Prólogo

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Florais, um reino ao sul do continente, era visitado todos os anos por um grande número de trovadores — artistas viajantes e circenses que colecionavam histórias, números de magia e malabarismo, e tinham uma afiada percepção sobre tudo. Dentre eles havia um em especial que amava as lendas do lugar e, em certa ocasião, durante uma celebração de casamento, esse trovador contou a história de certa fada, a maior delas, a rainha das fadas, a mais bela, a mais formosa; o mais exuberante e brilhante ser jamais visto. E ele começou assim:

Ninguém sabia seu nome, ninguém nunca a tinha visto exceto naquele dia,

O dia em que a lua brilhava sozinha e em sua forma mais completa,

Com um brilho amarelado e vibrante

Pulsando sobre a terra.

Ela caminhava por entre os bosques, colhendo as flores e cantando canções.

Era seguida de perto pelas outras fadas que faziam coro e dançavam ao luar.

E na canção dizia que era tempo de celebrar, tempo de criar, tempo de mudar, tempo de lembrar e tempo de sentir.

Era tempo de visitar os amigos que ali ficaram e ficariam.

A cada toque nas folhas das árvores, no chão caídas, a bela fada criava a vida.

Pelas trilhas dos bosques ia, mudando as formas e as cores sobre seu guia.

Das folhas, nasciam duendes.

Das árvores, belos elfos.

Da água, as ninfas.

Do chão, gnomos e borboletas.

As suas mãos transformavam a vida, e das belas fadas nasciam flores.

Algumas sumiam diante do luar e novos formatos de flores pôs-se a criar.

E aquela visão que nem em sonho se podia imaginar

De tão longe o menino ficou a observar.

Enquanto a lua brilhava, a dança continuava.

Do chão que finda a vida

A magia surgia diante de seu olhar.

E assim o contador de histórias cantava cantiga, a sua favorita dentro todas que aquele país já o tinha inspirado: a história de um menino que presenciava a celebração das fadas, na fase da lua cheia e no único dia do ano em que a lua ficava mais próxima da Terra. O menino, que ao ver tal espetáculo saiu correndo de volta à sua vila para avisar a todos os aldeões sobre o acontecido, fez assim essa história se tornar uma lenda cantada e contada por séculos e séculos. Mas, dentre todas as vilas, havia uma em especial, uma em que a lenda da rainha-fada foi vivenciada, e este lugar era Alta Montanha. Nosso trovador amava aquela vila com todo o seu coração e todo ano ele voltava. Parecia esperar por algo que o fizesse ver de novo aquela bela fada.

Aquela que ele jamais esqueceria.

Alta Montanha era seu vilarejo natal, margeado em um lado pela Cordilheira Blumen e pelo Rio Joia Negra no outro. O próprio dia a dia daquele lugar já lhe inspirava muitas canções. Viviam em um ritmo contínuo e harmônico, como que se guiado por anjos harpeiros, uma deliciosa utopia. Sua produção de flores era tamanha que, em suas viagens, ele não havia encontrado outra vila capaz disso em nenhum outro lugar. Além da grande quantidade, ainda havia flores exóticas que só podiam ser cultivadas ali.

Em uma de suas viagens à capital de Florais, ele ouviu uma história, algo como um portal que se abria para outros mundos e então ele apressou o passo pela Floresta Tiro Certo, um local onde qualquer um que não fosse nativo certamente se perderia, pois suas árvores eram enormes e frondosas, e margeavam o Rio Joia Negra. Em sua corrida para investigar o local do boato, nosso trovador cometeu um erro e por um descuido caiu no rio, bem quando estava prestes a alcançar a ponte. Os moradores da região logo se puseram a ajudar, uma vez que as águas eram tão profundas e negras que não havia como determinar o fundo. Para um artista que não sabia nadar, era morte certa.

Salvo, ele correu até a capital, mas chegou tarde demais: quem havia espalhado o boato já tinha partido e infelizmente ele teria que viver com mais esse mistério. Porém, esse não é o único segredo que o reino esconde. E nosso trovador queria muito descobrir mais sobre tais segredos.

Desde pequeno ele se perguntava se o que viu era real, ou apenas uma ilusão de sua mente já fantasiosa desde criança. Mas o reino não o deixava se esquecer disso.

Certa vez, indo ao porto, nosso trovador ficou encantado com o que havia por debaixo dos picos longos e finos da cordilheira Blumen. Viu pequenas pegadas por toda a parte, que apareciam aqui e ali e desapareciam perto da encosta da montanha. O forte natural de Florais, afiado como uma navalha, escondia em suas raízes algumas criaturinhas mágicas, e nosso trovador ficou tentado a desvendar mais desse mistério.

Infelizmente ele não conseguiu achar nada, mas aquilo deu uma boa história para se contar para as crianças à noite. Entre um local e outro, ele costumava parar e analisar a seu redor; as florestas sempre em tons outonais, meio barro e meio tijolo, davam aquele tom mágico à região e faziam os olhos de nosso especial trovador brilhar. Ele não queria saber se iria algum dia quebrar a cara com sua terra natal, mas tudo o que ele via lhe parecia mágico, como em suas canções, como a visão que teve naquele dia.

Esse aspecto nomeou Florais por muito tempo como o País das Fadas, chamado assim pelos viajantes e pelos próprios moradores do reino. As lendas que ouvia desde criança sobre aparições de fadas, gnomos e elfos despertaram sua alma e às vezes ainda o confundiam, mas ele sabia lá no fundo que aquela fada sob o luar era real.

Com o tempo se passando e com os governos do reino se alterando, as lendas ficaram sendo apenas histórias e canções, das quais havia muito já não se ouvia falar, fazendo com que a crença nesses seres se perdesse. Nosso trovador, porém, não parou de cantar, apesar de seu rei atual ter mudado o nome do reino para Florais, dando um incentivo a mais para que os cidadãos deixassem de comentar sobre esses assuntos. Ele nunca mais viu as pequenas pegadas, nunca mais sentiu o cheiro adocicado nas trilhas sinuosas de Tiro Certo. Nunca mais perderam algo que estava em um lugar e foi achado em outro, nunca mais se viu uma luzinha brilhar sobre o Joia Negra.

Rei Guilherme havia de fato conseguido, em sua preguiça monumental, fazer o povo esquecer as origens de sua terra — o que mais ele gostaria de fazer com o reino ninguém sabe, talvez nem ele mesmo. Mas nosso trovador jamais se esqueceria do dia em que viu a grande fada sob o luar.

Caminho das Fadas - Livro I [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora