1. Satrapia

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No Dia da Satrapia, pedi que meu irmão mais novo me esperasse na sala enquanto fazia o possível para prender meu longo cabelo por baixo da peruca natural que minha mãe havia mandado fazer para me proteger dos olhares estarrecidos em direção às minhas mechas de cores incomuns. Mais uma consequência indesejada da radiação em nossa família, mas se eles soubessem que isso é só uma parte tão superficial de alto bem maior...

Quando tenho certeza de que meus cabelos reais estão bem presos sob a peruca de tom castanho escuro, me olho uma última vez no espelho. Estava usando meu melhor vestido, o azul escuro com brilhantes por todo o tecido como uma noite estrelada e alças que partiam do decote e se cruzavam nas costas criando uma trança de tecido que seguia minha coluna até  os quadris e caía em uma saia solta até perto dos meus pés. A recomendação era que eu usasse o vestido até à noite, mas os sapatos eu só usaria durante a festa. A maquiagem escondia a cicatriz antiga próxima ao meu olho, mas eu não podia fazer nada quanto à falha em minha sobrancelha direita. Felizmente, eu não teria que reviver o dia em que ganhei essa falha na sobrancelha este ano. Suspiro em frente ao espelho. Não teria como ficar melhor do que isso.

Meu irmão dá algumas batidas na porta do meu quarto antes de abri-la.

-Eles chegaram. -ele me diz com uma expressão preocupada, ele nunca soube lidar bem com esse dia específico do ano.

-Tudo bem, Kenny, diga-lhes que eu já vou.- eu peço com calma. Ele sorri percebendo que usei seu apelido, Kenneth nunca foi um nome que ele gostava de ter.

Ele assente uma última vez e corre até a sala.

Está na hora.

Ao chegar a sala, fiz as apresentações básicas e depois de um pouco de conversa com o meu irmão e meu pai, levei o representante que se apresentou como Hart até o lado de fora mostrando-lhe toda a propriedade enquanto o atualizava da nossa situação. Eu já vinha fazendo esse mesmo trajeto no Dia da Satrapia há quase três anos, mas meu nervosismo dessa vez era bem maior por conta dos olhares atentos de Kenny às minhas costas, prestando atenção nos meus movimentos para aprender o que ele logo teria que fazer. E o pior de tudo é que precisava manter a calma, acho que agora entendo pelo que minha mãe passava quando fazia isso no meu lugar. Ao voltarmos até a casa, vejo Kenneth correr para o andar de cima antes mesmo que a porta se feche e eu ofereço bebidas aos três homens que me acompanharam durante as últimas duas horas. Depois de algumas perguntas mais básicas, eu e meu pai assinamos o contrato que lhes dá permissão de ter acesso a uma de nossas contas no único Banco em um raio de quilômetros lá embaixo e recolher nossa parte dos impostos. É claro que isso é tudo formalidade para algo que eles já iriam fazer de qualquer jeito, mas não podemos reclamar.

Depois que os homens vão embora, ajudo meu pai nos serviços de casa e deixo que Kenneth fique em casa enquanto levo a caça da manhã até o açougue da cidade de Sob a Cúpula. Não costumo demorar em meus afazeres diários e antes de anoitecer eu já estou de volta em casa com o estoque de carne da semana, conforme o acordo que tenho com o dono do açougue. No entanto, quando o relógio do centro da cidade bate à 20:00h em ponto, eu e meu irmão já estamos na porta de casa prontos para ir até o jantar aos portões da cidade subterrânea. Eu até tentei convencer meu pai de nos acompanhar, mas ele consegue ser mais teimoso do que eu, então desisti de tentar e me certifiquei de que ele ficaria bem antes de irmos embora. De certa forma, eu o entendo. Ainda deve ser difícil para ele ter que ir até lá embaixo e lembrar da última vez que vimos a nossa mãe.

