A psicanálise faz uma suposição básica cuja discussão fica reservada ao pensamento filosófico e cuja justificação se encontra em seus resultados. Daquilo que chamamos de nossa psique (vida psíquica), conhecemos duas coisas: em primeiro lugar, o órgão físico e cenário dela, o cérebro (sistema nervoso); por outro lado, nossos atos de consciência, que são dados imediatamente e não nos podem ser esclarecidos por nenhuma descrição. Tudo o que está entre os dois nos é desconhecido; não há uma relação direta entre os dois pontos terminais de nosso conhecimento. Se ela existisse, no máximo forneceria uma localização exata dos processos da consciência e nada faria por sua compreensão. Nossas duas hipóteses partem desses fins ou começos de nosso conhecimento. A primeira diz respeito à localização. Supomos que a vida psíquica é a função de um aparelho ao qual atribuímos extensão espacial e composição por várias partes, ou seja, que imaginamos semelhante a um telescópio, um microscópio e afins. O desenvolvimento coerente de tal ideia, apesar de certa aproximação já tentada, é uma novidade científica. Chegamos ao conhecimento desse aparelho psíquico por meio do estudo do desenvolvimento individual do ser humano. Chamamos de isso a mais antiga dessas províncias ou instâncias psíquicas; seu conteúdo é tudo aquilo que é herdado, trazido com o nascimento, estabelecido constitucionalmente; sobretudo, portanto, os impulsos que provêm da organização física, impulsos que aqui encontram uma primeira expressão psíquica cujas formas nos são desconhecidas. Sob a influência do mundo exterior real que nos circunda, uma parte do isso experimentou um desenvolvimento especial. O que era originalmente uma camada cortical dotada dos órgãos para a recepção de estímulos e dos dispositivos para a proteção contra estímulos se transformou numa organização especial que desde então serve de mediadora entre o isso e o mundo exterior. A esse distrito de nossa vida psíquica demos o nome de eu. As principais características do eu. Em consequência da relação préformada entre a percepção sensorial e a ação muscular, o eu dispõe dos movimentos voluntários. Ele tem a tarefa da autoconservação; cumpre-a para fora, tomando conhecimento dos estímulos, armazenando experiências sobre eles (na memória), evitando estímulos demasiado intensos (por meio de fuga), confrontando estímulos moderados (por meio de adaptação) e por fim aprendendo a modificar convenientemente o mundo exterior em seu favor (atividade); cumpre-a para dentro em relação ao isso obtendo o domínio sobre as exigências dos impulsos, decidindo se deve admitir a satisfação dessas exigências, adiando tal satisfação para momentos e circunstâncias favoráveis no mundo exterior ou reprimindo totalmente suas excitações. Em sua atividade, o eu é guiado pelas considerações quanto às tensões de estímulo nele existentes ou nele introduzidas. A elevação dessas tensões geralmente é sentida como desprazer; sua diminuição, como prazer. Mas oque é sentido como prazer e desprazer provavelmente não são os níveis absolutos dessa tensão de estímulo, e sim algo no ritmo de sua modificação. O eu aspira ao prazer e quer evitar o desprazer. Uma intensificação esperada, prevista, do desprazer é respondida com o sinal de medo; o motivo dessa intensificação, quer ele ameace de fora ou de dentro, chama-se perigo. De tempos em tempos, o eu desfaz sua ligação com o mundo exterior e se retira ao estado de sono, no qual modifica consideravelmente sua organização. Do estado de sono cabe deduzir que essa organização consiste em uma distribuição especial da energia psíquica. Como precipitado do longo período de infância durante o qual o ser humano em desenvolvimento vive na dependência de seus pais, forma-se no seu eu uma instância especial em que essa influência parental tem continuidade. Ela recebeu o nome de supereu. Na medida em que esse supereu se separa do eu ou a ele se contrapõe, ele é um terceiro poder que o eu tem de levar em conta. Assim, uma ação do eu é correta quando satisfaz ao mesmo tempo as exigências do isso, do supereu e da realidade, ou seja, quando consegue conciliar suas reivindicações entre si. Os pormenores da relação entre eu e supereu se tornam inteiramente compreensíveis pela referência à relação da criança com seus pais. Naturalmente, na influência parental não agem apenas a índole pessoal dos pais, mas também a influência da tradição familiar, racial e popular por eles reproduzida, bem como as exigências do respectivo meio social por eles representadas. Da mesma forma, no curso do desenvolvimento individual o supereu acolhe contribuições da parte de posteriores continuadores e substitutos dos pais, como educadores, modelos públicos e ideais respeitados na sociedade. Vê-se que o isso e o supereu, apesar de sua diferença fundamental, apresentam a coincidência de representar as influências do passado: o isso, as do passado herdado, e o supereu, no essencial, as influências do passado tomadas de outras pessoas, enquanto o eu é determinado principalmente por aquilo que ele próprio vivenciou, ou seja, por coisas acidentais e atuais. Esse esquema geral de um aparelho psíquico também será admitido para os animais superiores, psiquicamente semelhantes ao homem. Cabe supor um supereu toda vez que, como no ser humano, existir um longo período de dependência infantil. É inevitável supor uma separação entre eu e isso. A psicologia animal ainda não abordou a interessante tarefa que daí resulta.