Águas Turvas

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        A tarde caia, com seus véus púrpuros e escarlates. O calor quase equatorial, entretanto, continuava constante, mesmo com o silencioso morrer do dia. Ao oeste, no horizonte das águas do belo Atlântico, a noite emergia, trazendo, como uma manta, as trevas à cidade do Recife de tantos anos de histórias, vidas e mortes.

       Na penumbra de um lar distante do mar, Valdomiro, com ar sinistro, aguardava o retornar de sua mulher. Há algo espantoso no cotidiano comportamento deste ser. O ódio era visível em um olhar selvagem, o intento maléfico parecia claro e inevitável naquele rosto marcado pelo álcool e tabaco. Os segundos eram contados com impaciência em movimentos arbitrários e repetitivos de seus dedos... A espera aumentava a paranoica insanidade...

       Sua mulher, Ana, tentava ser independente, indo contra a costumeira submissão feminina aos maridos. Tinha seu próprio trabalho e tentava trazer ao lar o dinheiro que seu desempregado e amado companheiro não era capaz de conseguir, desde a fatídica demissão do matadouro em que trabalhava e que lhe condenou a uma vida boemia e sedentária. Contudo, Ana tomara seu próprio rumo, encontrado, em meio ao breu de dificuldades, uma brecha de esperança salutar. No entanto, o seu emprego como empregada doméstica, nas ricas casas dos elegantes bairros, despertava em Valdomiro não apenas a humilhação de ter seus sustentos provenientes da esposa, a quem devia cuidar, proteger e trancar em casa para que pudesse cozinhar passar e lavar, mas também o ciúme lhe corroía ao ébrio espírito, o cego sentimento que sempre possuiu pela jovem morena das belas curvas. A velha loucura que levou na literatura Otelo ao profundo abismo de desesperos infindáveis, tendo como solução apenas o derramamento do precioso líquido vital de sua tenra amada... Valdomiro nunca leu Shakespeare, na verdade mal sabia ler qualquer coisa, mas se tivesse discernimento teria se identificado com o Mouro de Veneza.

       O sentimento obsessivo de posse doentia sobre a esposa o levava a vários rompantes de extrema violência, tendo, muitas vezes, encaminhado a frágil moça ao hospital, para das máculas corporais tratar, deixando sempre aberto no peito dela a ferida do desgosto de sofre na mão de quem mais se tem amor. Os vivinhos, nada intervinham nas brigas, apesar de fofocarem pelos cantos, fatos reais ou contos por eles inventados para dar razão a um ou a outro, romancistas de quinta que, se espelhando nos folhetins da TV, construíam tramas elaboradas que apenas causavam mais ódio no desempregado beberão, porém, Ana não se desvencilhava do casamento, pois sentia pelo marido ainda o sentimento adolescente que a levara a perda da virgindade e da inocência, o amor que fazia ver em um proletário um nobre príncipe, apesar da dor e raiva irracional que conduziam as mãos do amado em golpes animalescos.

       Mas, esta ocasião era diferente... Valdomiro descobrira que seus medos e paranoias concretizavam-se em uma traição da amada, com o seu patrão, um rico e esnobe homem que daria a Ana o que Valdomiro não era capaz... A certeza era quase total... Não havia, porém, provas que comprovassem que seus delírios eram verdadeiros, nem mesmo um lenço de discórdia, como o que fizera personagem de Shakespeare acreditar nas traições de sua ama. Entretanto, para sua perturbada mente essa era a verdade, que seus olhos e ouvidos escancaradamente lhe revelavam.

       Sua esposa chegou com seus passos meigos e ainda pueris, feliz por mais um dia de trabalho feito, e por encontrar o amado em casa e não em um bar, embriagando-se as suas custas, para nas sarjetas adormecer como um sem-teto mais do que miserável.

       — Querido, você aqui em casa? Não devia estar trabalhando? – disse irônica.

       Valdomiro apenas riu, apesar de ter a mente cheia de ira por tal zombaria, controlou-se, havia um plano estabelecido para se seguir. Levantando-se do rasgado e velho sofá e dando a amada um beijo frio e seco, como o que talvez Judas deu em seu Mestre. O ósculo fúnebre assustou o coração da pequena morena junto com um arrepio. Pairava no ar uma atmosfera densa, o prenuncio do mal.

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