1
Tarde
- A morte confunde-se com a escuridão da cidade. E nós sabemos, é de noite quando ela vem procurar os mais indefesos - citou novamente o agente Carlos, persistente em descobrir o autor daquelas enigmáticas frases. - Então, recorda-lhe alguma coisa?
- Não, não! Juro que não! - Francisca cerrou os os punhos sobre o vestido esguio rosa-carmim. As nuvens carregadas exerciam um qualquer poder sobre ele, tornando o rosa demasiado claro, à menina, como nos seus tempos de escola. O laçarote só piorava o aspeto patético.
Assemelhava-se aos raspanetes do diretor quando fazia uma asneira. E, embora o insistissem, desta vez, ela não fizera asneira nenhuma e não merecia um castigo. Ao olhar o detetive no fundo dos olhos, assegurou-se que o assunto ficava esclarecido. - Não fui eu.
2
Momentos depois
O detetive Carlos acompanhou as irmãs à porta, abriu-a e deu-lhes passagem. As duas agradeceram e dirigiram-se a um Mercedes branco, mas confundível com bege devido à sujidade, a muitos anos de uso. Lembrava-se dele, do cheiro forte do fumo que libertava quando se ligava o motor.
Observou-as pela janela, fumou o seu cachimbo e expirou. O olhar de Francisca colidiu com a mancha nevosa à frente da cara dele, um olhar rápido mas suficiente para o detetive afirmar que algo não estava certo.
- Elisa... - chamou pela agente de quem era supervisor, uma rapariga do campo. - Encontra-me os ficheiros de 2006 da Srª Ávila. Acho que me escapou um detalhe importante.
3
Dia seguinte - Manhã
- Foda-se, que azar! - gritou Letícia do lado de fora.
- Está a choveeer, entraa! Arranjaremos uma solução, de certo que sim. - Francisca tentou acalmá-la e ela irritou-se ainda mais.
Tinham acabado de rodopiar pelo piso molhado e inseguro.
Letícia deu um pontapé na porta e esta abriu imediatamente. Francisca pensava que ela se sentaria e respiraria fundo, contudo agarrou grosseiramente na gabardina tricolor e berrou, fazendo-se ouvir entre a chuva e pneus a chiar no pavimento escorregadio:
- Não vou ficar à espera que um pneu suplente caia do céu. Penso que há um stand mais adiante, vens?
Ponderou. Estava a chover a tolhes, podiam roubar o carro ou até assaltarem-nas. Mas nada disso fazia diferença - a chuva era tão casual para elas como a visita da lua todas as noites, o carro era uma máquina podre e sem futuro (além de que, foi ele quem desenhou a própria morte ao fazer dois círculos perfeitos até enterrar-se numa valeta) e, na mais sóbria visão que conseguia ter, ninguém quereria assaltar duas loucas a correr de saltos altos, encharcadas, mas felizes, com o coração a mil.
Não se censurou, gostou do sabor a nada na língua, do frio na pele. Mais tarde, esqueceriam-se do carro e dos seus planos, mas, naquele momento, as micro-sensações pareciam de outro mundo. As únicas coisas importantes.
- Não é divertiiido? - Letícia descalçou os sapatos e saltou numa poça.
- És doida.
- Tu também. - Olhou para outro lado, abstraída, e, depois, apontou, de repente entusiasmada, para a entrada de uma rua: - Ali, sim, já me lembro. Despacha-te, pernas lentas!
Desataram a correr, aos gritinhos, e viraram para a tal rua, deserta.
- Costumávamos vir aqui em pequenas brincar... Quer dizer, eu brincava e tu... - imitou o som de beijocas. Embaraçaram-se em cotoveladas.
Letícia enamorou-se pela montra de uma loja vintage e reclamou: - Está tudo fechado, como se a rua estivesse a ser feita e sofresse um aborto.
- Ou acabou o dinheiro - presumiu a irmã, sensatamente.
- Olha a loja do Fred! Também está fechada. Oh... Que pena! - Letícia lançou-lhe um olhar cúmplice.
- Devíamos despachar-nos. Sabes, para encontrar o stand.
- Esquece isso... De certeza que também está fechado.
- Mas...
- Para de ser aborrecida. Não foste tu que disseste que arranjaríamos uma solução? - perguntou com as mãos nas ancas. - Pareces a mãe quando nos cantarolava:
- Os patinhos feios não vão para o céu. Eles afundam-se, afogam-se e nunca mais voltam à superfície. Nunca... nunca... - Correu para a loja do Fred e colocou-se em bicos de pés. - Nunca!
- Não sou como a mãe - contrapôs Francisca. Agora teria de prová-lo - regra de irmãs.
- Então prova que és um patinho feio.
Francisca seguiu os passos da irmã até à loja. Esta espreitava para dentro com as mãos à volta dos olhos e o cabelo cor de prata a pingar. Plim... Plimm... Plim...
- Sou um patinho feio, como tu... Vamos afundar-nos e nunca mais vamos voltar à superfície.
Deu um pontapé na porta e ela abriu de imediato, tal como a porta do Mercedes. Ignorou a placa "Fechado". Era um patinho feio e ia apodrecer assim como tudo naquela cidade.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Mistério da Cidade Negra
Mystery / ThrillerAlguém pinchou o muro de uma casa e roubou um CD especial. Coisas aparentemente idiotas, mas que remetem para uma misteriosa morte que aconteceu há nove anos atrás. E ainda há a chuva. Sempre presente e obscura, leva consigo segredos e tormentos...