meteu—lhe os braços nas mangas malpassadas, corrigiu um pequeno redemoinho nos seus curtos cabelos e correu para a porta, quando se deparou com o garoto sem esconder a mais assustadora palidez da face.
— Que diabos um garoto de dez anos fazia no bosque a essa hora? — questionou Abdias, ficando de cócoras ao lado da jovem.
— Parece que nunca teve dez anos, Abdias. Ora, o garoto curte uma boa aventura, e que dia melhor senão o primeiro dia do inverno para correr pela mata em busca de algum animal desprevenido?
— Faz muito tempo, porém me lembro muito bem. Faria qualquer coisa sensata que um garoto de dez anos no seu juízo perfeito faria. Mas convenhamos, se foi isso mesmo que Wallace queria fazer, trata-se de uma tolice sem tamanho, embora concordasse que foi providencial essa aventura; afinal, não teríamos encontrado Clarice.
— Então esse é o seu nome? Muito bem, antecipou uma de minhas perguntas. Agora precisamos descobrir o que ela estava fazendo aqui.
Jonas deitou a moça e retirou do bolso um pequeno espelho para verificar-lhe a respiração. Em seguida, examinou-lhe as pálpebras e as órbitas oculares. Clarice estava terrivelmente pálida, como se todo o seu sangue tivesse sido misteriosamente drenado. Ele fazia tudo com cuidado, com a meticulosidade de um médico experiente; embora considerasse adequado examiná-la num consultório provido de equipamentos.
Aparentando resignação, Abdias não parecia preocupado com o estado da moça. Varria os olhos pelo bosque, em busca de algo que de fato lhe chamasse a atenção.
— Com certeza essa vadia estava se divertindo com alguns rapazes, bebeu demais e acabou desmaiando.
— E onde estariam esses rapazes? Teriam coragem de largar uma moça nesse bosque em plena madrugada?
— Os rapazes imaturos daqui? Com certeza. E aposto que não tiveram a audácia de tirar uma lasquinha de tão assustados que ficaram depois que ela desmaiou.
— Concordo – disse Jonas, levantando o rosto para o céu nublado. — Estamos perdendo tempo aqui. Ajude-me a leva-la para o meu consultório.
— Bobagem… — murmurou Abdias. — Um copo de minha garrafada é o suficiente para deixar essa moça pronta para mais uma. A não ser que o doutor esteja interessando em desnudar essa ninfeta no conforto de seu consultório.
— Não seja tolo! – retrucou Jonas. — O pai dela decerto esteja preocupado com seu sumiço repentino. Seria leviano de minha parte pretender qualquer coisa com uma moça que sequer conheço. Sou novo nesse vilarejo e pretendo ficar por um bom tempo. Não quero problemas.
— Pois bem – recompôs Abdias. — Então partimos sem demora. Concordo que estamos desperdiçando nosso tempo aqui.
Como era o mais fraco, Jonas segurou pelas pernas, enquanto Abdias carregou-a pelos braços. Até o vilarejo, era uma caminhada de, pelo menos, três quilômetros, com oitocentos metros de descida pela colina, o que amenizava o trajeto.
Abdias era um homem forte e carrancudo, de rosto sulcado e de cabelos grisalhos e desgrenhados. Tinha 59 anos e era casado com Luiza, a parteira do vilarejo. Com todo o seu conhecimento, tornou-se o curandeiro, homem que ocupava o posto de terceiro lugar entre os mais importantes da comunidade de camponeses, ficando atrás do pastor Gerônimo e do “Conselho de Anciões”, se o considerarmos como um único corpo. Com a chegada de Jonas, ele viu seu posto ameaçado, vendo-o como um possível adversário. O rapaz tornou-se o primeiro médico do vilarejo e logo ganhou a simpatia dos camponeses.
Jonas, por sua vez, não se considerava alguém importante. Fazia seu trabalho pontualmente, sem se preocupar com os créditos; e não fazia por prazer, como muitos imaginavam. Tinha suas próprias preocupações, pesquisas às quais dedicava boa parte do seu tempo. Esse trabalho fazia em segredo, o que instigava a curiosidade dos membros da comunidade. Se pudesse, dedicaria todo o seu tempo, porém, como condição para permanecer no vilarejo, deveria desempenhar alguma função. Como não sabia fazer outra coisa, aceitou a função de médico da comunidade.
— Conhece o pai dela? – dirigiu-se a Abdias.
— Ora, moramos num vilarejo com oitenta pessoas, como não conheceria? Trata-se do ferreiro, homem sem nenhuma malícia. As pessoas costumam admirá-lo pela sua bondade, mas eu o acho tão tolo quanto os outros. Vai nos agradecer se conseguirmos salvar a sua única filha.
— Ela vai se salvar, pode acreditar nisso. Estava certo quanto a bebida. Ela ingeriu bons goles de uísque. Só não estava preparada para os resultados. Eu não queria estar no lugar dela quando acordar. Remédio nenhum neste mundo vai aliviar-lhe a ressaca.