Os jantares oficiais ocorrem no primeiro andar abaixo da terra, mas mesmo assim, precisamos descer alguns metros em um elevador de vidro blindado. Ao chegarmos até lá embaixo, somos recepcionados por alguns seguranças que verificam nossos nomes em uma longa lista em um dos tablets holográficos que os ricos aqui debaixo tem acesso. Eles nos revistam rapidamente e permitem que passemos depois que limpam meus sapatos de salto prateados de qualquer sujeira mínima que possa ter. Ao contrário dos que nasceram na superfície com certa exposição à radiação mesmo sob a cúpula, os moradores das casas subterrâneas nunca foram expostos aos ar contaminado, dessa forma, não desenvolveram as proteções naturais contra a radiação que os humanos da superfície já adquiriram antes mesmo do nascimento. Então, por segurança, nem mesmo nesses dias especiais eles baixam a guarda quanto à possíveis toxinas do mundo exterior.

Ao fundo da sala de recepção, vejo um garoto de aparência não muito mais velha do que eu me observando com uma expressão séria. Normalmente não dou muita importância para olhares alheios, mas o garoto me observa tão atentamente que me deixa desconfiada. E, para piorar minha desconfiança, ele se vira e some por uma porta escura do outro lado da sala quando percebe que eu o vi e me faz ter certeza de que tem algo errado. E eu vou descobrir o que é. 

Passamos por alguns corredores altamente iluminados por luzes artificias até chegarmos aos portões de um grande salão de festa, eu não vejo mais aquele garoto, mas sei que ele se esconde em algum lugar. 

Andrew esteve nervoso a festa inteira, mas ele se acalma algumas horas depois quando o jantar é servido. Assistimos às apresentações e à mais um discurso motivador da Imperadora Chane, porém sua maneira de falar do lugar em que vive me parece muito irreal. É como se ela não soubesse ou não se preocupassem com as pessoas que vivem na superfície e ficam expostas à radia, e talvez não se importe mesmo.

-...É importante lembra-los também de que qualquer suspeita de um Novo Humano deve ser imediatamente denunciada a mim.- eu a ouço dizer e minha atenção se volta para suas palavras. Preciso tomar muito cuidado com essas dicas absurdas que ela tende a dizer sobre jovens inocentes.- Não se esqueçam que esses garotos e garotas demonstram uma falha na ordem natural da vida e de nosso mundo, eles ameaçam nosso estilo de vida com suas tendências à destruição. Tudo que não precisamos agora é de mais destruição. Por esse motivo, estabeleço que todos àqueles que se dispuserem a expor essas aberrações da natureza serão bem vindos em minha casa e cada denúncia os fará ser muito bem recompensados. É sua chance de ajudar-me a punir os responsáveis por ameaçar nossa segurança, por favor, não hesitem em vir até mim sendo eles seus vizinhos, pais, filhos ou amigos. Pensem no futuro e em nossa paz, o futuro vale mais do que seus laços afetivos.

-Ela tem mesmo o poder de mandar que as pessoas levem seus entes queridos a morte certa em troca de dinheiro?-Kenny precisa se aproximar muito de mim para ser ouvido por cima das palmas fervorosas que ecoam por todo o salão.

-Ela é a Imperadora, tem o poder de fazer o que quiser.-eu respondo me inclinando em sua direção. -Infelizmente.

-Acha que ela está certa em fazer isso também?-ele insiste.

-Não, Kenneth.-eu digo em tom baixo para que só ele possa escutar.- Ninguém tem o direito de decidir quem vive e quem morre.

Ele assente com um olhar nervoso. Noto que ele não estava olhando para mim e sim para algo por cima do meu ombro, mas quando percebe que eu notei seu movimento se vira rapidamente, mas não o bastante para que eu não descubra para onde ele tanto olhava. Prendo mais firmemente alguns fios coloridos do meu cabelo que estavam se soltando das presilhas por baixo da peruca e me viro discretamente até o canto que meu irmão tanto observava. Por alguns segundos, vejo mais uma vez aquele garoto de olhos com um brilho estranho que me olhara na recepção para logo em seguida sumir mais uma vez entre as sombras. Quando ele desaparece por completo, tento esquecer a imagem da sua figura me olhando a noite inteira, mas por mais que me esforçasse, me sentia observada pelo resto da noite. Enquanto a noite não se encerrava, uma pergunta permanecia na minha mente: Quem era aquele cara e porque tinha a impressão de que ele estava fazendo mais do que apenas me seguir?

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