Em um canto do cômodo repleto de prateleiras e livros, a moça de densos e escuros cabelos permanecia sentada. Apesar de já ter terminado a pesquisa para o trabalho de história, Luana via naquele lugar um refúgio para suas angústias. Através das páginas de um antigo romance sobre viagens ao redor do mundo, a adolescente quase podia esquecer das dores de sua alma e corpo.Os dedos finos passeavam pelas folhas demoradamente. Tateavam com cuidado e atenção as páginas responsáveis por criar em sua mente cenários dos quais nunca vira antes. Poderia passar o resto da tarde ali, mas não queria deixar a tia preocupada. A senhora de feições gentis já havia feito muito por ela e pelo irmão mais novo. Tudo o que Luana menos queria era causar tristeza em mais alguém.
Ao organizar os cadernos e livros na mochila surrada, Luana sentiu que estava sendo observada. A mesma sensação estranha que acontecia durante as aulas. Olhou para os lados, mas os poucos alunos no ambiente estavam concentrados em seus notebooks e celulares.
Ao devolver o livro sobre revolução industrial à bibliotecária, um pequeno bilhete caiu de dentro do objeto.
Seu sorriso, embora raro, tem o poder de iluminar o mundo inteiro.
Luana olhou abismada para o pequeno papel. Há algumas semanas havia recebido mensagens como aquelas entre seus pertences escolares, o que a fazia deduzir que era de alguém de sua turma. No entanto, nem um dos presentes ali, estudava em sua classe. Enquanto tentava descobrir como alguém colocara aquele bilhete no livro sem que ela percebesse, viu um vulto passar à sua direita. Ao levantar os olhos apenas viu alguém de moletom preto e boné vermelho.
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As marcas ainda estavam recentes e apesar do calor, Luana usava agasalho para o colégio. Ninguém questionava o motivo dela usar aquela roupa em pleno verão, mas também ninguém se importava com a garota recém-chegada na cidade.
Sua tia Magna sempre questionava se ela estava tomando seus remédios nos horários certos e como estava sendo na terapia. Luana sempre respondia algo positivo, apesar de que seu interior dizer totalmente o oposto. Na maior parte do tempo, tudo o que ela queria era sair correndo, sem rumo, para um lugar distante e nunca mais voltar. Porém ela sabia que isso não resolveria seu tormento.
Luana se sentava na fileira próxima a porta e era sempre a primeira a ir embora. Não havia feito amigos, apesar dos dois meses no Colégio Pedro Alcântara, onde ganhou uma bolsa pela tia ser professora.
Quando o professor de português pediu que fizesse um trabalho em dupla, a garota sentiu falta de ar. Não queria ter que lidar com alguém que lhe encheria de perguntas intermináveis sobre sua vida no interior e o porquê de ir morar com a tia. Havia coisas que eram dolorosas demais para serem mencionadas.
Cabisbaixa e com o olhar fixo no livro, sentiu alguém se aproximar. O garoto alto perguntou se podia se sentar com ela. Luana apenas assentiu.
Ele sentava na fileira ao lado dela a duas cadeiras atrás. Parecia bem tímido e algumas vezes Luana testemunhou o garoto ser atacado pelos outros rapazes com palavras de escárnio sobre sua aparência.
Mateus era alto e robusto, possuía a pele negra e lustrosa. O rosto liso e sem espinhas, raro em alguém de sua idade. Luana não tinha observado que ele era o único garoto negro em sua turma e um dos poucos do colégio particular mais caro da cidade. Sua cor, que para Luana era linda como uma noite sem estrelas, era motivo de críticas assim como seu excesso de peso.
Ao abrirem os cadernos para a proposta de redação, Luana notou que a caligrafia do jovem era idêntica à dos bilhetes recebidos.
Assim que o sinal tocou encerrando as aulas, Luana seguiu Mateus que saiu apressado em direção à saída.
— Ei, espere. Preciso te perguntar uma coisa.
— Eu tenho que ir trabalhar.
— Foi você quem escreveu isto? — ela lhe entregou o bilhete que encontrou no livro de história.
Ele não disse nada. Apenas abaixou os olhos.
— Por que escreveu para mim?
— Porque acho você diferente. — Mateus a olhou com doçura — Quer dizer, diferente de um jeito bom, de um jeito que nunca vi antes.
— Eu sou esquisita.
— Não. Você é especial.
— Vai continuar escrevendo para mim? — Luana encarou o bilhete ainda nas mãos dele.
— Você quer que eu pare?
— Não.
Mateus sorriu. E sem perceber, Luana estava sorrindo junto.
Ele tirou do bolso um pequeno papel e lhe entregou junto com o primeiro bilhete.
Antes que Luana terminasse de desdobrar o pedaço de uma Folha de caderno, ele partiu, deixando-a com um sentimento diferente e especial, que ela não conhecia.
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— Você escreve bem. Deveria expor isso para outras pessoas — Luana disse, atenta aos movimentos de Mateus.
— Tipo escrever um livro?
— Tipo isso — ela riu enquanto ele terminava de limpar o balcão.
Nos últimos dias, ela o encontrava na lanchonete onde ele trabalhava e caminhavam juntos até a casa dela que ficava a poucos quarteirões da dele. Também iam juntos para o colégio de ônibus. Luana falava sobre as histórias que lia em seus livros e Mateus ouvia com atenção cada sílaba da garota que aos poucos deixava de ser tão misteriosa. Os cabelos negros e a pele alva davam à Luana um ar enigmático que despertara a atenção do rapaz de coração gentil.
— Você realmente me acha bonita? — ela questionou após ler o par de versos onde ele ressaltava a beleza de seu olhar.
Mateus lhe entregou o bilhete assim que ele encerrou o expediente e caminhavam para casa.
— Acho — Ele disse firmemente. Porém, ficou um tempo pensativo. — Você, talvez algum dia, ficaria com alguém como eu? Um cara gordo e tímido que não é interessante como os caras legais do colégio?
Mateus continuou a andar, embora envergonhado em dizer aquelas palavras a Luana. Ao menos ela deveria saber o que ele sentia, pensava o garoto que não percebeu que a amiga não mais o seguia.
— Você é o cara mais incrível que eu já conheci na vida. Mas... — Luana estava parada, com o olhar vago e triste. O modo como ela encolhia o corpo, ao pronunciar a última palavra, lhe causava uma aparência ainda mais frágil.
— Mas o quê? — Mateus se aproximou, preocupado com a repentina mudança de humor da garota. Luana não era uma menina sorridente, mas os poucos sorrisos que Mateus conseguia colher eram valiosos demais para ele. Seria capaz de fazer qualquer coisa para que Luana não precisasse se esforçar para fingir que estava bem.
— Eu não posso me envolver com ninguém — ela disse, enquanto tentava limpar o rosto com a manga do moletom. — Eu sou suja, Mateus. Ninguém quer uma garota suja.
Luana levantou os olhos cheios de lágrimas. Mateus tentou abraçá-la, mas ela recuou diante de seu toque, como um animalzinho indefeso. Ela tremia. Mateus observou, porém não podia fazer nada para impedir que ela corresse, fugindo com seus medos e segredos.

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O Cheiro das Águas
Teen FictionAlerta de gatilhos! Este conto contém temas como automutilação, depressão e suicídio. Luana é nova na escola. Apesar de muito jovem, a adolescente carrega um fardo pesado demais para suportar. Tentando lutar contra suas próprias dores, ela encontra...