"danse sacrée"
Salazar descia as escadas em pressa e confusão – havia finalmente cedido à dúvida torturante que rondava sua mente desde que aquelas malditas palavras haviam escapado dos lábios de sua querida. Suspirou em alívio ao perceber que a mesma ainda se encontrava trancada no banheiro. Caminhou até mais perto, encostando a orelha esquerda na porta de madeira. Fora surpreendido pelo ruído do ferrolho de zinco enferrujado arranhando a abertura da tranca. Afastou-se depressa, tentando esconder suas verdeiras intenções. Engoliu em seco, o nervosismo se explicitava em suas mãos úmidas de suor. O abrir da porta revelara uma Flor que nunca havia antes visto. Suas mechas castanho-escuras se anovelavam numa trança feita com primor – suas mãos, apesar de macias como veludo, eram hábeis graças aos artesanatos de palha que fazia para ajudar sua mãe com as economias, além do pouco que recebiam pela pousada. Seus lábios estavam pintados de um vermelho jovial, e seus olhos, os quais de acordo com Salazar eram "de uma graça, doçura e ingenuidade adoráveis, apesar de carregarem um certo brilho de volúpia juvenil", pareciam estar acentuados por algum tipo de pigmento de um turquesa sutil, quase inaparente. Seus cílios, naturalmente alongados, haviam sido curvados e marcados pela tintura negra da máscara cosmética que ainda escondia em sua mão direita. As bochechas, mais coradas do que o usual, nuançavam um tom rosado vivaz. Vestia uma blusa de estampa floral vermelha e branca, a qual deixava seus ombros bronzeados à mostra, assim como uma saia de mesma estampa pouco acima dos joelhos. Para completar, uma flor de hibisco se arranjava num dos nós de seus cabelos. Era nítido o quão Salazar estava encantado. Mais do que nunca. Em transe. Malade d'amour. Complètement malade. Suas pernas bambas deram duas passadas para trás, ao mesmo tempo em que tentava explicar o que estava fazendo. Ergueu as duas mãos em pleno ar de maneira defensiva, engolindo em seco. "Desculpe, não sabia que era você quem estava...", fora interrompido por um sorriso lascivo a se formar nos lábios da jovem, seguido de uma arqueada sugestiva de suas sobrancelhas. "Sei", riu-se, cínica, lançando-o uma piscadela breve antes de girar em seus calcanhares e saltitar animadamente até a cozinha. Os olhos cor-de-âmbar do lusitano chamejavam em desassossego à medida em que acompanhavam as pernas banhadas de sol da menina, logo iniciando seu caminho em sua direção. Postou-se em frente ao balcão da cozinha, as mãos nos bolsos, enquanto a observava despejar água de uma moringa num copo de cerâmica. "Está indo ver sua amiga?", indagou, um sorriso jocoso nos lábios. A mesma assentiu, levando o copo aos lábios, o qual cobria parte de seu rosto. Salazar podia jurar que a morena escondia um sorriso faceiro por trás do recipiente que bloqueava sua visão. "Estás gira... Digo, bonita", a elogiou, encostando-se na parede. Seu coração pulsava numa velocidade frenética. "Obrigada", respondeu a jovem, pousando o copo sobre a mesa e apoiando suas duas mãos na mesma, tornando a encará-lo. "Como se chama essa sua amiga, mesmo, Flor?", o rapaz semicerrou as pálpebras, esperando que ela caísse em seu jogo de palavras. A menina engoliu em seco. Pôde jurar ter visto um tom de nervosismo em seu olhar. "Por que o interesse?", rebateu, franzindo o cenho em sua direção. Salazar aproximou-se, pousando suas mãos no balcão no qual a mesma se encostava. Pela primeira vez desde que a conheceu, o português reuniu coragem o suficiente para levantar-lhe a voz. Em prol de seu próprio desespero, de seus próprios impulsos obsessivos. "Para onde você vai, Maria Flor?", questionou-a, a seriedade nítida em suas feições usualmente tranquilas. Sentiu o quão confusa a mesma estava, de início. Não estava acostumada a ouvi-lo referir-se a si num tom tão grave. Após alguns segundos de silêncio, Salazar sentiu seu coração dar um pulo quilométrico ao ver o rosto da menina tão, tão perto do seu. Havia se aproximado de tal maneira a qual podia sentir sua respiração, incrivelmente calma, contra seu pescoço. "Não