Qualidades Psíquicas

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Descrevemos a construção do aparelho psíquico, as energias ou forçasque atuam nele e observamos mediante um excelente exemplo de que formaessas energias, sobretudo a libido, se organizam numa função fisiológica queserve à conservação da espécie. Nada havia aí que justificasse o carátertotalmente peculiar do psíquico, desconsiderando-se, naturalmente, o fatoempírico de que esse aparelho e essas energias se encontram na base dasfunções que chamamos de nossa vida psíquica. Voltemo-nos à única coisacaracterística desse psíquico, àquilo que, segundo uma opinião muitodifundida, coincide com ele e exclui outras coisas.O ponto de partida para essa investigação é dado pelo fato daconsciência, fato incomparável que resiste a qualquer explicação e descrição.Apesar disso, quando se fala de consciência logo se sabe de imediato, apartir da experiência mais pessoal, o que está em questão. Para muitos,tanto na ciência como fora dela, basta supor que a consciência é, só ela, opsíquico, e então não resta outra coisa a fazer na psicologia senão distinguirdentro da fenomenologia psíquica entre percepções, sentimentos, processosde pensamento e atos de vontade. Mas esses processos conscientes,segundo a concordância geral, não formam séries sem lacunas, fechadas emsi mesmas, de modo que não restaria outra coisa senão supor processosconcomitantes do psíquico, físicos ou somáticos, aos quais se tem deconceder uma completude maior do que às séries psíquicas, visto que algunsdeles têm processos paralelos conscientes, mas outros não. Assim, énaturalmente óbvio na psicologia colocar a ênfase nesses processossomáticos, reconhecer neles o propriamente psíquico e buscar outraapreciação para os processos conscientes. Contudo, tanto a maioria dosfilósofos quanto muitas outras pessoas resistem a isso e declaram que umpsíquico inconsciente é um contrassenso.O que a psicanálise tem de fazer é precisamente colocar tal ênfase, e estaé a sua segunda hipótese fundamental. Ela declara que os supostos processossomáticos concomitantes são o propriamente psíquico, ao mesmo tempo emque desconsidera inicialmente a qualidade da consciência. Ela não estásozinha nisso. Alguns pensadores, como por exemplo Theodor Lipps,expressaram a mesma coisa nas mesmas palavras, e a insatisfação geral coma concepção usual do psíquico teve por consequência que um conceito deinconsciente reclamasse de forma cada vez mais urgente sua aceitação nopensamento psicológico, embora de maneira tão vaga e impalpável que nãoconseguiu influenciar a ciência.Parece que nessa diferença entre a psicanálise e a filosofia se trataapenas de uma questão indiferente de definição, de saber se devemos atribuiro nome "psíquico" a uma ou outra série. Na realidade, esse passo se tornoualtamente significativo. Enquanto na psicologia da consciência nunca se foialém daquelas séries lacunosas, aparentemente dependentes de outro lugar, aoutra concepção, a de que o psíquico é em si inconsciente, permitiu dar àpsicologia a forma de uma ciência natural como qualquer outra. Os processosde que ela se ocupa são em si exatamente tão incognoscíveis quanto os deoutras ciências, as químicas ou físicas, mas é possível determinar as leis a queobedecem, acompanhar sem lacunas suas relações e dependências mútuaspor longos trechos, ou seja, aquilo que é chamado de compreensão docampo de fenômenos naturais em questão. Não podem faltar aí novashipóteses e a criação de novos conceitos, mas não cabe desprezá-los comotestemunhos de nosso embaraço, e sim avaliá-los como enriquecimentos daciência; eles têm direito ao mesmo valor aproximativo que as respectivasconstruções intelectuais auxiliares em outras ciências naturais e aguardammodificações, retificações e uma determinação mais fina por meio daexperiência acumulada e peneirada. Então também corresponde inteiramenteà nossa expectativa que os conceitos fundamentais da nova