Os lábios de Júlia se moveram... De uma forma tão sensualmente densa que, sob o ponto de vista de Carla, pareciam estar em câmera lenta. Sem sintonia com o som, que só a atingiu depois, muito depois:
– Ressaca moral?
A resposta escorregou, sem passar pelo cérebro. Apenas pela boca:
– Um pouco.
Sorriram uma para a outra.
Carla relaxando o bastante para perguntar:
– O que cê tá lendo?
Júlia apenas apontou com o indicador um dos títulos na capa do livro que segurava. Quem verbalizou foi Carla:
– Hamlet Máquina...
Voltaram a se olhar. O silêncio que se estabeleceu não foi constrangedor, muito pelo contrário. A ponto do instinto de preservação de Carla a obrigar a cortá-lo:
– É bom?
A resposta de Júlia foi folhear o livro, procurando... Até abrir e ler, com uma emoção que deixou Carla hipnotizada:
– "Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. A mulher com excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS NEVE. A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro – a cadeira, a mesa, a cama... Destruo o campo de batalha que foi meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na cama, na mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo. Exumo do meu peito o relógio que era o meu coração. Vou para a rua, vestida em meu sangue".
Movida por um interesse súbito e inexplicável, Carla tentou reunir mentalmente as poucas informações que tinha sobre Júlia: estudava no Bennett, também estava no terceiro ano do segundo grau, fazia teatro no Tablado e Daniela a achava arrogante. Saberia mais, se tivesse prestado mais atenção.
Júlia fechou o livro e os olhos voltaram a se encontrar. Fazendo com que, uma vez mais, Carla não pensasse antes de falar:
– Deve ser bom poder ser outra pessoa.
O sorriso de Júlia foi indecifrável.
– Não está satisfeita com quem você é?
Em qualquer outra circunstância, Carla teria certeza de que o assunto já tinha ido longe demais. No entanto, não sentiu a menor vontade de encerrá-lo:
– Alguém está? Inteiramente, eu quero dizer.
O sorriso dela aumentou, se tornando ainda mais enigmático:
– Bom... Nesse momento, eu estou.
Colocou o livro de lado e sentou na cama de pernas cruzadas:
– Desculpe te decepcionar.
O tom de voz que Júlia usou invadiu todos os sentidos de Carla. Tentou inutilmente recuperar a fala:
– Quê? Cê não... Quer dizer... Está? Mesmo? De verdade?
Ela assentiu, não com a cabeça, apenas com o olhar. Dessa vez, Carla parou e respirou. Antes de completar, desejando dar uma resposta à altura. Na verdade... Precisando impressioná-la:
– Que eu posso te dizer? Os atores sempre parecem gostar bastante de si mesmos. Não de quem eles são realmente, mas daquilo que projetam para os outros. A imagem.
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O INFINITO EM DUAS VOLTAS
RomanceQuantos anos você tinha em 1988? Carla e Julia tinham 17 e juntas descobriram o amor, o sexo e a paixão entre duas mulheres, em uma época em que não só não se falava sobre isso como quase não se tinha informação alguma. Mas os sonhos de Julia eram i...