CAPÍTULO 1

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São oito e meia da noite.
Meus dedos circulam a borda da caneca cheia de chá de canela ainda quente. As pessoas ao meu redor estão conversando alto, a maioria parecem ser velhos conhecidos dizendo: "Oi", "E aí?" e "Como vai a família?". Eu tento fugir dessa vida social maçante sempre que possível, tendo geralmente apenas a companhia da minha mãe, que a propósito está sentada na cadeira da frente vendo as notícias no pequeno televisor no canto da lanchonete. O Nune's é um lugar bastante convidativo e agradável, está no centro da cidade, que eu posso dizer que é consideravelmente pequena com cerca de trinta e dois mil habitantes. Eu gosto de viver aqui, quero dizer, estou aqui desde que eu nasci.
A porta da lanchonete abre e alguém entra. É um homem, parece ter cerca de quarenta ou cinquenta anos, eu nunca o tinha visto por qui. Ele se senta em uma mesa atrás da nossa e a garçonete vai atendê-lo, minutos depois ela trás uma xícara do que parece ser cappuchino. Minha mãe dá uma mordida terminando o sanduíche e diz olhando ainda para a TV:
- Parece que teremos chuvas fortes - ela limpa o canto da boca e olha para mim.
- É - digo.
- Acabou? Tem certeza que só quer o chá?
- Sim.
Minha mãe se levanta e paga a conta. Ela é um pouco mais alta do que eu e parece estar cansada mas na verdade tem uma personalidade um tanto elétrica. Eu a acompanho até o carro SUV branco estacionado quase em frente à lanchonete. Eu entro no carro e fecho a porta enquanto minha mãe da à volta.
- Ei, senhora! Você esqueceu celular! - O homem que se sentou na mesa de trás gritou correndo para a calçada.
- Ah, muito obrigado! - Ela andou até ele e pegou o celular. Eu observava pela janela do carro - Espera, você me é familiar... Thomas? É você mesmo! A quanto tempo...
- Elena? Nossa, faz tanto tempo! - Ele põe a mão na cintura e ajeita o cabelo. Só espero que ela não esqueça que é casada.
- Aquela ali no carro é a minha filha, a Parke - Ele acena e eu aceno de volta - Você voltou para a cidade?
- É pensei em ficar aqui por uns tempos - pingos finos de chuva começam a cair sobre o vidro do carro - Foi bom te ver!
- Foi bom te ver também! - Ela se despede e finalmente entra no carro.
- Quem era?
- Era um amigo antigo - Ela liga o carro e a chuva fica mais groça, nem percebo Thomas entrando na lanchonete.
- Eles estavam certos sobre o tempo - Encosto a cabeça no vidro e reparo no percurso e na estrada. Não tem praticamente nenhum carro. Minha mãe acelera cada vez mais.
- Eles quase sempre estão, mas sabe como é...- Ela faz com que o carro vire bruscamente me fazendo colidir com a porta e fazendo meu coração bater mais rápido.
- O que foi isso? - Eu disse com a voz um pouco alta esganiçada, minhas mãos tremiam pelo susto.
- Algum animal. - Ela respirou fundo, parecia um pouco assustada também - Parecia uma vaca. Vou ligar para polícia avisando sobre vacas de alguma propriedade soltas aqui perto para que ninguém sofra nenhum acidente. Eles podem resolver isso.
Eu ligo o rádio e está tocando uma música de provavelmente vinte anos atrás, mas não é ruim. A chuva fica cada vez mais forte. Tempos de chuva sempre me dão um pouco mais de esperança, é como se estivesse indicando que alguma coisa vai acontecer, que eu poderia fugir desse vazio que em tudo está imerso.
Chegamos em casa e eu vou direto para o meu quarto enquanto minha mãe está na sala provavelmente assistindo algum programa de TV e meu pai roncando ao lado. A cor cinza azulada do meu quarto é depressiva, o que combina bem com a mobília.
- Como eu senti a sua falta, cama! - brinco e pulo para cima dela como em um abraço. Eu me esqueço de tudo lá.
Estou cansada mas não consigo dormir, não é assim que as coisas funcionam para mim. Então eu pego um livro.
Macbeth.
É interessante, os floreios na narrativa me prendem a história mesmo que eu não entenda metade do que as palavras significam. Meia hora depois eu posso sentir o sono vindo e fecho os olhos.

