Era uma tarde fresquinha de primavera quando Emily resolveu sair de dentro de casa e ir até a varanda. Embora já tivesse percorrido aquele caminho milhares de vezes, ela foi tateando a parede ao longo do caminho até chegar à porta e, ao abri-la, deu mais alguns passos e sentou-se na escada que ligava a varanda ao jardim, sentindo um cheirinho gostoso de grama recém-cortada.
Como a apresentação da orquestra era no final da semana seguinte, ela decidiu aproveitar todo o tempo que tinha para ensaiar a nova musica no violoncelo. E embora já tivesse decorado toda a música, continuava insistindo nos ensaios hora após hora, pois queria dar o seu melhor. Por conta disso, acabou deixando seus pais cuidando do jardim sem sua ajuda naquele dia.
Emily ficou brincando com os pés na grama recém-cortada abaixo dos seus pés enquanto sentia o vento suave tocar sua pele. Uma brisa que mais tarde a faria sentir frio se continuasse usando apenas aquele casaquinho leve. E tão logo seus pais a viram, sua mãe comentou sobre o assunto.
-Está ficando frio, Emily. Vá pegar um casaco descente.
Ele rolou os olhos com aquele cuidado excessivo da mãe e disse que já ia. Contudo, como todo filho que se prese, ela não foi, mas continuou sentada na escada prestando atenção nos sons à sua volta.
Por entre as vozes de seus pais, que conversavam entre si, ela ouviu o ronco do motor de um ônibus se aproximando e virando a esquina, um quarteirão ao lado da sua casa. Pelo horário que era, se ela não estivesse de férias era daquele ônibus que desceria, voltando da escola. E assim que o ônibus se distanciou ela ouviu a presença de crianças brincando no quintal na casa da frente. Logo um grito transtornado chamando pela mãe indicou que as crianças estavam se desentendendo. Emily riu com a revolta da criança que reclamava. Podia lembrar-se perfeitamente dos cabelos enroladinhos e da cara de mandona que Letícia tinha e como suas sobrancelhas se franziam quando não gostava de alguma coisa.
Na casa ao lado ouviu o barulho de talheres e outros utensílios de cozinha sendo mexidos, e supôs que fosse dona Lúcia procurando alguma coisa. Como a janela da cozinha dela era aberta na direção do jardim deles, quem estivesse por ali conseguia ouvir tudo o que acontecia por lá. E não foi preciso muito tempo para que suas suspeitas se confirmassem, pois logo ouviu dona Lúcia chamar sua neta e reclamar com ela por não ter guardado a louça no lugar certo. Emily riu, e entre a reclamação dela e as defesas da neta, dona Lúcia cumprimentou Emily e o casal que trabalhava no jardim.
-Olá.- Emily acenou, sorrindo.
Em seguida ouviu mais algumas reclamações e uma porta sendo fechada. Mais alguns talheres sendo mexidos e mais reclamações. Emily riu mais uma vez, torcendo para que dona Lúcia não estivesse olhando para ela, e imaginou se a senhora, depois de cinco anos, ainda franzia as sobrancelhas daquela forma engraçada que se lembrava, toda vez que procurava por alguma coisa e não encontrava. Tinha que perguntar aos seus pais.
Desviando sua atenção a outros sons, Emily ouviu um saco plástico sendo amassado e imaginou se seriam seus pais, recolhendo a grama cortada. Provavelmente sim, pois já estava na hora de terminarem a tarefa, visto que estavam a tarde toda fazendo aquilo. Ouviu um grupo de andorinhas cantando nos galhos da árvore do jardim e assustou-se com outro passarinho que inesperadamente cantou bem em cima do telhado da varanda.
Prestou atenção a outros sons, tentando formar um cenário imaginário para se localizar, e de repente ouviu o som do assoalho de madeira da varanda ranger sob os passos de alguém. Seria seu irmão? Por um momento pensou que sim, mas lembrou-se que tinha fechado a porta e não tinha escutado ela se abrir. Até que lembrou, e achou estranho ter esquecido, que só tinha uma pessoa que entrava na varanda daquela forma.
-Tá' fazendo o que aí?