ciência, seusprincípios (impulso, energia nervosa, entre outros), permaneçam por longotempo tão indeterminados quanto os das ciências mais antigas (força, massa,atração).Todas as ciências se apoiam em observações e experiências mediadaspelo nosso aparelho psíquico. Porém, visto que nossa ciência tem essemesmo aparelho por objeto, a analogia acaba aqui. Fazemos nossasobservações por meio desse mesmo aparelho perceptivo, precisamente como auxílio das lacunas no psíquico, complementando por meio de deduçõesevidentes o que foi omitido e traduzindo-o em material consciente. Assim,produzimos como que uma série complementar consciente do psíquicoinconsciente. A certeza relativa de nossa ciência psíquica se apoia naobrigatoriedade dessas conclusões. Quem se aprofundar nesse trabalhodescobrirá que nossa técnica resiste a qualquer crítica.Durante esse trabalho, impõem-se a nós as distinções que designamos dequalidades psíquicas. Não precisamos caracterizar o que chamamos deconsciente; é o mesmo que a consciência dos filósofos e da opinião popular.Tudo o mais que for psíquico constitui para nós o inconsciente. Logo somoslevados a supor nesse inconsciente uma importante separação. Algunsprocessos se tornam facilmente conscientes, então deixam de sê-lo, maspodem se torná-lo outra vez sem esforço; como se diz, podem serreproduzidos ou recordados. A propósito disso, somos lembrados de que aconsciência em geral é apenas um estado altamente fugaz. O que é conscienteo é por apenas um momento. Se nossas percepções não confirmam isso,trata-se apenas de uma contradição aparente; ela provém do fato de osestímulos da percepção poderem persistir por longos períodos, de modo quea percepção possa se repetir. Todo esse estado de coisas se torna claro nocaso da percepção consciente de nossos processos de pensamento, que, éverdade, também persistem, mas que podem igualmente ter se escoado numinstante. Por isso, preferimos chamar de "capaz de consciência" ou pré-consciente tudo o que for inconsciente e se comportar dessa maneira,trocando tão facilmente o estado inconsciente pelo consciente. A experiêncianos ensinou que dificilmente há um processo psíquico, por mais complicadoque seja, que ocasionalmente não poderia permanecer pré-consciente,embora em geral penetre até a consciência, conforme dizemos.Outros processos e conteúdos psíquicos não têm um acesso assim tãofácil à conscientização, mas têm de ser deduzidos, descobertos etraduzidos para a expressão consciente da maneira descrita. Para elesreservamos o nome de inconsciente propriamente dito. Atribuímos aosprocessos psíquicos, portanto, três qualidades: ou são conscientes, pré-conscientes ou inconscientes. A separação entre as três classes de conteúdosque portam essas qualidades não é absoluta nem permanente. O que é pré-consciente se torna consciente, como vemos, sem nossa intervenção; oinconsciente pode ser tornado consciente por meio de nosso esforço, sendoque ao fazê-lo podemos ter a sensação de que muitas vezes superamosresistências muito fortes. Quando fazemos essa tentativa em outro indivíduonão podemos esquecer que o preenchimento consciente de suas lacunasperceptivas, a construção que lhe damos, ainda não significa que tornamosconsciente nele o conteúdo inconsciente em questão. Significa, isso sim, queesse conteúdo existe nele de início numa fixação dupla: na reconstruçãoconsciente de que tomou conhecimento e, além disso, em seu estadoinconsciente original. Na maioria das vezes, nosso esforço continuadoconsegue tornar-lhe consciente esse inconsciente, o que leva as duas fixaçõesa coincidirem. A medida de nosso esforço, segundo a qual avaliamos aresistência à conscientização, é diferente em cada caso. Aquilo que notratamento analítico, por exemplo, constitui o sucesso de nosso esforçotambém pode acontecer de maneira espontânea; um conteúdo normalmenteinconsciente pode se transformar em pré-consciente e então se tornarconsciente, tal como acontece em grande escala nos