Um estilo lírico de canção era ouvido ao centro daquele palco revestido de madeira polida. As cortinas vermelhas e vibrantes eram revestidas com rendas douradas em toda sua extremidade, enriquecendo o cenário da apresentação teatral. As luzes na plateia haviam sido reduzidas, deixando que os holofotes acentuassem a "pitonisa" em sua apresentação lírico-europeia. Cada nota que da sua boca saía, harmonizava ainda mais o desejo de sentir a música, não nos ouvidos. Não. Seu desejo era de sentir a música correr pelo seu âmago, como se fizesse parte dela, e ela dele – sim, dele –.
Lá fora o céu era coberto por nuvens carregadas de chuvas torrenciais, aguardando uma ordem para que despejassem suas medidas cúbicas sobre o deslumbrante teatro de uma comarca insignificante em algum lugar da América Latina.
Por que isso importava? Porque sim. Era evidente que aos poucos o cenário se estruturava para receber um episódio absolutamente grotesco. Não era o teatro, nem a música, nem a plateia, nem a companhia – nem a companheira – e muito menos a parca luz que reluzia. Não. Era por cada um dos elementos que compunham o momento, a situação e a história de um ser esquecido pelo sentimento da vida. Era pelas perdas injustas e pelas vontades privadas.
"Agora sinto a felicidade..." disse o jovem ao sentir todo o ambiente ao seu redor. Pensar? Sim, ele já havia pensado sobre muitas coisas, na verdade, sobre tudo. Ele já havia feito introspecções profundas em seu ser, e já havia ponderado sobre todas as questões as quais havia chegado. Todas sempre o direcionavam para uma mesma conclusão. Essa era a melodia. A melodia da conclusão. Essa era a resposta. Essa era a confirmação. A melodia unida à voz lírica fazia sua pele arrepiar e seu corpo estremecer por inteiro. Ele sentia cada tom, cada toque. A melodia – belíssima por sinal – parecia encantar sua corpulência. Era como se a composição da peça teatral enegrecesse seu intelecto de maneira tão perfeita que parecia ser revelação divina. Mas não, não era. Era o episódio excêntrico que se repetiria, eventualmente mais intenso. Casualidade essa que, embora não se denotasse, não lhe dava prazer algum. Não, não alimentava algum tipo de deleite demente. Aliás, ele em nada se assemelhava a um desatinado. Fato era que em nada se assemelhava a ninguém... – A ninguém –.
"Sem a felicidade em viver, o corpo padece?" Falava ele consigo mesmo, ou talvez com a música, ou talvez com a pitonisa, ou talvez com a parca luz, ou, talvez, com a escuridão. "Sim, padece. Padece aos poucos. Padece por etapas e em níveis cada vez mais profundos". Era como se ele mesmo se explicasse, era como se ele mesmo se decifrasse.
A pitonisa dava início a última estrofe acompanhada pela melodia. Os holofotes oscilavam lentamente entre três cores quentes, criando uma nuance de sentimentos a todos que assistiam à peça. Esse era o início do fim, e para comemorar, um relâmpago foi visto rasgando o céu fechado, fazendo a vez para que a porção de água inundasse a comarca e abluísse significativamente os pecados que impregnavam seu solo. Os pecados do jovem de meia idade também eram lavados com a chuva. Agradável seria se o aguaceiro lavasse dele também os pecados ainda por cometer.
A quantidade de oxitocina e anandamida não era suficiente para sobrepor os pensamentos trevosos que dominavam sua existência vez ou outra, como esta.
"Se a luz faltar, a luz encontrarei", comentou o indivíduo, supostamente pela chuva e a possível queda de energia. Não, era engano pensar que ele se referia à eletricidade. Era engano, também, pensar que ele referenciava à vida como uma passagem alegre pela esfera terrestre. Para ele – de maneira profundamente individual – a vida havia se tornado um erro. Não sempre, apenas vez ou outra.
Um trovão rompeu as barreiras do silêncio externo – apesar da fina garoa –, e o raio finalmente encontrou o solo, liberando com ele a torrente de água reservada para o desfecho do evento.
"Chuva a cântaros... É próprio de encerramentos", comentou o juvenil, porém, experiente rapaz. Levantou-se para aplaudir a esmerada peça musical assim como todos a sua volta. Aos poucos o auditório esvaziava-se, liberando um grande fluxo de pessoas pelas saídas principais. A voz encantadora já não era mais ouvida, nem os instrumentos de corda que a completavam com sua melodia. Ele ouvia, ao invés disso, as grandes gotas caírem incessantemente sobre as altas vidraças, as quais revelavam os constantes relâmpagos correndo pelos céus agora aterrorizantes. A essa altura ele já estava só. O desespero tomou conta – diga-se de súbito – de seu peito como uma jura inexorável de vingança.
"Oh, Deus... Ajude-me!" sussurrou o moço, com a agonia de centenas detida em seu corpo. Aquela era a oscilação da felicidade. Por quê? Por que agora, inesperadamente lhe atacara? Por que, – oh, Deus – não lhe poupara de tamanha crueldade? Quem, por ventura, seria seu esteio, além da aveludada poltrona de um anfiteatro? Quem suportaria condescender com tamanha impiedade? Quem poderia?
A agonia abrupta aos poucos era exalada pelas narinas e o peito experimentava novamente – e vagarosa – a leveza. Agora as gotas não caíam apenas dos céus, mas também das pupilas dilatadas – e exaustas – dele. Os joelhos que antes estavam entravados, agora trêmulos e débeis, engenhavam os pés para frente – calma e lentamente – até o fim do alinhamento de assentos. Tão logo saíra do anfiteatro, as luzes se apagaram, evidenciando o encerramento do expediente. Guarda-chuva? Não, ele não trouxera seu guarda-chuva consigo e não, não havia um automóvel particular para conduzi-lo à sua residência.
A tempestade bradava aos trovões enquanto as enxurradas corriam rua afora. A felicidade – leve e breve – assim como a agonia, já não eram mais presentes. A ansiedade agora fazia sua morada no peito cansado, e com o ranger de dentes introduzia a primeira passada no dilúvio. O blazer parcialmente impermeável recebia – assim como o chapéu – a aguaceira sem resmungo, inclusive as enxurradas dos veículos e transportes públicos que ocasionalmente por ali passavam.
"Talvez seja melhor me jogar, pensarão que foi acidente", cogitou o rapaz. Tão novo, e tão desafeiçoado. "Vai passar... Essa crise passará", ele murmurejou logo em seguida, "Não sou doente, nem suicida". Não, de fato não era doente de nada, mas sofria intensamente com tudo. Com tudo que lhe fora tirado injustamente. Com tudo que lhe fora negado desde infante. Com todas as surras gratuitas na adolescência, fossem físicas ou verbais. Com as perseguições sexuais. Com a solitude afeto-emocional, – abandonado pelo sentimento da vida –. Abandonado pelo próprio Criador, com suas infinitas angústias diárias, dignas das autoquírias infligidas. – As autoquírias... –.
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AUTOQUÍRIA - UM CONTO SOBRE A SANIDADE
Historia CortaUm teatro, uma apresentação lírica e as sombras psicológicas de um homem (in)sano.