E logo após aquela voz conhecida ter falado ao seu ouvido, Emily sentiu Denzel se sentar ao seu lado. Ela sorriu.
-Só escutando.
E sem que ela percebesse, o visitante ao seu lado sorriu, fixando o olhar sobre ela por alguns segundos.
-Denzel! Você por aí? Não te vi entrar.- o pai de Emily acenou para o rapaz, com um leve tom de reprovação na voz por ele não ter entrado pelo portão.
Denzel deu um sorriso culpado e acenou.
-Querem ajuda?- ofereceu-se, já se levantando, numa forma de se redimir.
Já tinha ouvido dezenas de vezes a instrução para entrar pelo portão, mas como naquele dia ele veio pela rua de trás, não achou que faria mal pular o muro só mais uma vez.
-Não precisa, não. Já estamos terminando.- a mãe de Emily respondeu antes que seu marido aceitasse a oferta.
-Por que você disse não?- Emily ouviu seu pai resmungar. –Eu estou cansado e ele pulou o muro.
-Então...- Emily indagou, tirando a atenção de Denzel da conversa dos pais. –O que te trás aqui?
Denzel olhou para a garota ao seu lado por um momento e sorriu.
-Quer dar uma volta?- perguntou, e a viu franzir as sobrancelhas.
-Aonde?
-Ah...- ele riu. –Isso você só vai saber quando chegar lá.- ele respondeu, e teve que rir com a cara de dúvida que ela fez. -Fica tranquila, você vai gostar.
Emily pensou por um momento.
-E meus pais?
Ele riu mais uma vez.
-Fica tranquila, eu já falei com eles ontem.
Emily se virou na direção dele.
-Você veio ontem aqui?
Ele sorriu com a expressão confusa que ela fez e colocou uma mexa do cabelo dela atrás da orelha. Só depois de ter feito aquilo, tão naturalmente, foi que ele lembrou que os pais dela estavam ali por perto. Ele olhou na direção deles e suspirou aliviado ao vê-los de costas para eles.
-Vim. E entrei pela janela do seu quarto.- ele falou próximo ao ouvido dela. -Mas você estava dormindo, então tive que descer e bater à porta.
-Não acredito que você fez isso!
Ele gargalhou. Ela ficou quieta por um momento, pensando sobre como ele tinha se tornado mais aberto com ela naqueles últimos meses, e como eles tinham, inesperadamente, se tornado amigos.
-O que foi? Ficasse chateada?- ele perguntou, ao vê-la pensativa.
Mas ela sorriu, balançando a cabeça negativamente.
-Então já que está tudo certo, vamos?- ele se levantou e ficou de frente para Emily.
Em seguida segurou a mão dela e a ajudou a se levantar.
-Espera. Tenho que pegar minha guia.- ela soltou a mão dele e fez menção de voltar para casa, mas Denzel segurou a mão dela de novo.
-Não precisa, eu te guio.
Inesperadamente Emily sentiu seu rosto esquentar, o que a fez pensar e estranhar aquilo. Será que seu rosto estava corado? Será que ele tinha notado isso? Numa tentativa de não deixar que ele percebesse isso, caso ele ainda não tivesse notado, ela abaixou o rosto. Mas ele já tinha visto, e sorriu.
-Vamos precisar de uma carona pra chegar lá...- disse ele em tom baixo, indo na direção do portão e acenando para os pais de Emily.
-Carona?
-É. Na verdade, eu vou dirigindo. Peguei o carro emprestado do meu pai. Está na rua de trás.
Emily não falou nada.
-Você sabe que eu dirijo bem. Dirijo desde os doze anos...
-Eu sei. Só estou curiosa pra saber se seu pai sabe que emprestou o carro pra você.
Ele gargalhou ao ouvir aquilo, mas não respondeu. Ela já devia saber a resposta.
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Som do Coração
NouvellesQuando Emily o abraçou, teve certeza de que aquele era seu som preferido. (Esse conto faz parte de um dos capítulos de uma futura história que postarei aqui no wattpad.) Primeira edição: 28/12/2015 Segunda edição: 10/12/2018 Créditos de imagem de ca...