É noite no sertão. A Lua se esconde por trás do véu de nuvens altas, esparsadas, que nesta época do ano correm ligeiras ao longo de toda cúpula negra do céu. As estrelas rutilam como animais noturnos. Aqui, no interior do Ceará, o ulular das aves mistura-se harmonicamente com a voz do vento - som produzido no encontro da corrente ar frio com a vegetação e com os sólidos monólitos. Uma cantiga melancólica. As pedras, aqui figuras numerosas, são as primeiras habitantes dessa insólita região e, portanto, testemunhas da história dos homens e da natureza - há quem se atreva a dizer, não sem hesitar um pouco, que, também, as pedras são testemunhas do sobrenatural.
No Sertão Central, em 1990, as árvores grandes são escassas. O longo período de poucas chuvas seleciona espécie menores, ou mais resistentes, que conseguem reter água para auto-sobrevivência. Ainda há as espécies que parasitam as que retém. Nesta terra árida, água é ouro-vivo para todos. O maior açude deste pedaço de fim-de-mundo, o Cedro, é o grande suporte à vida. Contudo, mesmo próximo ao açude a disposição das espécies aptas exige que as grandes corujas brancas, conhecidas como Rasga-Mortalhas, realizem vôos mais longos. Estas são aves de hábito noturno, assustam homens e bichos, mas se alimentam apenas de pequenos animais capturados na vegetação baixa - roedores, pequenos lagartos, etc. Agora, com a umidade chegando ao solo seco graças às chuvas da época, a vegetação ganha tons de verde. O cacto floresce. E os bichos celebram a abundância com a perda da timidez de outrora.
As numerosas pedras nascidas em uma época remota, quando a Terra ainda amadurecia para se tornar a mãe adulta de hoje, dão dramaticidade à sensação térmica durante os dias e as noites - aquecem e resfriam. A sobrevivência no sertão cearense requer esforços tanto para homens quanto para os bichos - sejam estes domesticados ou não. Mas as pedras não são imunes, pois se adaptam também, ganham forma, quebram e perdem forma, tudo isto imposto pelo temperamento forte do sertão cearense.
O barulho de metal perturba o estado mental dos seres. As irregularidades da estrada de terra,com sulcos deixados pelo trânsito das carroças que ali trafegam durante o dia, faz trepidar as bicicletas velhas empoeiradas que se aproximam. Duas bicicletas. Dois homens. Uma galinha. Eles trazem consigo o odor da cachaça. Agora faltam poucos dias para o fim do mês de dezembro, por isso, mesmo que por poucos dias, os homens daquele lugar experimentam a fartura que lhes é saudade e ansiedade durante todo o restante do ano. A cachaça e a carne são o luxo ao alcance do sertanejo.
- Mato no dia do seu casamento com minha fia - Disse o mais magro e mais velho deles, Raimundo. Sujeito valente e forte, características em oposição à sua composição física. A galinha viaja embalada e amarrada em sua garupa e por vezes reclama dos impactos transmitidos pelo velho veículo de transporte. - Dá um caldo bom, vice?!
Seu companheiro naquela madrugada é Francisco, mais conhecido como Galego. Homem jovem, 20 anos, mas o trabalho no sítio lhe deu mais uma década de idade ao corpo. Seu pelido, Galego, é devido a cor dos seus olhos - verdes medrosos. Traz um cigarro pé-duro na boca enquanto pedala. Veste roupas puídas - é a moda local. Galego monta a bicicleta ao lado de Raimundo, amigo e vizinho e futuro sogro. Uma légua separa a casa de Raimundo da casa da mãe de Galego. Este herdou os amigos do pai, há cinco ano falecido graças ao adoecimento pelo fumo excessivo. "Câncer!", disseram os médicos. Agora, Galego irá se casar com a filha de Raimundo - Acauã, filha mais nova de voz doce. Por ela Galego suspira. E por ele Acauã canta todos os dias.
- Chamei os menino do Severino. Vamo precis... - Interrompido na fala, Galego aciona o freio da bicicleta, suspendendo poeira na estrada para logo colocar os dois pés aos chão. Quase tombou. De olhos arregalados pelo susto, grita em bom som: - Viva os noivos!
É sabido pelo povo daquela região que Rasga-Mortalhas são aves de mau agouro. O barulho emitidos por elas não é agradável aos ouvidos, pois soa como algo cortante arranhando uma superfície sólida e lisa. Além da sua cor ressaltada na escuridão da noite. Causo ou não, o fato é que uma Rasga-Mortalha cortou o caminho dos dois homens e surpreendeu ambos. Levantou voo de uma carnaubeira na beira da estrada, cruzou-a e rumou para um grande monólito ali próximo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Luzes do Sertão
Misterio / SuspensoO insólito sertão no interior do Ceará é um lugar fértil para a imaginação humana. Os monólitos, rochas enormes que brotam na terra seca, são verdadeiros jardins suspensos. Neles, também afloram o sobrenatural e a face mais aterradora da imaginação...