Eu tomava lições, junto de menininhas mais ou menos da mesma idade que eu, com o nosso père Joachim. Um veterano bicudo que gentilmente nos transmitia seus nobres conhecimentos em música e arte, em troca de uma razoável quantia caridosa, que meus pais se desdobravam para pagar. Todos os meses, mamãe se desdobrava em costuras, delicadas pinturas em tecidos ou na feitura de guloseimas caseiras de fruta. Meu pai, funcionário de um cartório do outro lado da cidade, cultivou o costume saudável de fazer o trajeto de volta a pé: se economizava o do bonde.
Eu tão pouco fazia questão desse acréscimo em minha parca educação, mas eles insistiam. – Eu já lhe ensinei tudo o que sei, dizia-me minha mãe, enquanto lambia o dedo espetado pela agulha, é a evolução natural das coisas: que os filhos venham a saber mais do que os pais... Ela mirava o meu pai, arfando o peito e segurando as lágrimas, ele respondia ao olhar dela sem demonstrar sentimentalismos: – Qualidades ou aptidões, naturais ou conquistadas, não suprem a falta de uma posição social vantajosa. Mas na falta de um berço, é o que está no nosso alcance fazer para tentar garantir-lhe um futuro tranquilo!
Eu o achava tão cômico, quando dissimulava o orgulho da pobreza, que é exigido dos desfavorecidos e desvalidos, ainda que as regras de conduta entre pais e filhos não me permitissem demonstrar meus sentimentos... Parecia um pombo, com o peitoral inflado, a pose de soldado... Como se de muito valesse minhas recém-adquiridas habilidades ao piano, se num futuro próximo, eu me casasse com um português inculto dono de venda e cheirando ao óleo onde se frita bacalhau e pasteizinhos de Belém.
Se gastava com educação, se economizava também com as vestimentas... Meus vestidos eram gastos, com as algibeiras furadas e remendadas pelos dedos machucados de minha mãe – ela se lamuriava baixinho, enquanto acariciava as pontas calejadas perto das unhas esbranquiçadas e quebradiças, longe do meu pai e sua pose de pai de família de bem, avessa "faniquitos femininos". Mas eram estes dedos doloridos que acariciavam e massageavam a pele grossa e áspera, dos tornozelos e dos pés provedores da casa, num ritual quase diário em que meu pai os mergulhava numa bacia fumegante de água com uma folhinha do pé de alecrim que crescia no nosso quintal. Imatura, eu sonhava com vestidos e enfeites que nunca poderia ter, e bailes que nunca poderia frequentar... A nossa magra economia pecuniária não permitia "excessos" e "extravagâncias", como sentenciava ele, enquanto mamãe fazia círculos com os dedos no solado dos pés enormes e nauseabundos dele.
Não tínhamos dinheiro sobrando, e tão pouco aceitávamos esmolas. Quando a situação estava apertada mais do que era desejável, a cabeça grande e calva se remexia sinalizando um não para os parentes que ofereciam empréstimos! Na certa piores que banqueiros e agiotadas, ao cobrarem as dívidas que tão prontamente ofereciam. – Melhor dever ao demônio que a parentes! – e o seu bigode negro tremia ganhando vida aos meus olhos, enquanto a face lívida se congelava como presa por um espasmo...
Na escola, eu era obrigada a recusar o lanche compartilhado pelas minhas colegas, mesmo quando não tinha nada o que levar dentro da sacola. – Uma mocinha sabe ficar quietinha, sem resmungar! – aconselhava mamãe. E eu pensava no que le pére dizia, com seu sotaque estufado e pomposo: – Uma dama sabe dissimular com tanta naturalidade, ao ponto de enganar o próprio estômago faminto! – e citava Balzac, Diderot e Montaigne com suas bochechas gordas vermelhas e suadas. Seu ar bonachão dava lugar à um papel múi melodramático quando ele se dispunha a nos sensibilizar: que o pagássemos prontamente, ou estaríamos prejudicando seu parco pé de meia, gasto a contragosto com tintas, telas, carvão – em suma todo o material utilizado por nós nas aulas. Suspeito que cobranças diretas somente eram feitas aquelas que de um dia para outro, eram impedidas de participar dos exercícios e convidadas a ajudar na arrumação e limpeza da sala saleta onde tomávamos as aulas. Enquanto pintávamos, essas meninas nos olhavam com os olhos tristes e cabisbaixos, muitas vezes mergulhando os pincéis sujos e velhos em copos com água: a transparência natural dando lugar a um cinza pastoso, que momentaneamente fora uma mistura multicolor.
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Espuma na praia
TerrorA linha tênue que separa a sanidade da loucura, a realidade da ficção, a imobilidade da ação, a culpa da inocência, a normalidade da dita anormalidade.