A boneca

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  Em uma época da infância achei que estava enlouquecendo. Vivi uma situação em que não pude contar com ninguém. Somente eu e o mais absoluto horror na minha própria casa. Isso me fez temer pela minha vida. Encarei sozinha, um terror que pouca gente sequer ousar crer. Somente após alguns anos superei os acontecimentos a ponto de poder falar sobre o mesmo. Só não suporto ver ou ouvir historias semelhantes e não gosto de bonecos, bonecas. Isso desde os nove anos de idade. Não, não sonhei. Tão certo quanto respiro, tudo aconteceu e eu agradeceria a menor possibilidade de que eu tivesse sonhado com tudo. O tema recorrente das narrativas de terror, brinquedos possuídos, ainda mais no cinema, sempre me chama muito a atenção, mas isso provoca uma repulsa irresistível. Não que não me sinta atraída por histórias assustadoras. Como muitas pessoas, me empolgo em ver filme ou ler algo de tom sobrenatural, só essa temática, à parte, me é absolutamente execrável. Creio que saí incólume da experiência. Ficou apenas essa sequela: não suportar histórias de bonecos, bonecas enfeitiçados. Eu tinha oito anos. Meus pais trabalhavam fora o dia todo. Minha irmã, mais velha que eu sete anos, era distante, vivia suas aventuras de adolescente rebelde. Então eu vivia a minha infância sozinha. Não me importava muito e acho que se alguém me dissesse que eu era solitária naquela época, eu ficaria surpresa. Como toda menina, eu gostava de brincar com bonecas. Tinha várias. Talvez uma tentativa de compensação dos meus pais que, ganhavam um bom dinheiro, mas viviam sem muito tempo pra mim. Foi minha mãe que trouxe a boneca. Disse que seu nome era Vivian. Não questionei que a boneca já tivesse um nome. Ela era diferente das demais. Toda feita de pano, costurada a mão. Foi paixão a primeira vista. No mesmo dia, deixei todos os brinquedos de lado, e fiquei brincando só com Vivian. À noite meu pai me pôs na cama e eu abracei a minha nova amiga com bastante alegria. Lembro que meu pai perguntou: - Qual o nome dela? - Achei muito atencioso da parte dele perceber que a boneca era nova. - Essa é a Vivian - eu disse. - Onde você arranjou ela? - Achei estranha a pergunta e disse que tinha sido minha mãe, claro. Ele deu de ombros, me beijou na testa, desejou boa noite e se foi. Ele era um homem muito atencioso, apesar de quase não ter tempo para mim. Eu recordo que apertei Vivian contra meu peito e senti ela quente e pulsante. Tive pesadelos naquela noite. Algo que não lembro mais, depois desses anos todos. Sei que isso foi se repetindo. E uma noite acordei e vi que a boneca não estava comigo na cama. Vivian estava sobre o criado mudo e seus olhos pareciam acesos. Fiquei absolutamente paralisada e não tive coragem de pedir ajuda ou sair dali. Cobri o rosto com o lençol e depois olhei por uma pequena brecha. A boneca continuava ali e seus olhos pareciam ainda mais brilhantes. Eu tremia toda, dos pés a cabeça. Chorava, mas sem emitir um único gemido. Fiquei acordada até não poder mais. Sempre fechando e abrindo os olhos para conferir o pavor ali, manifesto no meu brinquedo. Repeti parte das rezas que tinha aprendido e dormi de cansaço depois de algum tempo. No outro dia fiquei pensando em como me livrar da boneca, mas na minha timidez de criança não tinha coragem de fazer algo mais radical como jogar a boneca no lixo ou destruí-la. Acreditava que mamãe ficaria brava comigo por isso, era certo que ela não acreditaria naquela história de boneca de olhos acesos. Bruna, minha irmã quando estava em casa, passava o tempo pendurada no telefone e simplesmente ignoraria qualquer pedido de ajuda. Ainda assim tomei uma providência que julguei eficiente. Joguei Vivian na garagem, dentro da mala de ferramentas de papai. Uma mala com fechos que eram difíceis de abrir. A noite acordei pela madruga e vi a boneca olhando para mim. E então por um mês eu e a boneca jogamos aquele jogo: Eu a escondia nos mais diversos cantos e ela voltava pra o meu quarto e me despertava com seus olhos terríveis. Eu sempre sentia uma presença ruim no quarto e quando dormia, tinha sempre pesadelos. Comecei a ir mal na escola e a ficar doente. Bá, a empregada da minha casa, uma espécie de segunda mãe pra mim, me olhava com preocupação. - Hoje ela quase não comeu nada, D. Marta - dizia para minha mãe. Eu sabia que tudo era culpa da boneca e que nenhum adulto acreditaria em mim. Uma vez sonhei que Vivian tinha matado toda a minha família. No sonho eu chegava até a sala e via os corpos de meus pais, da minha irmã e de Bá, amontados, despidos e ensaguentados. Aquela era uma imagem por demais cruel para simplesmente brotar da minha imaginação. Hoje sei disso. Na época eu apenas senti pavor. Eu acordei e ouvi a voz do que quer que estivesse naquela boneca. A mensagem: eu vou matar você. Nesse dia corri e fui para o quarto dos meus pais. Como eu nunca havia feito isso, papai - acordado àquela hora - encarou como algo normal. Apenas disse que ia deixar eu ficar com a condição de que isso não se repetisse. Mas o medo fez nascer também a determinação. No outro dia, num domingo a tarde, eu levei Vivian até o quintal, derramei álcool nela e pus fogo. Aquela coisa se contorceu e jogou um pedaço de pano flamejante que atingiu meu pé. Fez uma queimadura pequena, mas profunda. Ainda hoje tenho a marca. Dormi muito bem aquela noite. Esperei minha mãe perguntar sobre a boneca, mas ela sequer percebeu. Na verdade, ela parecia mais distante naqueles dias. Havia tantos brinquedos, só na minha mente de criança que minha mãe ia sentir falta de uma boneca específica. Logo perdi o interesse por bonecas e bonecos. Guardei-os todos numa caixa sob olhos espantados dos meus familiares. Só me distraia com livros e os pequenos pôneis de brinquedo que enfeitavam minha estante. Disse pra minha mãe que não queria mais brincar com bonecas. Ela nunca questionou meu desejo e me encheu de livros e outros pôneis. Anos depois quando contei para ela essa história, ela disse que lembrava da boneca, mas que não tinha me dado. Também sabia que não havia sido meu pai, mas acreditava que tinha sido a Bruna ou a Bá. - Foi a senhora que me deu, tenho certeza - falei. Ela disse que era uma loucura, pois lembrava que na época que tinha visto a boneca de pano, fora logo depois de ficar mais de uma semana sem vir para casa, pois tivera sérios problemas com papai e havia ido pra casa da irmã.  

CREEPY CREEPYPASTAOnde histórias criam vida. Descubra agora