diga à minha mãe", viu-a abrir um sorriso indecente. "Por favor, seu Salazar...", observou-a inclinar a cabeça para o lado, lançando-o um olhar instigante, o lábio inferior em proeminência. Sentiu sua mão quente tocar seu ombro de modo repentino – como era sagaz, pensou novamente para si. Seus dedos finos traçavam os fios de lã de sua camisa, e aquele par de olhos – o mesmo par de olhos cor de jabuticaba que o encantaram desde o primeiro dia em que pôs os pés naquele lugar – mantinham-se fixos em seus lábios, agora inertes como qualquer outra parte de seu corpo na situação em que se encontrava. "Não... não direi", balbuciou, fechando os olhos por um momento. Aquele sentimento – cuja abstinência o ensandecia aos poucos – havia se tornado o principal responsável por pervertê-lo, seduzi-lo e viciá-lo desde o sacro dia em que havia pousado seu olhar impassível sobre seu rosto corado. Mais alcoólico que qualquer dose de absinto, mais entorpecente que qualquer teor do mais puro opiáceo. Seu eleito veneno inócuo. E ela tinha um nome – o qual fazia arder sua língua no instante em que escapava de sua boca, fervente, às chamas vivas. "Mas... deixe-me ir contigo", ordenou, recuperando a seriedade em sua voz, que havia se derretido graças ao seu perfume almiscarado. Um certo silêncio pairou sobre os dois por alguns segundos. O estrilar dos grilos que arranhava o calar da noite podia ser ouvido ao longe. "Não quero que nada de mal te aconteça", revelou o lusitano de respiração ofegante. Um sorriso acintoso formou-se nos lábios da jovem. "Pois então... venha", disse, levando o copo de cerâmica aos lábios por uma última vez, somente para largá-lo sobre a mesa e saltitar em direção à porta, checando por vez ou outra se sua sombra apaixonada continuava a segui-la. Salazar sorriu ao perceber seus pés descalços, apressando o passo para acompanhá-la lado a lado. "Para onde vamos?", indagou, um sorriso genuíno irrompia em seus lábios. "Pro forrobodó", uma brisa abafada os atravessava. "Como?", indagou em confusão. "Dançar, seu Sal", Maria o informou, impaciente. Cruzaram a Praça de São Tomé e uma belíssima catedral que se impunha, imponente, à oeste. As ruas, antes mal iluminadas e funestas, haviam tomado um ar aconchegante e acalorado graças à meia-luz amarelada dos lampiões. Diversas barracas enfileiravam-se em sua rebarbas; vendiam comidas típicas e artesanato local. Salazar tateou os bolsos das calças de brim, à procura de sua carteira. "Vem!", a menina o trouxe para perto, apertando o passo. Podia ouvir ao longe uma melodia inédita, contudo estranhamente familiar. Diferente de qualquer sinfonia de Tartini, Vivaldi ou Albinoni, as quis estava acostumado à ouvir. Um pequeno palco havia sido montado no meio da feira, onde três homens apresentavam-se num número do tal "forrobodó" tão mencionado pela garota. "A parte boa vai demorar ainda. Trouxe dinheiro?", perguntou, dissimulada. "Trouxe", assentiu. "Eu também", a jovem esboçou um sorriso ingênuo. "Vem, vamos na barraquinha de Dona Célia", o guiava em meio à multidão, as mãos entrelaçadas. O calor era evidente – só não sabia se a causa para o tal eram as circunstâncias em que se encontrava ou o clima abafado que antecedia chuva. Observou a garota cumprimentar a comerciante com simpatia. "Seu Salazar, é a melhor canjica de Itaporã!", exclamou, provocando um sorriso tímido na mulher mais velha. "Ora pois! Dê-me duas", retirou a carteira do bolso. "Não precisa, eu trouxe dinheiro", informou-lhe sua querida. "Eu faço questão", insistiu. A menina esboçou um sorriso tímido. Salazar levou a iguaria aos lábios. "Muito bom", comentou, a alegrando ainda mais. Seguiram pela feirinha, degustando de suas canjicas, numa espécie de tour especial guiado por Maria Flor.
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Flor de Sal
RomanceIlha de Itaporã; 1959. Salazar, jovem português de origem afluente e recém-formado em antropologia decide visitar a ilha à procura de inspiração para seu novo livro. Até que conhece Maria Flor, encantadora jovem nativa que desperta com intensidade...