E Ditadura!

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"E Ditadura!"

Julho, 2018

O Sol iluminava o Rio de Janeiro de um jeito único. Como se fosse uma conversa, entre velhos amigos cheios de intimidade. Fazia meses que eu não visitava a cidade tropical, o sentimento de saudade era quase sólido.

Enquanto eu andava pelas velhas ruas, com um olhar de estranheza, sem reconhecer como o tempo passou tão rápido, eu lembrava de mim mesmo, naqueles dias de verão surfando e me divertindo, do fusca do velho Geraldo, que eu fazia de táxi para meus amigos nos dias quentes de verão, e os cabelos de Carolina, que batiam com o vento na janela, e seu rosto delicado era iluminado. Ah, aqueles cabelos escuros de Carolina enchiam minhas memórias de uns tempos pra cá, aquele lembrete constante do subconsciente. "É, Chico, você nem conseguiu a chance de fazer Carolina virar uma lembrança longe, dessas que você percebe que foram boas que aconteceram. Você nem sequer tentou fazê-la ser uma lembrança." Como eu era um leigo, o mais assíduo dos desinformados. Aquela garota única bem diante de mim, e eu agindo como um cego e surdo, sem ver e ouvir a bela Carolina.

Você era a minha garota de Ipanema, Carolina. Eu só demorei até entender. E eu faria de tudo, para olhar nos olhos escuros e puxados de Carolina e declarar aos quatro ventos "Ah, e se você soubesse que quando você passa o mundo inteirinho se enche de graça e fica mais lindo".

Fevereiro, 1980

-- Ah, Chiquinho, eu não sei não. A Carolina tem esses papos de não querer compromisso, mas eu sei que aquele olhinho não mente. A menina quer o Betinho só pra ela, né? - Estamos na lanchonete do pai de Roberto, dessas que tem cheiro de cozinha e casca de coco nos fundos. A lanchonete era um ponto de encontro meu e de Beto, desde que tínhamos oito. E, agora que Beto trabalha aqui, a lanchonete se tornou praticamente minha casa.

Meus olhos vagavam pela lanchonete, sem prestar toda a atenção em Beto. Apesar de ótimo amigo, e um perfeito arco-íris para os dias de tempestade, o Beto não tinha noção. Ele adotava o lema de que a vida era essa peça, feita para improvisar, cair e se reerguer, mas esquecia que o público um dia se cansaria das mancadas enormes do Beto.

-- E você perguntou isso pra ela, Beto? - questionei, já sabendo a resposta.

-- É, ué! - ele deu aquele sorrisinho de lado, que se desmanchou com o tempo. -- Mas ela não respondeu não, cara. Eu acho que ela até riu. E o que eu falei tem cara de piada, irmão?

Eu ignorei. No jeito extrovertido do Beto, tudo parecia piada. Ele sabia, eu sabia, todo o mundo sabia. Era conhecimento básico, do tipo: saber ler, escrever, fazer as quatro operações da matemática e entender que tudo que o Beto fala é piada.

Julho, 2018

O telefone tocava, naquele toque que imitava águas caindo, ou qualquer besteira. Uma enorme ironia: esse aparelho sem teclas, rosto propaganda da tecnologia atual, "e ainda por cima, gasta aproximadamente 1.270 litros de água para a produção de um único Smartphone!", Carolina provavelmente declama para seus filhos e marido nos dias de hoje, mantendo seu título como a rainha de conhecimento inútil.

Será que Carolina havia casado? Aquele espírito livre da Yamamoto de dezesseis anos não se encaixava com alianças e crianças.

Mas minha pinta de surfista não combinava com um diploma de contabilidade e aqui estamos.

-- Alô? - lembrei-me de atender, provavelmente no último toque que aquele minicomputador daria antes de me avisar que a chamada não foi atendida.

-- PAI! AFASTA DE MIM ESSE CÁLICE! - a voz até então desconhecida gritou do outro lado da tela, com aquele timbre de fumante.

-- Ô, Roberto! E quando que você vai superar essa música, hein? A velhice já bate, o alzheimer chega em dois tempos! - falei feliz, com aquele meu amigo de longa data.

Roberto nasceu e foi criado no Recreio, prédio vizinho ao meu. Me lembro de encontrar com eles todos os dias, e dali ter se formado esse laço inquebrável. Quando o pai morreu, ele quase que se mudou para minha casa, onde encontrou todo o apoio que precisava, enquanto a mãe, que ficou em fase de negação pela morte do marido por anos, parecia sequer notar o filho em casa.

-- Amarra essa língua, Francisco, porque ninguém merece um velho carrancudo desses. E aí? Já chegou nessa nossa cidade maravilhosa ou ainda está pelos nortes brincando de índio?

Olhei para os lados, tentando me identificar no pequeno mapa mental que havia da cidade, nas memórias mais antigas.

