Segundo Conto: Depois de lavar os pratos

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— Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava eu mandava ladrilhar... Cantam as meninas na rua, as vozinhas finas e frágeis se unindo e formando uma só, encorpando-se num mesmo eco. Clarice escuta a musica, que chega deformada pela distância, um som quase andrógino, enquanto enxagua o último prato e pensa "Se essa casa fosse minha". Fecha os olhos, tomada de uma dormência que começou na panturrilha e tomou toda a extensão de seu corpo magricelo donde brotam seios palpitantes de mocinha. O mundo gira e ela deixa-se pairar no nada, deixa a água escorrer livremente entre os dedos das mãos, escorrer e engolir toda a extensão redonda, e côncava no centro do prato de porcelana francesa. "O velho é mão de vaca" pensa, mas continua parada como se algo a prendesse naquela posição, como uma estrela fixada por deus num céu artificial... Uma daquelas que crianças recortam em papel laminado para colar em cartolina azul-marinho.

O prato escorrega de seus dedos finos, se quebra. E quebra o seu transe. Ela apanha os cacos, brancos por fora e cor-de-argila por dentro, e põe na lixeirinha encardida. Espera a ligação de Danilo, faz duas semanas que ele não aparece... Eles podiam ser ver hoje, os velhos saíram para comemorar as bodas: "Um centenário", pensa, e lembrando-se que ajudou a velha a se vestir, como as antigas serviçais que apertavam o espartilho das senhoras feudais: apertou a sinta para juntar as ancas e faze-las aparecerem carnes rígidas. Pregou um broche para segurar onde o vestido de ceda made in china ameaçava explodir, e a viu sair vagarosamente, como uma múmia com temor de se mexer demais e desenrolar as bandagens.

Então, sobe as escadas, como um explorador ao tentando chegar ao cume de uma montanha, e rodopia no último degrau antes de atingir o patamar superior. Hoje pode ser uma linda bailarina, ainda que não uma artista livre: está presa numa luxuosa caixinha de música. Passa pelo corredor escuro, vê a porta, e abre lentamente., cum cuidado para não fazer barulho. Pedro está dormindo, nem parece o macaquinho elétrico que é durante o dia. Ela pensa em aproveitar, sufocar de vez a respiração. Calar esses gritos incômodos de vez! Mas logo a lembrança daqueles olhinhos abertos lhe enche de ternura. Há muito ela poderia ter ido embora, largado tudo e ter sido substituída por alguma outra criatura, que pudesse cumprir a sua função. Foi pega roubando, poderia estar agora mesmo numa sela escura de alguma penitenciária feminina. Mas não, a velha não fez nada! Pedrinho já estava apegado, ela não suportaria cortar o laço o que unia a moça.

"Mais o que seria de mim longe dele?" pensava olhando para a criança dormindo em paz. Uma vez ela fez a trouxa, tinha economizado o dinheiro, iria fugir com Danilo. Ele ia deixar a mulher e eles iam morar em qualquer lugar... Mas ele arregou... No fundo foi bom assim. Até poderia ter encontrado um lugar que a pagasse melhor, mas não com as mesmas condições: ela era quase da família! Uma irmãzinha mais velha do Pedro. Mas a vantagem de manter laços que nos mesmos construímos, e poder quebra-los quando uma das partes bem entende! Danilo podia abandona-la, estaria fazendo o certo ao largar a vadiazinha... A mãe de Pedro podia manda-la embora...

Ela escancara a janela, abre a cortina num espasmo de fúria reprimida. Não se importa que o menino acorde. O ar gélido escorre para dentro, é intruso que se mistura com o ar morno que paira dentro do cômodo. "Eu uma vadia?" pensa, num relâmpago filosófico. A única vadia virgem que já pisou o solo do planeta terra. Danilo recusava até o seu corpo, disposto a manter sua integridade de moça direita. Integridade, pra ela uma palavra tão dura e áspera, que sufoca, fica presa na garganta e não consegue sair... Senta-se no parapeito da janela e pensa em se jogar. No dia seguinte iam encontrar o corpo, com o rosto desfigurado, as articulações moles como as de um boneco de plástico espatifado na calçada. Quem veria primeiro seria Pedro, tão pequeninho! Pra ele a finitude do corpo humano é desconhecida, pelo menos até acordar e por a cabeça pra fora da janela e olhar pra baixo! Seria um choque. Talvez o doce coraçãozinho parasse, com um último sopro, e o corpinho tombasse no chão gelado...

Fecha a janela, e a sua espinha se reprime num arrepio espasmódico. Tenta afastar os sonhos nefastos, como se fosse uma mosca insistente que sobrevoa seu rosto de adolescente. Pedro continua dormindo estaticamente no meio de um bolo de lençóis de seda, como os floquinhos de açúcar que sobram no fundo do vidro: ficam grudadinhos e emaranhados, cristalizados em grupo. "Podia ficar assim pra sempre", pensa. É duro envelhecer, não adianta fugir do espelho, os outros se degradam na frente dos seus olhos. Quase como frutas que esquecemos em uma tigela em cima da mesa! Cada um é a mosca do outro, enquanto morre, assiste também o outro morrer. O homem é o espelho do homem? Ou o lobo do homem?

Aproxima-se e senta na cama. Esgueira a mão até o pezinho de algodão. Geladinho. Retira todos os lençóis. O anjinho dorme com as mãozinhas em posição de quem vai fazer uma oração! Põe a mão esquelética na bochecha gorducha: gelada! Cadê o vermelhinho púrpura? Cadê a carne pulsante! Levanta-se, com repulsa momentânea. Começa andar de um lado para o outro, como se procurasse encontrar algo que deixou cair. Um cadáverzinho! Deve ter fenecido enquanto dormia! Como uma fruta esquecida que estragou durante a noite... Começa ficar excitada, Irão acusa-la! Um bode expiatório nunca vai mal. Iam manda-la pro xilindró, só para expurgar a dor. Pensa em ir embora, pegar todas as suas coisas e meter num saco. Mas ir pra onde? Deixar uma casinha de bonecas como aquela, pra ir vegetar nas calçadas juntos dos ratinhos sem toca?

Pensa em pegar uma pá, o velho tem uma na garagem. Enterrar o bonequinho no quintal entre as cenouras ou no jardim entre as hortênsias? Seria um favor a uma mãe devastada por perder um filho... Um ato inquestionável de enorme hombridade e clemência. Os vermes iriam jantar carne nova, carne branca, carne macia essa noite! Eles iam ficar agradecidos! "Não, não tenho coragem!", pensou, as lagrimas escorrendo de seus olhos fundos, inchados e doentios. Dar de alimento pra terra seu único amigo, a única pessoa que gostou dela sinceramente em toda a sua vida! A mãe dela nunca gostou nem de si mesma, se acabou na bebida... Danilo só brinca, usando-a como se fosse uma boneca de porcelana: com cuidado para não danificar! Pedrinho sorria pra ela, com os dentinhos pontudos e brilhantes! Como vai contar pra velha? Teu filho morreu! Como uma jaca que caiu do pé antes do tempo. Tá ali, molinho na cama, geladinho e branco como cera!

Pedrinho acorda, se espreguiça, desse da cama com dificuldade, quase cai, é alta demais! Vai meio sonolento, pendendo pros lados, para, logo atrás dela. Coça um dos olhos com o dorso da mãozinha direita, e com a esquerda puxa a calça de malha preta dela:

— Tô com fome tia!

Espuma na praiaOnde histórias criam vida. Descubra agora