1 - PAPAI MANDOU CHAMAR

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A vida é bem engraçada as vezes, ou pelo menos tenta ser.

Quer dizer, não é como se de repente eu acordasse naquele dia e desejasse tudo o que aconteceu comigo, como se fosse apenas um pedido num menu de restaurante; "traga a vida seis, por favor!". Na verdade algumas pessoas insanas até cogitariam em pensar, ao ler minha história, que seria extraordinário estar no meu lugar. Mas no final das contas tenho apenas que agradecer, pois as coisas que vi e experimentei, os sentimentos que provei e experiências que tive só foram possíveis por conta do que me tornei naquele lugar.

Durante o verão, existem dias em que ao acordar, é possível sentir o ar fresco se esvaindo pelos minutos da manhã, dando lugar a um clima úmido e abafado. Dias tão quentes que todos sabem que em algum momento o céu não vai aguentar, e irá chover. Particularmente, quando eles surgem, acabam me provocando ansiedade como se algo fosse acontecer, um sentimento ligeiramente angustiante. Levantar da cama é tão tortuoso quanto escolher permanecer nela.

_Ella! – Chamou-me a senhora Goulart, minha mãe adotiva – Vai para aula hoje?

_Preciso? – indaguei provocando-a, já que para ela o estudo sempre foi considerado essencial na vida de qualquer pessoa.

Antes de poder dispersar a preguiça por conta própria o quarto tremeu com os latidos vindos do corredor, a grande cadela da raça rottweiler, negra como noite pulou em cima de mim me lambeando, sempre espontânea e brincalhona. Alcancei os biscoitos caninos na cabeceira da cama e arremessei-os mais longe possível antes que fosse devorada pela felicidade de Tróia.

Quando desci pelas escadas até o andar de baixo minha mãe já havia ido trabalhar. Às vezes me flagrava imaginando que se conseguisse ser metade da pessoa que ela é, já estaria satisfeita. Depois que meu pai morreu, ela carregou os problemas sozinha, conseguiu terminar o curso de economia e ainda por cima criou uma garota pra lá de esquisitinha e um filho pouco mais velho com corpo de atleta, mente de nerd e problemas de socialização.

Quando sai de casa segui minha rotina de pôr os fones de ouvido e dar o play nas músicas dos Beatles.

Seguindo os quinze minutos de caminhada para escola, passando pela frente do único hotel da cidade percebi alguns carros incomuns estacionados na frente. Eu não era necessariamente uma expert em automobilística, mas sabia diferenciar um carro popular de outro que visivelmente valia mais do que minha casa. O mais estranho é que todos os três eram iguais, provavelmente por seus donos estarem viajando juntos.

Apesar de ser bem pequena, a cidade onde morava era relativamente próxima da fronteira de outro pais, apenas algumas dezenas de quilômetros nos separavam da linha imaginaria, logo era bem comum pessoas pararem na região para passar a noite, mesmo assim, o sentimento de agonia que acordei naquela manhã não me deixava pensar em nada como se fosse casual, pensamentos ruins invadiam minha mente como a alegria invadiria uma criança ao ganhar um doce.

Tentei deixar o pensamento negativo de lado ao chegar no colégio.

_Olha ela! – Meus amigos nunca costumaram ser muito discretos então todos os dias para eles, era dia de show – Garota você está horrível!

_Sutileza nunca foi, nem nunca vai ser o seu forte Sarah! – Lancei para nossa amiga mais jovem.

_O que houve? – indagou Enzo

_Não sei direito – enrolei – só não dormi bem.

_Você não dorme bem desde que eu te conheço – foi a vez de Richard falar – já deveria estar acostumada com a insônia!

SallesWhere stories live. Discover now