-- Eu tô em Ipanema, em frente ao Hotel Ibiza, te esperando com todo o meu charme aqui. Você tem que ver, é cada mulher que quer um pedacinho de mim, Beto... - brinquei, usando a frase que ele mesmo adorava declamar. Ouvi sua risada rouca, e esperei a resposta que viria com bom humor.

-- Beleza... Sei onde você tá, chego num pulo. E é a crise da meia-idade criando alucinações, Chico! E ela te afetou forte, hein! Se divorciou da única mulher capaz de te suportar, depois de ter mais de 4 filhos já formados! - Pensei em corrigir ele: eram apenas três filhos, o caçula entrara na faculdade há um ano apenas. Mas Beto era desses: só mantia o que lhe convia. Falar quantos filhos eu tinha não faria diferença nenhuma, se depois de incontáveis visitas e presentes ele não lembrava.

-- Mas e você, também? Ficou solteiro até os 40, e depois casou com menina de 18! É aquele ditado né... O sujo falando do mal lavado!

Vi o enorme jeep parando a minha frente, e logo desliguei o telefone.

-- A Amanda tinha 22 quando a gente se casou, seu burro, e é o amor da minha vida. Isso eu te garanto.

Cheguei a um ponto que admirava a relação de Beto e Amanda. Enquanto meu casamento com Patrícia foi vencido pelo cansaço, Amanda e Roberto permaneciam juntos por mais de dez anos, lidando com comentários mal intencionados e julgamentos por causa da diferença de idade. Mas o brilho nos olhos deles me explicavam o porquê de estarem juntos.

Março, 1980

Em comemoração ao começo definitivo das aulas, Beto e Marcelo decidiram cabular as aulas da primeira quarta de março para irmos ao fliperama. As garotas, Mel, Alice e Mariane olhavam com admiração para Carolina, que passou de amiga do Beto para parte essencial do grupo, enquanto ela desafiava um garoto de dez anos a ganhar dela no jogo Asteroids. Apesar de ser considerado uma novidade, o fliperama não tinha nada. Alguns jogos de tabuleiros aqui, algumas máquinas de Space Invaders e Asteroids pingadas de forma que pareciam encher o lugar, uma pista de dança colorida em neon, que ficava de frente aos nossos lugares, e muitas máquinas de doces, em todas as curvas pelos corredores da loja enorme. Não sei nem porque Beto e Celo insistiram tanto nessa ideia de fliperama, se a maioria de nós ficaria apenas sentado nas almofadas espalhadas pelo chão.

"Ahhhhhhhhhh!! Eu quero um C! Eu quero um A! Um R! Um O! E um L! CAROL, CAROL, CAROL!" Ouvi Carolina gritar em comemoração por ter ganhado o jogo, e quando me viro vejo ela e Roberto dançando juntos, parecendo genuinamente felizes. Eram em momentos como aqueles que eu me confundia. A relação deles não era romântica, nunca foi. Eles viviam essa intensa amizade, até divertida de se notar. Apesar de suspeitas, e certo apoio ao casal, minhas ideias de um possível namoro foram descartadas quando, em um ímpeto de curiosidade vi Carolina no ponto de ônibus e perguntei sobre Beto, e fui respondido com aquela risada espontânea e um pouco de deboche na voz. "Eu e Beto? É coisa do passado, cara. Era pra ser coisa de Carnaval e foi! Agora eu to querendo outros!", ela completou piscando um dos olhos puxados antes de subir no ônibus a sua frente.

-- Ei! Rapidinho, quero um pouco de atenção pra mim aqui, galera! - Marcelo gritou, se ajoelhando em cima de sua almofada, e chamou atenção até de alguns pirralhos que mascavam uns chicletes. - Amanhã alguns de nós teremos testes, impostos por essa sociedade hipócrita e limitada, que não defende meios alternativos de estudos, nos obrigando a seguir esse padrão utópico... - ouvi Carolina cantar um "amém", e logo me recordei do dia em que, indignada com os testes que os pais a obrigaram a fazer para conseguir notas adequadas ao colégio particular (e caro) em que estudava, cuspiu discursos em cima de nós, que só queríamos sentar e pensar na vida naquele pôr do sol calmo. -... Como eu dizia, padrão utópico, e blá-blá-blá, eu só queria agradecer a essas pessoas incríveis que me acompanharam hoje, sem nem questionar duas vezes. Tirando o Chico, que me perguntou se eu tinha certeza que ia escolher o fliperama para passar o dia. À todos nós, que aguentaremos mais um ano de ensino médio!

"E ditadura!", completou a japonesa do grupo, antes de erguer sua taça imaginária como todos nós.

Flores de Julho em Seu CabeloOnde histórias criam vida. Descubra agora