*******************

Estou em uma floresta. Está escuro, frio e a lua está em seu auge. Uma sensação me vêm à tona, minhas mãos tremem, meu coração acelera e estou respirando mais rápido. Um vulto passa atrás de mim e eu me viro rapidamente, logo eu percebo que não estou usando roupas. Minha pele está suja e meu cabelo completamente despenteado. O vulto passa de novo na minha frente, não consigo reconhecer a forma. Por um segundo tudo se congela e eu vejo uma sombra na minha frente, tomando forma e se transformando em um animal.
Um lobo.
Minhas mãos estão começando a suar, mas não tenho a sensação de perigo, é um nervosismo diferente, como se eu fosse falar em frente à uma plateia enorme. Ele se aproxima de vagar como se alguma coisa me dissesse que tudo estava bem, como se o lobo estivesse me dizendo isso. Ele deita na minha frente ofegante como eu e me ajoelho passando as mãos em seu pelo. É como se nos conhecêssemos a vidas e tudo o que eu quisesse fazer era ficar para sempre.

**********************

Tudo se foi. Eu não estou mais na floresta, não há nenhum lobo. Apenas eu, meu quarto, minha cama e o som infernal do despertador avisando que já são oito da manhã e eu tenho que acordar e me preparar para essa coisa de vida.
Troco de roupa e me arrumo às pressas. Consigo escutar vozes da cozinha, pelo visto todos dessa casa já estão acordados. Ao passar pelo corredor percebo que há mais vozes do que eu imaginei, o que me surpreende porque quase nunca recebemos visitas. Chego na cozinha e vejo Thomas conversando com meus pais, ambos rindo e bebendo alguma coisa, provavelmente café. O que ele está fazendo aqui?
Aceno para todos, coloco uma maçã na boca.
- Bom dia! - meus pais dizem em uníssono como se fosse programado.
- Esse é o Thomas, um velho amigo de escola - meu pai diz.
- Oi - aceno - Tenho que ir, estou atrasada.
Me despeço, corro até a garagem e saio com o meu velho carrinho. O trajeto é sempre o mesmo, casa para escola, escola para casa. Eu tenho feito tanto isso que poderia fazer de olhos fechados.
Aquele sonho me veio a mente de novo. Foi tão estranho, cada sensação tão real e utópica ao mesmo tempo. Eu já estava próxima a escola quando a idéia de matar a aula hoje me passou pela cabeça, eu poderia fazer isso já que minhas notas são altas e os professores não desconfiariam por me acharem a pessoa mais certinha da face da terra, eu não sei porquê. Ninguém sentiria a minha falta. Dei meia volta com o carro e fui para o parquinho mais próximo.
Abri a minha mochila, peguei Macbeth e meu celular, desci do carro e o tranquei. Havia poucas pessoas como sempre. Dois velhinhos jogando xadrez, um garoto que parecia ter quase da minha idade e uma mulher com o cabelo tingido de loiro com um carrinho de bebê . Um dos idosos deu uma risada alta e comemorou, ele provavelmente deve ter ganhado a partida. Me sentei em um dos bancos próximos a uma das inumeras árvore do paquinho e fiquei planejando mentalmente o que faria no resto do dia até que resolvi pegar o livro e ler.
Eu congelei.
Aquela mesma sensação do sonho começou a me tomar, eu deveria estar pálida pois a mulher com o carrinho de bebê me perguntou se eu estava bem e eu concordei dizendo que sim. Tentei prestar atenção no vento e como ele mexia com os galhos das árvores. Tinha alguma coisa de errado comigo, eu sabia, mas sempre que eu pensava isso surgia uma voz na minha cabeça tão real como a sensação dizendo que tudo ficaria bem. Que eu estava bem.
'Corra, te encontrarei na floresta!'
E de repente tudo voltou ao normal e eu não sentia mais nada, como se eu tivesse acordado mas ainda estava aqui.

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