Prólogo

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O garoto de olhos estranhos apareceu três dias depois do meu Teste.

Eu não sabia quem ele era, mas soube que era problema no momento em que ele bateu na porta da minha casa e fez perguntas estranhas. Além disso, como ele sabia meu nome? Eu tinha certeza de que nunca o tinha visto antes, mas quando começou a falar como se soubesse coisas demais da minha vida, todos os meus instintos me disseram que não devia dizer nada.

Aprendi desde cedo que não haviam escolhas em um mundo destruído por uma guerra e ainda tentando se recompor, como se ainda respirasse ofegante depois de uma corrida, mas eu estava disposta a desafiar as leis e escolher colocá-lo para fora da minha casa. Não importava o que o garoto me dizia, meu lugar era cuidando da minha família e estudando, não aceitando convites de revolução.

Minha mãe sempre desejou que eu fosse educada e gentil com as pessoas, mas nunca tive jeito para isso. Eu bem que poderia ter sido mais gentil com o rapaz, ao invés de expulsa-lo tão grosseiramente, mas agora que ela não estava mais aqui, infelizmente preciso quebrar algumas promessas antigas, principalmente as que envolviam aceitar boas propostas. Essa nem era uma, mas meu irmão ainda precisava de mim em casa, e meu pai sempre seria um dependente.

Meus avós haviam crescido durante a Grande Guerra que havia destruído esse planeta frágil, mas se eles não tiveram grandes consequências no resto de sua vida como sobrevivente, seus descendentes tiveram. Décadas depois do fim daquela guerra, meus pais nasceram, e suas mutações causadas pela radiação à que meus avós haviam sido expostos ainda crianças era bem evidente. Meu pai já havia nascido com uma doença degenerativa, mas se tornou paraplégico pouco tempo depois do nascimento do meu irmão, quando meu pai não tinha nem completado 40 anos ainda. Além disso, um dos olhos de minha mãe quase não tinha foco algum, uma espécie de miopia gravíssima, era o que os médicos diziam, mas não foi isso que a tirou de mim. Mesmo que os dois tivessem tido seus problemas físicos, eu via o quanto se amavam. Em um mundo pós-guerra, em que toda uma geração nasceu e cresceu com problemas causados pelas mutações, meus pais podiam se dizer sortudos. Nem todas as mutações eram assim tão simples, tão facilmente tratáveis e sem nenhuma deformação grave, e isso eu podia dizer por experiência própria. Apesar de tudo, nós não tínhamos uma vida assim tão ruim. Pelo menos não estávamos condenados à periferia, onde a radiação ainda tingia o ar com o cheiro de doença e morte, longe da proteção da Cúpula sob a qual a terra ainda era fértil e própria para a agricultura.

As coisas que aprendíamos na escola eram muito básicas, e não o suficiente para explicar toda a complexidade de nosso passado confuso de quase 100 anos desde que as coisas mudaram. Tinha começado no início do século XXI, eu sabia, com uma volta absurda dos governos mais extremistas e o sentimento de uma ameaça de nova guerra afetando o inconsciente de todo o mundo. Alguns conflitos políticos acabaram agravando a tensão nos anos 2010, até que a temida Terceira Guerra Mundial, por fim, se deu início cerca de 30 anos depois. Os motivos dados como estopim da Guerra eram diversos e muito vagos, e eu não gostava de me apegar a informações tão superficiais, quando o importante não era como, mas por quê, então acabei nunca decorando-os completamente.

Aprendi apenas que os longos anos que duraram a guerra foram ainda mais terríveis que as da Guerra Mundial anterior, como se isso já não fosse indicação suficiente para não repetir o erro uma terceira vez. O Holocausto havia matado poucos em comparação com os bilhões mortos pela tecnologia criada por Engenheiros e cientistas formados, trabalhando para grandes potências mundiais. O Acordo de paz entre Estados Unidos e Rússia se rompeu no processo e ambos começaram os ataques nucleares que prometeram nunca concretizar. Aqueles que sobreviveram ao final da guerra acabaram morrendo por conta de doenças que consumiram seus corpos décadas depois, e pior, também condenaram seus descendentes à uma vida difícil em um mundo em reconstrução, uma realidade que certamente não estava preparada para lidar com tantos problemas ao mesmo tempo.

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