Porto Alegre, 22 de abril de 2012

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Ana

Eu estava sentada no caixa do meu café. Eram 10 horas da manhã e o movimento era pequeno. A funcionária lavava algumas xícaras na pia que ficava dentro do balcão de concreto que eu idealizei. O balcão faz um arco meia-lua na área do café e é decorado com madeiras de tamanhos desiguais que formam um mosaico em forma de escada. Tive a ideia andando na esteira em um dos meus momentos de hipomania quando estávamos decorando o café em 2009. A primeira versão era bombástica correspondendo ao momento hipomânico onde tendo a ser muito criativa, mas também sem limites financeiros. Ainda bem que minha sócia e nosso orçamento me forçaram a ficar no chão.

Eu gosto tanto deste balcão, apesar de ser uma versão simplificada do balcão ideal megalomânico que idealizei no inicio, que o fotografei e coloquei na minha conta do Pinterest. Uma vez por semana olho para ver quantas pessoas o adicionaram a algum álbum, o que acontece com grande frequência e me causa até hoje grande prazer. Fico imaginando que em algum lugar distante, por exemplo, em Budapeste ou Istambul, alguém copia a minha ideia e que existe em algum lugar do mundo um café gêmeo, com o mesmo balcão ou uma versão melhorada ou piorada. A ideia me faz sorrir.

O balcão separa a área de trabalho de quem serve o café, do espaço com as mesas onde ficam os clientes. Assim, a pia, cafeteira, mini geladeira, enfim tudo o que se necessita para servir um excelente cappuccino ou espresso, fica escondido do público. Acima do balcão várias luminárias pendentes modernas de metal leve, estilo industrial iluminam o local de acordo com a hora do dia de forma a tornar o ambiente bem agradável. Além disto, dispusemos no teto uma boa quantidade de spots de LED redondos embutidos no teto rebaixado de madeira branca.
As mesas são de madeira com cadeiras confortáveis e num canto colocamos poltronas de um tecido macio numa clara imitação ao Starbucks.

No dia 20 de abril de 2012 fazia três anos que eu e minha sócia havíamos montado o café e eu ainda hoje me sinto bem em ir até lá todos os dias. Adoro ver a decoração de muito bom gosto que nós escolhemos com tanto cuidado em 2009 quando resolvemos investir o dinheiro que a minha sócia, uma colega da faculdade de administração de empresas, herdou de sua família. Eu tirei algum dinheiro no banco com a ajuda dos meus pais e lá estávamos nós, em 2009, tomando uma champanhe sozinhas em uma noite de inverno inaugurando o nosso estabelecimento, o qual abrimos no outro dia sem muito estrondo.

Desde o primeiro ano de operação, ele é um local bem frequentado. Nossos café são usuais e as comidas de bistrô escolhemos, depois de extensiva busca na internet em estabelecimentos semelhantes e em sites de receitas de alguns lugares do mundo. 

Neste dia de 2012 eu abri as notícias locais na internet como costumo fazer e fui passando os olhos nas manchetes. "Acidente na BR-116", mais um, pensei, "Geólogo desaparecido em São José dos Ausentes". Abri a manchete. São José dos Ausentes era logo ali perto de Bom Jesus, minha cidade natal. A matéria era curta, quase uma notinha. Imaginei que nem todo mundo teria tido interesse em ler sobre este local, apesar de falar dos Cânions, os quais eram, em geral, mais atraentes em termos jornalísticos.

A matéria descrevia o desaparecimento de um geólogo paulista, uma sumidade em terras raras. Ele havia saído de forma abrupta de uma pousada local com o carro alugado depois de uma briga com a esposa. Fechei a matéria e rapidamente esta notícia se dissipou da minha memória de forma definitiva. Meus pensamentos foram atraídos por um anúncio de vestidos de noiva, uma vez que meu casamento com Frank estava próximo. Vestidos, decorações, docinhos, buffet, minha navegação perdeu-se numa série de links encadeados onde, de um em um, fui montando, com frugalidade mas bom gosto, a cerimônia simples que aconteceria dentro de cerca de dois meses após este dia em Porto Alegre, com a presença de alguns parentes que vieram de Bom Jesus e um primo de Frank, meu futuro marido alemão.

Minha vida no café seguiu, minha vida de casada, e com ela muitos livros entre eles muitos romances policiais, meus preferidos, muito teatro, cinema, algumas viagens a Alemanha e a outros lugares acompanhando o Frank em algumas conferências onde ele apresentaria algum artigo, eternas terapias e meditação para manter minha ciclotimia sob controle. Esqueci o geólogo. Ficou longe como ficava devagarinho a Ana nascida em Bom Jesus substituída pela Ana de Porto Alegre, lugar onde já havia vivido mais quase 15 anos, desde que viera para fazer faculdade em 1997. Muita coisa havia acontecido durante este período: namorados, empregos, formatura, cursos de inglês, meu negócio, Frank. Me sentia satisfeita, Frank era maravilhoso, o café ia bem. Me dava bem com minha sócia. Com minha ciclotimia sob controle e a perspectiva de passar a vida daquela forma me sentia agradável e segura. O geólogo sumiu completamente da minha vida. A ideia que ele reapareceria na minha vida, totalmente impensável e improvável. Mas a vida tinha outros planos para mim.

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