Versão 1

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Pneu furado - Cambridge, outubro de 1958

No futuro, Eva pensará: Se não fosse por aquele prego enferrujado, Jim e eu nunca teríamos nos conhecido.

Aquela ideia entrará em sua mente com uma força que lhe arrancará o fôlego. Ela vai ficar deitada, imóvel, observando a luz passar pelas cortinas, considerando o ângulo preciso do pneu na grama irregular; o prego em si, velho e torto; o cãozinho que farejava o chão e que não ouviu o som dos freios e do pneu. Ela deu uma guinada para desviar dele e o pneu acabou encontrando o prego enferrujado. Não seria mais fácil - ou mais provável - que nenhuma dessas coisas acontecesse?

Mas tudo isso acontecerá mais tarde, quando sua vida antes de Jim já parecerá algo sem som e sem cor, como se quase não pudesse ser chamada de vida.

- Droga - diz Eva. Ela pisa com força nos pedais, mas o pneu dianteiro salta como um cavalo nervoso. Ela freia, desce e se ajoelha para fazer o diagnóstico. O cãozinho fica a certa distância, late como se pedisse desculpas e depois sai em busca de seu dono - que, naquele momento, já está bem à frente, uma figura usando um sobretudo bege que se afasta cada vez mais.

Ali está o prego, alojado acima de um rasgão irregular, com cinco centímetros de comprimento, no mínimo. Eva aperta as bordas do rasgo e o ar sai num sopro rouco. O pneu já está quase vazio; ela vai ter de empurrar a bicicleta de volta para a faculdade, e já está atrasada para a sua supervisão. O professor Farley vai presumir que ela não fez o trabalho sobre os Quatro quartetos, embora ela tenha passado duas noites em claro por causa do livro. O trabalho está em sua mochila agora, cuidadosamente redigido, com cinco páginas (sem contar as notas de rodapé). Ela até ficou orgulhosa ao finalizá-lo e estava ansiosa para lê-lo em voz alta, observando o velho Farley pelo canto do olho enquanto ele se inclina para a frente, agitando as sobrancelhas como sempre faz quando algo realmente desperta seu interesse.

- Scheiße! - exclama Eva; em uma situação grave como aquela, só mesmo o alemão parece ser capaz de descrever o que ela sente.

- Está tudo bem com você?

Ela ainda está ajoelhada, com a bicicleta pesando contra o corpo. Examina o prego, imaginando se seria pior tirá-lo. Não levanta os olhos.

- Estou bem. Só um pneu furado.

A pessoa que passava por ali, quem quer que fosse, está em silêncio. Ela imagina que já foi embora, mas sua sombra - a silhueta de um homem, sem chapéu, levando a mão ao bolso do casaco - começa a se aproximar dela pela grama.

- Deixe-me ajudá-la. Tenho um kit aqui.

Ela ergue os olhos agora. O sol está se pondo por trás de uma fileira de árvores - o outono começou há poucas semanas e os dias já estão ficando mais curtos - e a luz está atrás dele, escurecendo seu rosto. A sombra, ligada aos pés do homem pelos sapatos marrons arranhados, parece ser alta demais, embora ele tenha estatura mediana. O cabelo castanho-claro precisa de um corte; um livro de bolso na outra mão. Eva consegue ler o título na lombada, Admirável mundo novo, e lembra-se subitamente de uma tarde, um domingo de inverno, sua mãe preparando Vanillekipferl na cozinha, o som do violino do pai que vinha da sala de música - onde ela havia mergulhado completamente na visão estranha e assustadora do futuro descrito por Aldous Huxley nesse mesmo livro.

Ela coloca a bicicleta cuidadosamente no chão e se levanta.

- É muita gentileza sua, mas acho que não faço a menor ideia de como se usa um kit desses. O filho do porteiro sempre conserta o pneu para mim.

- Claro. - A voz dele é tranquila, mas está franzindo as sobrancelhas, procurando no outro bolso. - Acho que fui precipitado. Não estou encontrando meu kit. Desculpe. Geralmente, eu o trago comigo.

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⏰ Última atualização: Oct 24, 2018 ⏰

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Três Vezes Nós - Laura BarnettOnde histórias criam vida. Descubra agora