estados psicóticos.Concluímos disso que a manutenção de determinadas resistências interiores éuma condição da normalidade. Em geral, tal diminuição das resistênciasacompanhada da consequente penetração de conteúdo inconsciente sucedeno estado de sono, o que produz a condição para a formação dos sonhos.De maneira inversa, um conteúdo pré-consciente pode se tornarmomentaneamente inacessível, ser bloqueado por resistências, tal como é ocaso no esquecimento momentâneo (quando algo escapa da memória), ouum pensamento pré-consciente pode mesmo ser reenviadomomentaneamente ao estado inconsciente, o que parece ser a condição dochiste. Veremos que tal retransformação de conteúdos (ou processos) pré-conscientes para o estado inconsciente desempenha um grande papel nacausa das perturbações neuróticas.Apresentada dessa maneira geral e simplificada, a teoria das trêsqualidades do psíquico parece mais uma fonte de inabarcável confusão queuma contribuição ao esclarecimento. Porém, cabe não esquecer que ela nãoé propriamente uma teoria, e sim um primeiro relatório de prestação decontas sobre os fatos de nossas observações, que ela se atém o maispróximo possível a esses fatos e não tenta esclarecê-los. As complicaçõesque ela descobre poderão tornar compreensíveis as dificuldades especiaisque a nossa pesquisa tem de combater. Porém, é provável que também nosfamiliarizemos mais com essa teoria quando seguirmos as relações que seproduzem entre as qualidades psíquicas e as províncias ou instâncias doaparelho psíquico supostas por nós. No entanto, também essas relações sãotudo menos simples.A conscientização é ligada sobretudo às percepções que nossos órgãossensoriais obtêm do mundo exterior. Para a consideração tópica, trata-seportanto de um fenômeno que se passa na camada cortical mais externa doeu. Contudo, também recebemos notícias conscientes do interior do corpo,os sentimentos, que inclusive influenciam nossa vida psíquica de maneira maisimperiosa do que as percepções exteriores, e, sob certas circunstâncias, osórgãos sensoriais também fornecem sentimentos, sensações de dor, além desuas percepções específicas. Porém, podemos manter a afirmação feitaacima, visto que essas sensações, como são chamadas para diferenciá-lasdas percepções conscientes, partem igualmente dos órgãos terminais e queconcebemos todos estes como prolongamento, como ramificação da camadacortical. A única diferença seria que, para os órgãos terminais da sensação edos sentimentos, o próprio corpo tomaria o lugar do mundo exterior.Processos conscientes na periferia do eu, todos os outros inconscientesno eu: eis o estado de coisas mais simples que teríamos de supor. É possívelque as coisas realmente se passem assim no caso dos animais; no caso dohomem, acrescenta-se uma complicação pela qual também processosinteriores do eu podem adquirir a qualidade da consciência. Isso é obra dafunção da linguagem, que estabelece uma ligação firme entre conteúdos do eue restos mnêmicos de percepções visuais, mas em especial acústicas. A partirdaí, a periferia perceptiva da camada cortical pode ser excitada numaamplitude muito maior também a partir de dentro, processos interiores taiscomo fluxos de representações e processos de pensamento podem se tornarconscientes, e se faz necessário um dispositivo especial que distinga entre asduas possibilidades, a assim chamada prova de realidade. A equiparaçãopercepção-realidade (mundo exterior) se tornou inválida. Os erros que agoraacontecem facilmente, e no sonho regularmente, são chamados dealucinações.O interior do eu, que abrange sobretudo os processos de pensamento,tem a qualidade do pré-consciente. Esta é característica do eu, cabe a elesomente. Porém, não seria correto fazer da ligação com os restos mnêmicosda linguagem a condição para o estado pré-consciente; este é, antes,independente disso, embora essa condição linguageira permita uma conclusãosegura quanto à natureza pré-consciente do processo. O estado