"à fleur de peau"Salazar despertou de seu sono –conturbado e de sonhos confusos – com a doce voz da menina Flor cantando seu nome enquanto batia na porta de seu quarto. "Bom dia, seu Sal!", cantarolava, dando ênfase no entoar de seu nome. O rapaz imaginou que ela deveria estar ali há algum tempo pelo tom impaciente de sua voz. O mesmo levantou-se, percebendo que estava encharcado de suor; seu corpo ainda não havia se adaptado ao clima tropical da ilha.
"Estou indo! Estou indo!", exclamava, em desespero. Limpou o suor da testa e dirigiu-se até a porta, enfiando a chave – um pouco torta graças à má qualidade do metal utilizado em sua fabricação – no buraco da fechadura e a rodando para os dois lados enquanto apertava a maçaneta por alguns segundos até finalmente destrancá-la. O rapaz a abriu lentamente, deparando-se com a figura vistosa da jovem. "Olha, o café já tá terminando... O moço tá todo suado!", exclamou, apertando seu braço de uma maneira ao mesmo tempo firme e tenra, sentindo o tecido úmido em sua mão delicada. Suas roupas estavam decerto ensopadas, além de sujas de fuligem. "Vem cá, eu lavo pro senhor", ofereceu-se, estendendo as mãos na direção do rapaz, que demorou para entender o gesto. "Ah, sim", assentiu, desabotoando a camisa e a entregando
nas mãos da garota, cujos olhos percorreram seu abdômen rapidamente antes da mesma partir em direção às escadas com pressa soltando risadinhas de menina. O mesmo seguiu caminho até as escadas, que davam na sala de estar, dirigindo-se à cozinha e passando por uma das janelas onde pôde ver a jovem lavando sua camisa num tanque da área externa à pousada, enquanto cantarolava alguma musica que não fora capaz de identificar. O rapaz sorriu; que sopro de vida havia encontrado para si. Hipnotizado pela imagem da garota, somente percebeu que não estava sozinho após alguns segundos. Havia três pessoas na cozinha; uma mulher de meia idade, morena-clara e de cabelos negros e opacos presos num coque desarrumado que deixava alguns fios brancos à mostra. A mesma lavava os pratos enquanto tentava conversar com um rapaz de traços germânicos e vestes maltrapilhas, cujo sotaque se mostrava mais claro a cada palavra que proferia. O português deduziu que o sujeito fosse do leste da Alemanha, provavelmente de Berlim ou Brandenburg pela maneira como pronunciava os ei em cada palavra em alemão que não conseguia traduzir para o português, confundindo ainda mais a mulher, cujas rugas se mostravam mais profundas cada vez que o mesmo abria a boca. Os dois conversavam sobre, pelo o que Salazar conseguira deduzir graças à sua formação de alta classe e diversas vivências intelectuais, comida, em específico carne de porco e quanto o mesmo sentia falta dos pratos que sua mãe fazia com tal ingrediente. "Einsbein", repetia o alemão. O terceiro indivíduo presente no local era um homem de aparência polida e feições características do leste da Ásia, o qual permanecera calado durante todo o tempo em que Salazar havia adentrado o local. O mesmo lia um jornal enquanto tomava um copo d'água. Nenhum dos três havia percebido sua presença até o mesmo se pronunciar."Bom dia", disse o lusitano, observando todas as cabeças virarem-se em sua direção. Lembrou-se que estava sem camisa e sentiu seu rosto ruborizar. "Perdoem-me pelo atraso, fiz uma longa viagem ontem", explicou-se. A mulher o encarou com um largo sorriso no rosto. "Bem-vindo!", exclamou. "Ainda sobrou um pouco do pão, o senhor pode ficar à vontade", disse enquanto terminava de secar os pratos. Salazar assentiu. "Sou a dona da pousada, desde que meu marido faleceu. Helena!", sua voz tinha um quê de melancolia mesclada a um conforto maternal. "Prazer, dona Helena", o rapaz abriu um sorriso simples, logo assentindo para o jovem alemão que acenou para o mesmo. "Me perdoe por estar despido, eu...", tentou se explicar, sendo interrompido pelo alemão mal-vestido. "Dona Helena, vou embora", disse o tal, cada palavra embebida por seu sotaque germânico. "Vá, meu filho. Volte cedo para cear", suas mãos calejadas enxugavam os pratos de vidro cor de âmbar. Salazar sentou-se sobre a mesa, receoso, observando o jovem alemão retirar-se do local. Sentia o homem de origem asiática o espiar por trás do jornal, que em seguida levantou-se da mesa e saiu do local sem proferir uma palavra sequer, levando consigo uma maleta de couro. "Ele não fala português, não, meu filho", sussurrou a mulher. O rapaz assentiu, pegando o último pão restante na cesta de palha. "Tem café ali e manteiga aqui, mas já tá acabando. Vou mandar a menina buscar lá na mercearia", apontou para a manteigueira de barro decorada com flores pintadas de maneira rústica em cores vivas. A menina. Estaria se referindo à menina Flor? Ponderava enquanto passava a manteiga no pão.
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Flor de Sal
RomanceIlha de Itaporã; 1959. Salazar, jovem português de origem afluente e recém-formado em antropologia decide visitar a ilha à procura de inspiração para seu novo livro. Até que conhece Maria Flor, encantadora jovem nativa que desperta com intensidade...