— Seus medicamentos? Talvez não, porém minhas garrafadas são um santo remédio para qualquer ressaca.
— Então devemos leva-la para sua casa, o que acha? Depois de curá-la, poderia despi-la para ver o que ela esconde debaixo dessas vestes, e depois, brincaria com ela, como quem brinca com uma boneca de porcelana.
— Até que não seria uma má ideia – Abdias sorriu maliciosamente. — Mas uma putinha como ela não tem mais nada para esconder. Se aproveitasse melhor o seu horário de almoço, poderia vê-la nadar nua na lagoa além do bosque.
— Meu tempo é por demais precioso – retrucou Jonas. — Há belezas às quais dispensaria parte do meu tempo; mas estas vivem longe daqui. Se está certo acerca do que diz sobre essas moças, não merecem atenção de homens como eu, e não me tome por pretencioso ao deixar dessa forma.
Abdias meneou a cabeça, em sinal reprovação e impaciência.
— Largue as pernas dela. Deixe que eu a carregue, senão ficaremos a manhã toda nesse lugar, e não estou disposto a ouvir sua voz nem por mais um segundo.
Jonas assentiu. Sem qualquer cuidado, deixou os calcanhares de Clarice se chocarem contra o chão arenoso, fazendo um som seco. Abdias o olhou atravessado, condenando-o sumariamente. Tomou a moça em seus braços e seguiu numa caminhada apressada rumo ao vilarejo.
Os tímidos raios de sol apontavam para um vasto gramado perto do vilarejo. Parado, com sua figura imponente, de rosto vermelho e inchado, jazia Carlos, pai de Clarice. Ele erguia a cabeça, tentando localizar os homens que tinham sido escalados para resgatar sua filha.
De fato, era um homem que refletia a verdadeira imagem da bondade, com suas mãos cruzadas na altura do peito e rezando incessantemente. Depois de sua oração, pediu perdão a Deus por ter desejado um rapaz em vez de uma moça despudorada. Se tivesse sido atendido, teria noites para dormir e alguns fios de cabelo a mais para pentear.
No horizonte cinzento Abdias despontou, trazendo consigo Clarice, ainda desmaiada. Atrás dele, numa tentativa vã de alcançá-lo, caminhava Jonas, arrastando as pernas pelo gramado verdejante. Carlos correu em direção aos dois, capengo, tropeçando nos esparsos cascalhos, socando o chão com suas pernas pesadas.
— Clarice, querida! – bradou ele, com o olhar atônito. — Como ela está?
— Muito bêbada – disse Abdias, sem medir as palavras. — Mas não se preocupe, vai ficar boa logo.
— Graças a Deus. Ele ouviu minhas preces.
— Não esqueça de nos agradecer – protestou ele. — Suas orações não nos ajudaram a enfrentar esse frio e a longa caminhada.
— Ele está exagerando – interrompeu Jonas, enxugando o suor da testa. — Não estava tão frio assim, e a caminhada até que veio a calhar. Ele estava precisando perder alguns quilos.
Carlos sorriu, amenizando um pouco sua apreensão. Tomou Clarice em seus braços e a examinou, embora não tivesse a menor ideia do que ela tinha.
— Devo levá-la para casa? — perguntou ele, inseguro.
— Seria melhor que ficasse no consultório – respondeu Jonas.
— O doutor acabou de me dizer que não detinha medicamento capaz de curá-la. Seria sensato levá-la para minha casa. Lá poderei tratá-la, e não é segredo para ninguém que sou o único com o conhecimento necessário para recompor qualquer pessoa em semelhante situação.
— Por Deus, o que minha filha tem? – desesperou-se Carlos.
— Nada demais. Apenas ingeriu álcool em demasia, sem ter a medida do quanto poderia suportar sem embriagar-se. Deixe-a repousar, e logo ficará boa.
— Depois da forte ressaca que terá ao acordar? – completou Abdias, desdenhosamente. — Olhe, Carlos, você me conhece bem. Já cuidei de sua filha dezenas de vezes, obtendo sucesso em todas elas. Clarice ficará bem depois de algumas horas, com as doses regulares de minha garrafada.
Meio desconsertado, Carlos assentiu. Acreditava que Jonas seria capaz de cuidar de sua filha; porém Abdias mostrou-se mais persuasivo. Por fim, entregou Clarice a ele.
— Cuide bem dela. Sei que é uma desajuizada, uma perdida; mas ainda é minha filha. Depois do almoço irei visita-la.
— Sem problemas. Minha casa estará com as portas abertas a quem de boa vontade adentrá-la.
— Problema resolvido, agora preciso voltar para o meu consultório – disse Jonas, despedindo-se dos dois com um simples aceno.
O silêncio que pairava no vilarejo foi rompido pelos gritos do pequeno Wallace, que mais pareciam berros rouquenhos.
— Ela está bem! Ela está bem!

O Vilarejo EsquecidoOnde histórias criam vida. Descubra agora