Capítulo 2

386 17 7
                                    

Os lábios de Júlia se moveram... De uma forma tão sensualmente densa que, sob o ponto de vista de Carla, pareciam estar em câmera lenta. Sem sintonia com o som, que só a atingiu depois, muito depois:

– Ressaca moral?

A resposta escorregou, sem passar pelo cérebro. Apenas pela boca:

– Um pouco.

Sorriram uma para a outra.

Carla relaxando o bastante para perguntar:

– O que cê tá lendo?

Júlia apenas apontou com o indicador um dos títulos na capa do livro que segurava. Quem verbalizou foi Carla:

– Hamlet Máquina...

Voltaram a se olhar. O silêncio que se estabeleceu não foi constrangedor, muito pelo contrário. A ponto do instinto de preservação de Carla a obrigar a cortá-lo:

– É bom?

A resposta de Júlia foi folhear o livro, procurando... Até abrir e ler, com uma emoção que deixou Carla hipnotizada:

– "Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. A mulher com excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS NEVE. A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro – a cadeira, a mesa, a cama... Destruo o campo de batalha que foi meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na cama, na mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo. Exumo do meu peito o relógio que era o meu coração. Vou para a rua, vestida em meu sangue".

Movida por um interesse súbito e inexplicável, Carla tentou reunir mentalmente as poucas informações que tinha sobre Júlia: estudava no Bennett, também estava no terceiro ano do segundo grau, fazia teatro no Tablado e Daniela a achava arrogante. Saberia mais, se tivesse prestado mais atenção.

Júlia fechou o livro e os olhos voltaram a se encontrar. Fazendo com que, uma vez mais, Carla não pensasse antes de falar:

– Deve ser bom poder ser outra pessoa.

O sorriso de Júlia foi indecifrável.

– Não está satisfeita com quem você é?

Em qualquer outra circunstância, Carla teria certeza de que o assunto já tinha ido longe demais. No entanto, não sentiu a menor vontade de encerrá-lo:

– Alguém está? Inteiramente, eu quero dizer.

O sorriso dela aumentou, se tornando ainda mais enigmático:

– Bom... Nesse momento, eu estou.

Colocou o livro de lado e sentou na cama de pernas cruzadas:

– Desculpe te decepcionar.

O tom de voz que Júlia usou invadiu todos os sentidos de Carla. Tentou inutilmente recuperar a fala:

– Quê? Cê não... Quer dizer... Está? Mesmo? De verdade?

Ela assentiu, não com a cabeça, apenas com o olhar. Dessa vez, Carla parou e respirou. Antes de completar, desejando dar uma resposta à altura. Na verdade... Precisando impressioná-la:

– Que eu posso te dizer? Os atores sempre parecem gostar bastante de si mesmos. Não de quem eles são realmente, mas daquilo que projetam para os outros. A imagem.

O INFINITO EM DUAS VOLTASOnde histórias criam vida. Descubra agora