pré-consciente, por um lado caracterizado pelo acesso à consciência, e, poroutro, pela conexão com restos de linguagem, é, afinal, algo peculiar, cujanatureza não se esgota nessas duas características. A prova disso é quegrandes parcelas do eu, sobretudo do supereu, ao qual não se podecontestar o caráter de pré-consciente, na maioria das vezes permaneceminconscientes no sentido fenomenológico. Não sabemos por que tem de serassim. Tentaremos abordar mais adiante o problema de saber qual é a realnatureza do pré-consciente.O inconsciente é a única qualidade dominante no isso. O isso e oinconsciente estão associados de maneira exatamente tão íntima quanto o eue o pré-consciente, tratando-se até mesmo de uma relação ainda maisexclusiva. Um olhar retrospectivo à história do desenvolvimento da pessoa ede seu aparelho psíquico nos permite constatar uma distinção significativa noisso. Originalmente, tudo era isso; o eu se desenvolveu a partir do isso pelainfluência continuada do mundo exterior. Durante esse lento desenvolvimento,certos conteúdos do isso passaram ao estado pré-consciente e assim foramaceitos no eu. Outros permaneceram inalterados no isso, na condição de seunúcleo dificilmente acessível. Porém, durante esse desenvolvimento o jovem edébil eu reenviou certos conteúdos já aceitos ao estado inconsciente, desistiudeles e se comportou exatamente da mesma maneira em relação a algumasimpressões novas que poderia ter aceitado, de modo que elas, recusadas,apenas no isso puderam deixar uma marca. Considerando sua origem,chamamos de recalcado esta última parcela do isso. O fato de nem semprepodermos distinguir nitidamente entre as duas categorias no isso faz poucadiferença. Elas coincidem aproximadamente com a separação entre coisasoriginalmente inatas e coisas adquiridas durante o desenvolvimento do eu.Porém, se nos decidimos pela decomposição tópica do aparelhopsíquico em eu e isso, com a qual corre paralela a diferença de qualidadeentre pré-consciente e inconsciente, e admitimos essa qualidade apenas comoum indício da diferença, não como a essência dela, no que consiste então averdadeira natureza do estado que se revela no isso pela qualidade doinconsciente e no eu pela do pré-consciente, e em que reside a diferençaentre ambas?Bem, nada sabemos a respeito disso, e nossas escassas compreensõesse destacam de maneira bastante lastimável sobre o obscuríssimo pano defundo dessa ignorância. Aqui nos aproximamos do verdadeiro segredo, aindanão revelado, do psíquico. Supomos, tal como nos acostumamos a fazer emoutras ciências naturais, que uma espécie de energia atue na vida psíquica,mas nos faltam todos os pontos de apoio para nos aproximarmos de seuconhecimento por meio de analogias com outras formas de energia.Acreditamos reconhecer que a energia nervosa ou psíquica exista sob duasformas, uma facilmente móvel e outra preferencialmente ligada, falamos deinvestimentos e superinvestimentos dos conteúdos e ousamos inclusive fazer asuposição de que um "superinvestimento" produza uma espécie de síntese dediferentes processos por meio da qual a energia livre é transformada emenergia ligada. Não fomos mais longe; em todo caso, nos atemos à opiniãode que a diferença entre o estado inconsciente e o pré-consciente também seencontra em tais relações dinâmicas, donde se derivaria um entendimento deque um desses estados pode ser convertido no outro de maneira espontâneaou por meio de nossa colaboração.Porém, por trás de todas essas incertezas repousa um fato novo cujadescoberta devemos à investigação psicanalítica. Ficamos sabendo que osprocessos no inconsciente ou no isso obedecem a leis diferentes dasobedecidas por processos no eu pré-consciente. Chamamos essas leis emsua totalidade de processo primário, em oposição ao processo secundário,que regula os fluxos no pré-consciente, no eu. Dessa forma, no fim, o estudodas qualidades psíquicas não se mostrou infrutífero.

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