Comecemos a história pelo começo, pois não tenho a tamanha criatividade de iniciar de outra forma como tão outros autores que de certa forma são mais excepcionais que eu. Atendo pela alcunha de Cecília, mas verás, diante do curso dessa história, que tudo é realmente mutável nesse mundo, pelo menos para algumas pessoas.
Há tempos procuro me achar comigo mesma. Desde sempre me encontrava desencaixada com o resto da natureza. Era como se os deuses estivessem se esquecido de minha pequena existência. Nunca concordei com o Eu que era exposto a mim diante do espelho.
Primeiro achei que era apenas um devaneio tolo de uma criança que nada sabia sobre o mundo e que certamente tal dúvida acerca de mim mesmo iria um dia se erradicar como tantas outras coisas. Não aconteceu. Ao decorrer de minha crescente vida meu desconforto apenas cresceu. Minha vida já não fazia sentido e eu sentia como se não existisse para mim mesma, ainda que eu existisse para os outros. O ato de existir estava a me sufocar como uma corda enforca o pescoço de um suicida. Perguntava-me como a vida poderia ser tão contraditória; não deveria eu sentir-me bem apenas por existir? Como Deus poderia ser tão cruel com uma de suas criações? Parecia-me que eu havia sido abandonada como um exemplo para não se contestar um Pai celestial tão autoritário que não aceitava a menor das críticas.
Apesar disso, cresci. Cada dia parecia uma navalha que a qualquer momento iria separar minha cabeça do resto do corpo. Resisti inúmeras vezes à canção da morte que tanto me parecia doce. Acabar com o sofrimento de uma vez por todas sempre me pareceu a melhor alternativa para esse problema gigantesco que eu tinha diante de mim. Ainda assim não o fiz. Não por falta de vontade, como bem expus. Mas por salvação. Por humanidade.
Aos 16 conheci alguém que viria a mudar minha vida drasticamente. Chamava-se Fernando a esperança que os deuses, que antes pareciam ter me esquecido, tinham colocado em minha vida. O conheci em um desses espaços onde a mente humana ganha destaque e o ser humano passa a ter que encarar abismos tão profundos quanto o maior dos oceanos terrestres; onde habitam os mais cruéis monstros de nós mesmos. O conheci em meu próprio quarto, por mais estranho que isso seja no momento.
Era um garoto estranho, da minha idade, que havia acabado de chegar de forma brusca e sem aviso na casa onde eu morava com meus pais. A princípio não fui muito amigável, pois soube que o inquilino ficaria no meu quarto por algum tempo, dividindo o espaço com meus demônios internos e externos.
Vendo a situação em que fomos colocados, era totalmente improvável que não nos tornássemos amigos, apesar do tratamento tóxico que demonstrei no primeiro contato.
Com o passar das semanas descobri que existia em Fernando muito mais de mim do que jamais imaginei. Cada conversa parecia uma faca a menos retirada de meu peito que tanto havia sofrido desde o começo de minha consciência. A empatia demonstrada pela minha salvação fazia-me crer que não fui esquecido em nenhum momento por Deus, apenas estava passando por uma provação que valeria a pena enfrentar; eu deveria seguir uma direção para finalmente descobrir quem eu era verdadeiramente.
É engraçado como a puberdade mexe com a percepção de nós mesmo de formas cósmicas e surpreendentes. Mudar através da reflexão me parecia a alternativa correta agora que tinha a ajuda de Fernando. Eu teria que amadurecer para finalmente me encontrar no mundo e de uma vez por todas me sentir acolhido pela mãe Gaia. Com a ajuda do tempo certamente alcançaria meu objetivo que agora parecia tão palpável. Meu sofrimento, acreditava eu, estava prestes a terminar.
Não terminou. Minha angústia, que parecia ter cessado, apenas havia tirado férias para que pudesse voltar a todo vapor para me atingir como a depressão atinge um poeta. Fernando, sem entender, tentou ajudar-me de toda forma, ainda que não obtivesse êxito. Estávamos perdidos, os dois, um com o outro e sem sabermos o que fazer. Um problema que parecia resolvido voltou a se sobrepor sobre mim. As reflexões apenas me afundaram cada vez mais no abismo que eu achava já ter desvendado. Eu havia me tornado o abismo e não conseguia suportar o fardo da aventura.
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Fernando
Short StoryMudança é algo essencial no ser humano. É fato que dia após dia mudamos cada vez mais e mais até não reconhecermos nós mesmos. É disso que se trata esse mini conto. Esse é apenas o primeiro capítulo. Caso, haja boa aceitação, pensarei em publicar o...